O pernambucano Denisson encanta a platéia que assiste, embevecida, a um vídeo sobre o Programa Acelera Brasil, ação social capitaneada por Viviane Senna para puxar do fundo do poço crianças ameaçadas de afogamento nas águas do analfabetismo. O Instituto Ayrton Senna, que dirige, deu novo rumo à vida de quase 8 milhões de crianças e jovens em 1.360 municípios de 25 Estados. O menino brincalhão e articulado que redescobriu a alegria de viver quando passou a engatinhar no caminho das palavras é o símbolo de uma revolução empreendida às margens do Estado por uma miríade de entidades - associações, institutos, fundações, redes filantrópicas, organizações da sociedade civil de interesse público - tocadas pela chama cívica de idealistas e sonhadores. O dinheiro que se investe em garotos como ele é muito pouco, comparado com a cifra gasta pelo Estado, apenas R$ 100 por ano. Essa é a banda limpa da gigantesca cadeia das organizações não-governamentais (ONGs) que nas duas últimas décadas passaram a compor um dos mais vigorosos eixos do poder social no País, também conhecido como terceiro setor.
A sigla ONG está na ordem do dia. Ora freqüenta a pauta do bem, ora a agenda do mal, carecendo, por isso mesmo, que a mão da lei baixe em sua seara para separar o joio do trigo. Há, nesse sentido, duas iniciativas em andamento: a CPI das ONGs, a cargo do Legislativo, e um projeto de lei do Executivo para regular a ação de entidades, algumas internacionais, na Amazônia. Sob o foco da lupa estão desvios em entidades que servem de fachada para a locupletação de grupos empresariais e políticos, suspeitas de contrabando das riquezas da região amazônica e ações que ameaçam a soberania nacional. Para onde foram R$ 12,6 bilhões que 7.700 ONGs receberam da União entre 2003 e 2007? O que justifica a existência de 320 entidades não-governamentais na Amazônia, voltadas para a questão indígena, uma para cada mil índios? O ministro da Justiça, Tarso Genro, parece não ter dúvidas: a biopirataria é o objeto de interesse.
O fato é que a filantropia, receita de certas associações sem fins lucrativos, esconde boa dose de “pilantropia”. A degeneração do conceito cresceu na esteira da expansão de demandas e desestruturação dos serviços sociais, conseqüência da transformação de um país predominantemente agrário em grandes concentrações urbanas. Em seu primeiro ciclo, nas décadas de 70 e 80, as organizações não-governamentais se inspiraram em ideário composto por temas de elevado conteúdo cívico: defesa de direitos (a condição feminina, o movimento negro), luta pela democracia política, promoção do meio ambiente, desenvolvimento social, particularmente pela via educacional. Tratava-se de abrir o respiradouro após os anos de chumbo, quando o autoritarismo eliminava qualquer possibilidade de ativismo social. A Constituição de 88 abriu as veias da participação de grupos na arena política. Consagrava a idéia de entidades civis, independentemente de autorização, vedando a interferência estatal em seu funcionamento. Nos anos 90, os movimentos se multiplicaram e, a partir daí, começaram a aparecer curvas e desvios em suas trilhas.
A abertura do ciclo de crises políticas contribuiu para abrir um vácuo social, ensejando a multiplicação de núcleos organizados. Decepcionada com o desempenho de seus representantes no Parlamento, a sociedade passou a buscar no associativismo respostas para suas demandas e a resgatar, de certa forma, a modelagem da democracia direta. Categorias organizaram-se nas frentes de pressão. Empresas reforçaram sistemas de formação e inserção do jovem no mercado de trabalho. O CIEE, a maior ONG brasileira, já capacitou mais de 7 milhões de jovens, encaminhando-os à vida profissional. Ganhando forças, as redes sociais integraram-se ao esforço de complementar a ação do Estado no atendimento de serviços qualificados. As ONGs entraram no processo de formulação de políticas públicas, ampliando sua cobertura e vocalizando interesses de grupos marginalizados. Em 2002, o IBGE contabilizava 276 mil fundações e associações sem fins lucrativos. Somando-se à teia de organizações informais, que não entram nos cadastros oficiais, é razoável supor, hoje, a existência de 500 mil entidades do terceiro setor funcionando como motor da dinâmica social.
Desse montante, milhares integram os esquadrões da pilantragem. Algumas servem de fachada ao assistencialismo político, recebendo verbas do Orçamento da União. Outras, como o MST, ganham polpudos recursos do Estado para agir com virulência, invadindo propriedades e instaurando o império da insegurança, fato de destaque no recente discurso de posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do STF. Mas o governo as protege sob o argumento de que suas ações, até as de caráter criminoso, se fazem necessárias para despertar o ânimo popular. No grupo suspeito, as ONGs da região amazônica lideram o ranking. A desconfiança vem de longe. O ex-vice-presidente dos EUA Al Gore chegou a dizer: “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós.” E o ex-todo-poderoso Mikhail Gorbachev, quando dirigia a URSS, proclamava: “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes.” Sob o cobertor da sustentabilidade ambiental e da preservação de áreas indígenas, algo mais atrai a cobiça: a riqueza da floresta, diamantes, ouro e urânio de uma das maiores províncias de minerais nobres do planeta, que é Roraima. A área da Raposa Serra do Sol, que reacende a polêmica, encobre interesses outros além da proteção aos indígenas.
