Ex-professora da USP, Mary del Priore diz que noticiário sobre a menina causa comoção porque a morte na sociedade está "higienizada", situação que foi rompida com o caso
O FIM DOS RITUAIS religiosos em torno da morte pode explicar a comoção causada pela morte de Isabella. A "pequena hipótese" para explicar o fenômeno é da historiadora Mary del Priore, ex-professora da USP e autora de 25 livros, entre os quais uma "História da Criança no Brasil". "Numa sociedade em que Deus não está mais presente, é muito complicado entender um sacrifício dessa ordem", diz, citando os casos de Isabella e de João Hélio.
O destaque que a mídia dá ao caso Isabella, na visão da historiadora, resulta da mudança no papel da criança: "As pessoas têm menos filhos e concentram neles todas as suas esperanças. O filho é a identidade da família, é o que dá continuidade a uma linha de sangue, de nome. É um filharcado". (MARIO CESAR CARVALHO)
FOLHA - Por que a morte de uma menina de 5 anos provoca tanta comoção?
MARY DEL PRIORE - Eu tenho uma pequena hipótese. O nosso país foi marcado por horríveis taxas de mortalidade infantil. E até o século 19 o que havia junto com essa mortalidade era uma série de rituais religiosos que faziam com que essa passagem fosse revestida de algum simbolismo. Havia muitas crianças morrendo no passado, mas os viajantes estrangeiros registravam que essas crianças eram pintadas em bandejas e os escravos carregavam essa imagem nas ruas.
FOLHA - A morte da criança já era um episódio...
DEL PRIORE - Eu não diria que era marcante, mas estava intimamente ligado a uma leitura existencial que dizia que a morte era a passagem para um outro lado, era o momento em que você iria pagar os seus pecados. Como a criança não tinha tido tempo para pecar, ela acabava se transformando naquele anjinho que existe até hoje na tradição folclórica nordestina.
Isso tudo estava associado a uma visão de mundo em que o religioso está presente. Você percebe que no século 19, com a consolidação da família burguesa, com a criação dos cemitérios, a criança ganha um destaque que não tinha. Nas igrejas do século 18 não há túmulos de crianças. Mas no século 19 você tem túmulo de criança.
FOLHA - O que determinou essa mudança?
DEL PRIORE - O que chama a atenção no caso da Isabella e no daquele menino que foi tragicamente arrastado pelas ruas do Rio, o João Hélio, é que numa sociedade em que Deus não está mais presente, onde a morte não está mais revestida dessa ritualidade religiosa, é muito complicado entender um sacrifício dessa ordem.
FOLHA - A sra. acha que as pessoas tratam essas mortes como um sacrifício?
DEL PRIORE - Acredito que sim. Porque a morte na sociedade contemporânea está higienizada e asseptizada. As pessoas partem para o além como fumaça. Elas são cremadas, você não vê o preparar do defunto. Perdeu-se esse contato com a morte. Essa situação é rompida por um corpo que é destroçado, que aparece no jardim de um prédio de apartamentos. É um rompimento com essa tradição da morte higienizada. Ao mesmo tempo, num mundo sem Deus, a compreensão desse fato fica cada vez mais difícil.
FOLHA - A comoção seria um indício desse assombro?
DEL PRIORE - Não. Eu diria que o mito da morte asseptizada fica rompido quando você vê uma criança morta. É como você ver os mortos do Carandiru. O que choca ali? É que você vê o corpo antes de ele ser submetido a essa higienização, a essa cosmetologia que a sociedade criou em torno da morte.
FOLHA - O pai e madrasta sofreram ameaças na última sexta. Havia um espírito de linchamento no ar. De onde vem esse sentimento?
DEL PRIORE - Como somos uma sociedade laica e não temos medo do julgamento final, acabamos imaginando que, se Deus não vai fazer justiça, é melhor fazer por aqui. Como temos instituições inoperantes e um governo para quem a questão da violência não tem nenhum significado, as pessoas acabam transferindo para as próprias mãos a necessidade de fazer justiça.
FOLHA - Por que a morte de criança de classe média tem tanto destaque na mídia?
DEL PRIORE - Pela posição da criança na sociedade. Antigamente havia famílias muito grandes, não só de filhos, mas de netos e sobrinhos. Com o avanço do capitalismo e o adelgaçamento da família burguesa, as pessoas têm menos filhos e concentram neles todas as suas esperanças. O filho é a identidade da família, é o que dá continuidade a uma linha de sangue, de nome. É um filharcado, como dizem alguns psicanalistas. Hoje temos o império da criança, uma criança autoritária, ditatorial e cercada de toda sorte de atenção. Há também razões catárticas.
FOLHA - Num mundo sem Deus, a mídia faz a catarse?
DEL PRIORE - Sem dúvida alguma. A mídia serve para tudo. Quando você não tem um código de ética muito claro e o jornalista não consegue se afastar do seu objeto, eu acredito que ele vá ajudar a transmitir a voz daquilo que a população deseja. E o que a população está dizendo é que a nossa Justiça é inoperante, que a polícia é ineficaz e que vivemos numa sociedade cada vez mais violenta.
FOLHA - Quando a criança vira o reizinho do lar?
DEL PRIORE - É com a consolidação da família burguesa, a partir do século 19 na Europa. É um modismo que migra para o Brasil. Esse modismo vai se implantando pela força do consumo, por força da redução das famílias, que torna o que uma grande historiadora francesa, Michèle Perrot, chama de a mão invisível da sociedade. A família passa a ser o grande organizador da sociedade, determinando o que é certo e o que é errado. É curioso como isso tudo vem da Inglaterra. São os viajantes ingleses, são as "nurses", as enfermeiras inglesas que começam a trabalhar na França e nos países ibéricos e começam a levar a noção de "kindgarden" [jardim da infância], de que deve haver um lugar só para crianças, de que há um aprendizado infantil que deve ser valorizado, a valorização do corpo e do esporte. A partir dos anos 1830 e 1840 há uma verdadeira febre em torno da família burguesa e a consolidação do papel da criança.
FOLHA - Por que as pessoas reagem de forma diferente quando morre uma criança pobre e outra de classe média?
DEL PRIORE - Acho que o Brasil é um país tão desigual que há desigualdade no luto. O luto de uma criança pobre, anônima, é igualmente anônimo. A perda de uma criança pobre na favela, vítima de bala perdida, ou a morte de crianças vítimas da dengue no Rio não causaram tanta comoção quanto a morte do João Hélio e da Isabella.
FOLHA - Na construção dessa criança moderna há uma redução da violência, das surras.
DEL PRIORE - Acho que é um anacronismo nosso imaginar que o castigo físico, que os nossos avós levavam, era considerado uma forma de desamor. Muito pelo contrário. Em sociedades patriarcais, o castigo físico era para corrigir e moralizar. Era, inclusive, uma forma de amor.
[Folha de São Paulo, 20/04/2008]
Gostei dessa frase: “Como temos instituições inoperantes e um governo para quem a questão da violência não tem nenhum significado...”