O encontro de paz promovido pelo presidente Bush para israelenses e palestinos ignora uma verdade dolorosa - uma que já estamos vivendo no Oriente Médio
Aluf Benn, em Tel Aviv
Nesta semana, o presidente Bush reunirá uma conferência internacional em Annapolis, Maryland, para promover a "solução de dois Estados" para israelenses e palestinos. As reuniões e proclamações nobres visando tal meta, entretanto, terão pouca relação com a realidade aqui no Oriente Médio. Basicamente, Bush está atrasado demais. Para a maioria dos israelenses, a solução de dois Estados já existe.
Quando eu cresci perto de Tel Aviv nos anos 70, os palestinos da Cisjordânia e de Gaza eram uma parte indispensável do ambiente. Muitos deles trabalhavam em construções, ajudando a transformar as plantações de morango de minha cidade natal em um subúrbio moderno. Outros permaneciam toda manhã em uma fila no cruzamento da estrada da cidade -uma visão comum nas cidades israelenses na época- aguardando pela chance de conseguirem um trabalho diário. Os palestinos com mais sorte conseguiam trabalho de frentista em postos de gasolina, de lavadores de pratos em bares e restaurantes ou como mecânicos em oficinas de automóveis. Eles serviam clientes israelenses e recebiam alcunhas hebraicas por seus empregadores. Assim, Ghazi se tornou "Roni" e Mustafa se transformou em "Moti". Apesar do problemático sistema de classes, muitos destes trabalhadores experimentavam ao menos um certo grau de integração.
"Os árabes", como eram chamados, preencheram o setor de serviços do país por duas décadas depois de Israel ter ocupado a Cisjordânia e Gaza em junho de 1967. Mas privada de direitos civis e políticos, esta classe inferior se rebelou em dezembro de 1987. Chamada de primeira intifada, o levante palestino mudou abruptamente a realidade de Israel. Os trabalhadores palestinos desapareceram de vista, primeiro os jovens, depois os mais velhos.
Nascida poucos meses depois do estouro da primeira intifada, minha filha cresceu em um ambiente muito diferente do que o meu. Ela nunca conheceu um palestino da Cisjordânia ou de Gaza. Atualmente com 19 anos, ela vê nossos vizinhos palestinos apenas na TV e os vê apenas como estranhos. Ela está muito mais familiarizada com nomes conhecidos e personagens de sitcom americanos do que com as pessoas que vivem a 24 quilômetros ao leste de sua casa em Tel Aviv.
Minha filha está longe de ser única com tal experiência. Os israelenses de hoje que vivem confortavelmente na área de Tel Aviv raramente cruzaram a "Linha Verde" que separa Israel da Cisjordânia. Nos tempos pré-intifada, muitos israelenses viajavam a curta distância até as colinas para comprar móveis baratos em Bidyah ou para consertar seus carros em oficinas baratas em Jenin. Não mais. Desde que a muito mais sangrenta segunda intifada estourou em setembro de 2000, todas as cidades e aldeias palestinas ficaram fora dos limites para os israelenses. Além disso, poucos israelenses visitam mesmo os controversos assentamentos israelenses nas colinas. (Igualmente, seus habitantes religiosos, altamente ideológicos, se sentiriam deslocados em Tel Aviv, assim como os palestinos.) Agora, o único motivo para ir a Nablus ou Ramallah, ou para algum assentamento israelense nos arredores delas, seria em serviço militar. Caso contrário, entrar nestas cidades é uma perspectiva com risco de vida para israelenses.
Mesmo a Cidade Velha de Jerusalém, oficialmente uma parte soberana de Israel, perdeu seu apelo para a maioria dos israelenses. Na infância e adolescência, eu percorri os becos, mercado e lugares sagrados da Cidade Velha inúmeras vezes com minha família, colegas de classe e amigos. Nós caminhávamos até o topo do muro otomano, ou comíamos homus no Abu Shukri e tomávamos chá no bairro cristão. Imagine visitar uma das maravilhas mais exóticas do mundo a menos de uma hora de carro de casa! Mas poucos israelenses que cresceram na realidade pós-intifada sequer reconheceriam esses lugares agora. Atualmente, eu visito o mercado apenas quando tenho visitantes estrangeiros. Para muitos dos meus pares em Tel Aviv, a Cidade Velha é ainda mais remota que Nova York, Londres ou a Tailândia. Para eles, a parte judaica da cidade é suficiente. Eles consideram Jerusalém Oriental, com seus moradores palestinos, estranha e assustadora demais para visitar.
A verdade é, o divórcio popular que se consolidou entre israelenses e palestinos tem um profundo significado político. Se você não vai para a Cisjordânia ou Gaza exceto a serviço militar, então, para todos os fins práticos, estes lugares estão do outro lado da fronteira. Estado oficial ou não -não importa. Apenas esquerdistas radicais e fãs ardorosos do processo de paz ainda falam sobre "a ocupação". A maioria dos israelenses, que nunca testemunhou suas feias manifestações - os checkpoints, as proibições de viagem, as demolições de casas - mal se dá ao trabalho de pensar em ocupação.
