Uma caixa de Pandora na Europa


Kosovo, Bósnia, Sérvia, Croácia e Montenegro emergiram nos noticiários dos últimos anos quais fantasmas a agitar a paz européia. Ainda paira no ar um recente lance desse jogo dramático: a contestada declaração de independência do Kosovo. Na semana passada, George W. Bush circulou pela região fazendo lobby por Kosovo e pela entrada desses novos países na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), alimentando a guerra fria com Vladimir Putin.
Vale a pena olhar com atenção para o processo de desconstrução da antiga Iugoslávia. Ele destampou uma verdadeira caixa de Pandora, exibindo processos sangrentos de enorme complexidade étnica, religiosa e política e apresentando um desafio à ordem internacional e à estrutura geopolítica européia. A região é um dos umbigos do mundo, onde as três grandes religiões tradicionais do Mediterrâneo - o Catolicismo Romano, a Ortodoxia do Oriente e o Islã Sunita - se engalfinharam e acabaram marcando a ferro e fogo grandes linhas divisórias européias.
A civilização otomana havia usado sua condição de classe dominante sobre os eslavos do sul para induzir um longo processo de islamização de populações locais. Populações da Bósnia-Herzegovina e do sudoeste da Sérvia se converteram ao Islã, passando a se designar turcos e a se considerar etnicamente diferentes dos sérvios ortodoxos e católicos. Após a 1ª Guerra Mundial, sérvios, croatas e eslovenos tentaram o encaminhamento da sua questão nacional com a criação de um reino. Mas a Constituição de 1921, centralizadora e baseada no modelo francês, trouxe sérias incompatibilidades entre os seus integrantes, iniciando as tensões separatistas.
Durante a 2ª Guerra, as intervenções de Alemanha e Itália resultaram na completa desintegração da região. E os movimentos de resistência atiçaram a guerra civil. De um lado, os tchetniks, monarquistas, inimigos dos croatas, fascistas e anticomunistas, eram um núcleo sérvio; de outro, os partisans, integrantes do Partido Comunista Iugoslavo de Josip Broz “Tito”, buscavam a união de forças populares para a luta antifascista.

A posição de Londres, favorável a Tito, acabou por lhe permitir, além da preservação territorial da Iugoslávia, uma liberdade de manobra que neutralizou as pretensões da URSS de repartir o país entre Ocidente e Oriente. O governo de coalizão entre comunistas e democratas, constituído por Tito em 1945, se baseava num Estado iugoslavo federal e almejava o equilíbrio de seus vários povos e dos diferentes desígnios nacionais. A ruptura entre Tito e Stalin, em 1948, criou a possibilidade de se encontrarem soluções inovadoras para questões internas e externas, incluindo princípios de autogestão e o não-alinhamento. Mas, após um período de relativo sucesso econômico, um quadro de estagnação e inflação acabou se estabelecendo no país. Num cenário de “equilíbrio mágico”, em que o debate público era constrangido ao máximo, o crescer das tensões conduziu o país a grandes insatisfações: dos sérvios, por verem fragmentada sua unidade; dos croatas, por terem negada sua especificidade cultural; dos albaneses, por não conseguirem a autonomia plena; e dos eslovenos, por considerarem abusivos os subsídios às regiões desfavorecidas.
A Iugoslávia, uma federação de seis Repúblicas, transformava-se numa confederação de seis Estados e duas Províncias e caminhava para a desintegração. A morte de Tito, em 1980, apressou o colapso. A partir de meados de 1989, foram realizadas reformas econômicas e políticas de transição para uma economia de mercado, num esforço de abrir espaço para uma entrada da Iugoslávia na União Européia (UE). Mas as primeiras eleições livres e multipartidárias de 1990 consolidaram a autonomia das seis Repúblicas e novas divergências irreconciliáveis. O Estado federal não tinha mais futuro e a fragmentação parecia inevitável. No final de 1991, a Alemanha, atropelando a orientação da UE e da ONU de preservar a unidade territorial iugoslava, criou um caso consumado, reconhecendo a independência da Eslovênia e da Croácia. A Rússia de Boris Yeltsin manteve a tendência tradicional de apoiar os sérvios, neutralizando a oposição interna, que o acusava de ceder ao Ocidente. Já Washington se colocou ao lado dos muçulmanos bósnios, na tentativa de reduzir a influência dos países islâmicos fundamentalistas; e, usando a crise para afirmar seu poder, exigiu que a Otan - seu braço armado na Europa - tivesse papel preponderante tanto na guerra na Bósnia-Herzegovina quanto nos conflitos no Kosovo.

Os europeus cederam. Foi um fracasso e pouco se fez para evitar as ofensivas e os massacres batizados de “limpezas étnicas”. Os efeitos devastadores sofridos pelo emprego em larga escala de bombardeios e tecnologia militar sofisticada deixaram a Sérvia profundamente ferida e a UE assustada, consciente de que a instabilidade política, social e econômica que emana dos Bálcãs pode atingir seu espaço geopolítico.
Diante da fragmentação consumada, o Pacto de Estabilidade para a Europa do Sudeste, de 1999 - novamente sob iniciativa da Alemanha, mas agora com o apoio da UE - lançou projetos de cooperação voltados para a integração dos novos países balcânicos. Mas um novo problema grave surgiu. A Cúpula de Salonica, em junho de 2003, exigiu plena cooperação dos países da ex-Iugoslávia com o Tribunal Penal de Haia. O que significava a entrega dos acusados de crimes de guerra perpetrados nos conflitos balcânicos. Houve óbvia resistência de Sérvia, Croácia e Bósnia-Herzegovina em colaborar.

Do jeito que estão posicionadas as coisas, as promessas de adesão ao bloco europeu vão se arrastar por muitos anos e constituirão mais um nó da decisão sobre alargamento da Europa, já suficientemente complicado com a questão da Turquia.

O autor: Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional (IRI-USP), presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), é autor de vários livros, entre os quais, O Mito do Progresso (Editora Unesp)

[O Estado de São Paulo, 19/04/2008]
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