Está mais do que na hora de desvendar o véu que cobre as ONGs que atuam no território. Às que servem a objetivos espúrios se negue licença para funcionamento. Àquelas movidas a idealismo, que não se deixam contaminar pelo vírus do paternalismo, aplausos. Para milhares de brasileirinhas e brasileirinhos, como Denisson, elas abrem a porta da cidadania.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
[Estado de São Paulo, 27/04/2008]
A sigla ONG está na ordem do dia. Ora freqüenta a pauta do bem, ora a agenda do mal, carecendo, por isso mesmo, que a mão da lei baixe em sua seara para separar o joio do trigo. Há, nesse sentido, duas iniciativas em andamento: a CPI das ONGs, a cargo do Legislativo, e um projeto de lei do Executivo para regular a ação de entidades, algumas internacionais, na Amazônia. Sob o foco da lupa estão desvios em entidades que servem de fachada para a locupletação de grupos empresariais e políticos, suspeitas de contrabando das riquezas da região amazônica e ações que ameaçam a soberania nacional. Para onde foram R$ 12,6 bilhões que 7.700 ONGs receberam da União entre 2003 e 2007? O que justifica a existência de 320 entidades não-governamentais na Amazônia, voltadas para a questão indígena, uma para cada mil índios? O ministro da Justiça, Tarso Genro, parece não ter dúvidas: a biopirataria é o objeto de interesse.
O fato é que a filantropia, receita de certas associações sem fins lucrativos, esconde boa dose de “pilantropia”. A degeneração do conceito cresceu na esteira da expansão de demandas e desestruturação dos serviços sociais, conseqüência da transformação de um país predominantemente agrário em grandes concentrações urbanas. Em seu primeiro ciclo, nas décadas de 70 e 80, as organizações não-governamentais se inspiraram em ideário composto por temas de elevado conteúdo cívico: defesa de direitos (a condição feminina, o movimento negro), luta pela democracia política, promoção do meio ambiente, desenvolvimento social, particularmente pela via educacional. Tratava-se de abrir o respiradouro após os anos de chumbo, quando o autoritarismo eliminava qualquer possibilidade de ativismo social. A Constituição de 88 abriu as veias da participação de grupos na arena política. Consagrava a idéia de entidades civis, independentemente de autorização, vedando a interferência estatal em seu funcionamento. Nos anos 90, os movimentos se multiplicaram e, a partir daí, começaram a aparecer curvas e desvios em suas trilhas.
A abertura do ciclo de crises políticas contribuiu para abrir um vácuo social, ensejando a multiplicação de núcleos organizados. Decepcionada com o desempenho de seus representantes no Parlamento, a sociedade passou a buscar no associativismo respostas para suas demandas e a resgatar, de certa forma, a modelagem da democracia direta. Categorias organizaram-se nas frentes de pressão. Empresas reforçaram sistemas de formação e inserção do jovem no mercado de trabalho. O CIEE, a maior ONG brasileira, já capacitou mais de 7 milhões de jovens, encaminhando-os à vida profissional. Ganhando forças, as redes sociais integraram-se ao esforço de complementar a ação do Estado no atendimento de serviços qualificados. As ONGs entraram no processo de formulação de políticas públicas, ampliando sua cobertura e vocalizando interesses de grupos marginalizados. Em 2002, o IBGE contabilizava 276 mil fundações e associações sem fins lucrativos. Somando-se à teia de organizações informais, que não entram nos cadastros oficiais, é razoável supor, hoje, a existência de 500 mil entidades do terceiro setor funcionando como motor da dinâmica social.
Desse montante, milhares integram os esquadrões da pilantragem. Algumas servem de fachada ao assistencialismo político, recebendo verbas do Orçamento da União. Outras, como o MST, ganham polpudos recursos do Estado para agir com virulência, invadindo propriedades e instaurando o império da insegurança, fato de destaque no recente discurso de posse do ministro Gilmar Mendes na presidência do STF. Mas o governo as protege sob o argumento de que suas ações, até as de caráter criminoso, se fazem necessárias para despertar o ânimo popular. No grupo suspeito, as ONGs da região amazônica lideram o ranking. A desconfiança vem de longe. O ex-vice-presidente dos EUA Al Gore chegou a dizer: “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós.” E o ex-todo-poderoso Mikhail Gorbachev, quando dirigia a URSS, proclamava: “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes.” Sob o cobertor da sustentabilidade ambiental e da preservação de áreas indígenas, algo mais atrai a cobiça: a riqueza da floresta, diamantes, ouro e urânio de uma das maiores províncias de minerais nobres do planeta, que é Roraima. A área da Raposa Serra do Sol, que reacende a polêmica, encobre interesses outros além da proteção aos indígenas.
Está mais do que na hora de desvendar o véu que cobre as ONGs que atuam no território. Às que servem a objetivos espúrios se negue licença para funcionamento. Àquelas movidas a idealismo, que não se deixam contaminar pelo vírus do paternalismo, aplausos. Para milhares de brasileirinhas e brasileirinhos, como Denisson, elas abrem a porta da cidadania.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
[Estado de São Paulo, 27/04/2008]
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