Roldão Arruda
O preconceito racial contra os índios está passando por uma fase de recrudescimento, segundo o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), o historiador Márcio Meira. Um dos principais fatores para a mudança seria a expansão econômica, especialmente do agronegócio, em direção às regiões do sertão brasileiro, onde vivem os índios. De acordo com Meira, ainda impera no País uma visão de progresso segundo a qual tudo que impede o seu avanço deve ser destruído.
Outro fator do aumento do preconceito seria o fato de os índios terem assumido o papel de protagonistas na luta por seus direitos, com quase 700 organizações espalhadas pelo Brasil. As elites brasileiras, segundo Márcio Meira, não aceitam esse protagonismo.
A semana na qual se comemora o Dia do Índio foi marcada por protestos e reivindicações. Na sua opinião, os indígenas brasileiros têm razões para comemorações?
Sim. Eles podem comemorar o fato de o governo estar encaminhando para o Congresso, neste mês, o projeto de lei de criação do Conselho Nacional de Política Indigenista.
O que isso muda?
Muda as relações do Estado com os índios. Até o ano passado não existia nenhuma participação indígena direta na discussão de políticas públicas voltadas para suas comunidades. O presidente Lula então criou, por decreto, uma comissão nacional, com participação indígena, que passou a analisar essas políticas. Também coube a essa comissão preparar o projeto de lei que será enviado ao Congresso. Se for aprovado, as políticas serão definidas numa comissão paritária - com metade dos assentos ocupados por representantes do governo e a outra metade pela sociedade civil: os índios e os representantes de organizações que trabalham com eles.
ONGs terão assento na comissão?
A maioria dos representantes da sociedade civil será indígena. Os outros setores terão dois assentos. É importante dizer que essa comissão é uma reivindicação indígena. Por isso acho que há motivos para comemorar.
Mas a reivindicação maior deles é o Estatuto do Índio.
Isso eles não podem comemorar. O projeto do estatuto foi apresentado ao Congresso há quase 20 anos e até hoje continua lá. O estatuto em vigor é de 1973 e ficou anacrônico, especialmente após a Constituição de 1988, que mudou o conceito de relação entre o Estado e os povos indígenas. A Constituição deu direitos aos índios, reconhecendo-os como diferentes e dando-lhes o estado de cidadãos plenos.
O senhor acha que a população lida bem com essa questão da diferença cultural?
Em Boa Vista, capital de Roraima, Estado onde os índios reivindicam a criação do território Raposa Serra do Sol, é comum ouvir manifestações contra eles. São quase sempre qualificados como preguiçosos.
Ainda persiste um preconceito muito grande contra os índios. É possível perceber uma visão racista e uma intolerância cultural, principalmente nas cidades onde a presença indígena é maior e mais próxima.
Essa intolerância estaria aumentando?
O preconceito tinha recuado nos anos 80, nos debates da Constituinte de 88, mas está voltando na forma de uma onda conservadora. Isso deve-se em parte ao desconhecimento da realidade indígena. Nas escolas ainda se fala dos índios de forma carregada de estereótipos e clichês. Eles são apresentados como se ainda vivessem no passado. São vistos como preguiçosos, incapazes, inferiores. É o caldo de cultura propício ao preconceito.
No debate sobre a Raposa Serra do Sol, uma crítica recorrente refere-se à manipulação dos índios, que estariam sendo guiados por ONGs, especialmente do exterior.
Isso faz parte do preconceito, da idéia de que os índios são primitivos, incapazes de ter opinião. Esse discurso sobre as ONGs internacionais é o discurso da dominação política, que as elites brasileiras utilizaram todas as vezes que a população mais pobre se manifestou como protagonista. Sempre disseram que havia alguém por trás dos movimentos operários, das ações das populações miseráveis da zona rural. O próprio presidente Lula foi vítima desse preconceito quando liderou movimentos sindicais no ABC, nos anos 70. Diziam que não tinha estudos.
Mas existem muitas ONGs estrangeiras atuando na Amazônia.
Não importa saber se são estrangeiras ou não, uma vez que a legislação brasileira prevê a atuação dessas organizações. O importante é saber quais são sérias, quais respeitam a legislação brasileira. As que não respeitam devem ser punidas e combatidas. Tem que separar o joio do trigo. Pelas leis do País, as ONGs internacionais devem ter escritório estabelecido no Brasil, assim como as empresas internacionais que vêm para cá e podem comprar terras.
Por qual motivo o preconceito contra os índios estaria aumentando?
Há vários fatores envolvidos. Um dos principais é a expansão econômica pelo território nacional. O Brasil dos últimos 20 anos se transformou radicalmente do ponto de vista da ocupação territorial, com um forte movimento de migração para os sertões brasileiros, para os lugares onde os índios vivem. Isso foi estimulado de maneira desenfreada na ditadura militar e continua até hoje. Estão indo para lá desde migrantes pobres, garimpeiros, pessoas em situação econômica vulnerável, até grandes grupos do agronegócio. A visão de progresso deles é de cem anos atrás, com a destruição da natureza e das pessoas que atravessam seu caminho.
Parece ser mais um caso de descompasso entre a Constituição e a situação real.
É uma situação anacrônica. A nossa legislação sobre preservação ambiental e respeito aos direitos indígenas é uma das melhores do mundo, dentro dos princípios democráticos. Mas na realidade temos setores que pressionam e ameaçam tanto o meio ambiente quanto as comunidades indígenas, com uma visão precária de democracia e exercendo atividades ilegais.
Os grupos que se opõem à criação da Raposa Serra Sol dizem que não existiam índios na região. Teriam sido levados pelos padres do Conselho Indigenista Missionário.
Sou historiador, com especialização em história da Amazônia, e já fui diretor do Arquivo Histórico do Pará. Posso afirmar com convicção que os índios macuxi, ingaricó, taurepang, uapixana e outros grupos estão na região há muito tempo. Existem registros da presença deles desde quando os primeiros portugueses chegaram na Amazônia, no início do século 17. Esses documentos podem ser encontrados em arquivos de Portugal e no Brasil. Na segunda metade do século 18, um militar português, Manoel da Gama Lobo D’Almada, esteve na região com a missão de levantar dados geográficos e produzir mapas. Foi o primeiro geógrafo militar a andar por ali e fez questão de registrar nos mapas a presença das aldeias indígenas.
Também se argumenta que os índios de Roraima não precisam de 1,7 milhão de hectares porque já são civilizados, não vivem mais da caça e da pesca. Estariam aculturados.
O conceito de aculturamento é do século 19. Está ultrapassado. A cultura humana é interrelacional: a partir do momento em que uma cultura entra em contato com outra, ambas vão influenciar e sofrer influências. Mas não vão deixar de existir. Nossa civilização foi influenciada pelos índios e pelos negros e por isso somos diferentes dos portugueses. Mas o indígena continua indígena, mesmo que use terno e gravata e tenha máquina fotográfica digital.
Nas críticas dos militares à política indigenista, fala-se que existe muita preocupação em criar territórios indígenas, que depois são esquecidos pelo poder público.
Nos anos 70, quando alguns grupos indígenas foram praticamente dizimados, no processo de ocupação desenfreada da Amazônia, existiam 250 mil índios no País. Em 2001 o IBGE constatou que eram 750 mil. E provavelmente no próximo censo vamos ter uma população de aproximadamente 1 milhão. Isso ocorreu porque a sociedade brasileira e o Estado deram condições para a sobrevivência física e cultural dessas populações. Os distritos sanitários, mesmo com todas suas deficiências, serviram para a vacinação e proteção contra doenças epidêmicas que provocavam alta taxa de mortalidade.
A polêmica em torno da Serra do Sol não está na sua criação, mas na forma. Por que a insistência na constituição de um território único e contínuo? Por que os índios não podem ter terras divididas em ilhas, com a presença de grupos não-indígenas entre elas?
Toda terra indígena é contínua. Os índios não vivem em ilhas territoriais. Se alguém se manifestar dizendo que as terras da Raposa não podem ser contínuas vai pôr em dúvida todas as terras indígenas do País - porque todas são contínuas.
Por quê?
Porque a floresta na Amazônia tem uma enorme diversidade ambiental. Não é homogênea, com pensam as pessoas que não conhecem a região. Há lugares alagados, serras, campinaranas, áreas de solo arenoso, nas quais ninguém consegue morar. Os índios vivem em lugares específicos, onde conseguem ter atividades agrícolas. Mas usam os outros lugares para coleta de frutas, de ervas medicinais, de acordo com seus usos e tradições, que devem ser respeitados, como diz a Constituição do Brasil. O Monte Roraima, que fica dentro da área da Raposa, não tem nenhum morador em cima dele, nem nas suas imediações. Mas ele é essencial para a identificação do território tradicional dos macuxis e dos outros povos que vivem ali: é o local sagrado deles, o local onde, segundo suas tradições, a humanidade surgiu. O Monte Roraima está para eles como a região do Tigre e do Eufrates, no Oriente Médio, está para a nossa sociedade ocidental. A região é tão importante para nós que nos revoltamos quando são destruídos monumentos arquitetônicos de suas antigas civilizações.
Como tem sido as relações entre índios e militares na região?
Se existe um segmento público que conhece bem a história dos índios por lá é o Exército. Os militares foram os primeiros a chegar. No início iam para matar os índios. Mas isso foi nos séculos 17 e 18. Depois disso estabeleceram relações de cooperação em toda a faixa de fronteira. São relações históricas. Foi o marechal Cândido Rondon que defendeu pela primeira vez a idéia de que temos que proteger os índios. Ele dizia: Morrer, se preciso for. Matar, nunca. Foi seu grande legado.
E quanto à afirmação, feita por militares, de que as terras indígenas abrem vazios populacionais e tornam mais vulnerável as faixas de fronteira do País?
A presença do Exército na faixa de fronteira é uma obrigatoriedade constitucional. E os índios nunca se opuseram a isso. Qualquer terra indígena sempre estará aberta às Forças Armadas na sua tarefa de defesa das fronteiras. Os índios nunca representaram nenhum impedimento. É importante assinalar que as terras indígenas são propriedade da União Federal e, portanto, sempre abertas às Forças Armadas. Outro dado importante: mais da metade do contingente do Exército que serve na fronteira é formado por soldados indígenas. Recentemente, quando madeireiros peruanos invadiram o território do Acre, foram os índios que descobriram a presença deles e avisaram a Funai, que por sua vez alertou as Forças Armadas.
O senhor disse que as terras indígenas são terras da União. Os arrozeiros que estão defendendo suas terras na região não têm títulos de propriedade?
Não. São invasores. Começaram a comprar as terras de forma ilegal, depois que a região já tinha sido declarada território indígena.
[O Estado de São Paulo, 20/04/2008]
Indígenas são apresentados como se ainda vivessem no passado e vistos como preguiçosos e incapazes
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postar um comentário