Esta paralaxe política explica um paradoxo na opinião pública israelense. As pesquisas indicam um forte apoio entre os israelenses pelo estabelecimento de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza. Mas este apoio da maioria não se traduz em ação. Os últimos três primeiros-ministros israelenses - Ehud Barak, Ariel Sharon e o atual, Ehud Olmert - declararam que um Estado palestino é do interesse de Israel. Mas na realidade sua criação parece mais remota do que nunca. A Cisjordânia é governada de forma híbrida: pelas forças de segurança israelenses, que também controlam as fronteiras externas; pelos colonos israelenses e seus órgãos municipais; pela disfuncional Autoridade Palestina, que presta os serviços públicos; e pelos grupos terroristas. Gaza atualmente é controlada pelo Hamas, mas com Israel basicamente fornecendo serviços básicos como alimentos e eletricidade. É uma mistura complicada, uma colcha de retalhos de autoridades e responsabilidades. Mas, por mais carentes que algumas partes das áreas palestinas estejam atualmente, para a maioria dos israelenses a situação parece de alguma forma estar funcionando.
Segundo o ponto de vista da maioria dos israelenses, portanto, "se não está quebrado, não conserte". Apoiar o Estado palestino em princípio e defendê-lo em pesquisas de opinião não custa nada. Mas por que se dar ao trabalho de arcar com os custos de implementar de fato a solução de dois Estados se ela já existe de fato? Uma retirada israelenses da Cisjordânia, um pré-requisito para um Estado palestino lá, obrigaria a relocação de dezenas de milhares de colonos, que poderiam perturbar a ordem pública e mesmo recorrer à violência. Também significaria que as forças armadas israelenses teriam que ceder controle das colinas com vista para os centros populacionais israelenses e um aeroporto internacional, os expondo aos foguetes dos militantes palestinos e a homens-bomba.
Sob tais circunstâncias, mudar o status quo é pouco atraente, seja para melhor ou para pior.
O isolamento dos israelenses dos territórios ocupados não foi apenas uma reação voluntária à fúria, violência e aos ataques terroristas mortais dos palestinos. É um esforço deliberado do governo. Nos últimos 15 anos, todos os governos israelenses implementaram uma política de "separação", visando distanciar e proteger grande parte da sociedade israelense da realidade desagradável além da Linha Verde.
Em 24 de maio de 1992, Fouad el Umarin, um palestino de 18 anos de Gaza, atacou Helena Rapp, uma estudante israelense de 15 anos a caminho de sua escola em Bat Yam, perto de Tel Aviv, a apunhalando até a morte. Na época, Israel estava a apenas semanas de uma eleição crucial, na qual o líder trabalhista Yitzhak Rabin disputava com o primeiro-ministro em exercício, Yitzhak Shamir, o líder do Likud. Rabin prometia criar "autonomia" palestina na Cisjordânia e em Gaza, enquanto Shamir, o último crente na Grande Israel, defendia a manutenção dos territórios sob plena ocupação israelense. Sua idéia de resposta à primeira intifada foi a construção de mais assentamentos judeus na Cisjordânia.
O assassinato de Helena Rapp foi seguido por três dias de violentos protestos antipalestinos em Bat Yam. Turbas destruíram propriedades e bateram em transeuntes que pareciam árabes. Isto deu à campanha de Rabin um ás. "Nós temos que tirar Gaza de Tel Aviv", declarou o ex-líder militar, que era respeitado pelos israelenses como "Sr. Segurança".
Em agosto de 1993, o recém-eleito Rabin assinou o acordo de Oslo com o líder palestino Iasser Arafat. A Autoridade Palestina, sob a liderança de Arafat, foi formada em Gaza e em partes da Cisjordânia, enquanto Israel mantinha sua responsabilidade pela segurança, incluindo a dos assentamentos judeus ali. O Hamas, que era contrário ao processo de paz, lançou uma onda de terror - primeiro com facas, depois com homens -bomba.
A resposta de Rabin foi acelerar o processo de separação. Mesmo antes de Oslo, seu governo declarou um "fechamento completo", proibindo palestinos de entrarem em Israel e trabalharem lá. Então construiu estradas especiais para os colonos judeus, os poupando da viagem desagradável e cada vez mais perigosa pelas cidades palestinas vizinhas. (Nos últimos anos, Israel criou dois sistemas rodoviários separados na Cisjordânia, proibindo os palestinos de usarem as estradas "israelenses".) Uma cerca foi construída ao redor da Faixa de Gaza, a isolando de Israel, que ainda mantinha mais de 20 assentamentos israelenses do outro lado.
Essas medidas provaram ser irreversíveis. Em uma mudança chave, Israel começou a importar trabalhadores da Tailândia, Romênia e China para substituir os palestinos nos campos e nos andaimes. Independente da mão-de-obra palestina, assim como mais aceita globalmente graças ao processo de paz de Oslo, a economia de Israel se voltou rapidamente para o Ocidente e novos mercados se abriram para ela na Ásia e no antigo Bloco Soviético. Seus laços remanescentes com a economia palestina, que estava minguando, envolvia exportações de produtos e serviços básicos.
Uma segunda rodada de separação ocorreu sob a liderança de Ariel Sharon, que assumiu o governo em 2001. Sharon foi um pária político por muitos anos, mas sua eleição foi a resposta dos israelenses furiosos e ameaçados ao colapso do processo de paz e à segunda intifada, que, diferente do furioso atirar de pedras da primeira, estourou com armas e atentados a bomba suicidas. Foi uma ironia histórica de primeira o fato de Sharon, um arquiteto do projeto de assentamentos e do controle a longo prazo de Israel sobre os territórios ocupados, ter feito mais que seus pares para reduzi-la. Enfrentando a pior onda de atentados suicidas em 2002, Sharon concordou de forma contrariada a construir uma barreira de segurança para separar Israel da Cisjordânia. Apesar de sua rota, que deixa um décimo do território da Cisjordânia no ocidente, assim como lado israelense de forma controversa fora de Israel, a maioria dos israelenses vêem "a cerca" como uma bênção. Sua construção coincidiu com uma redução acentuada nos atentados suicidas, dando aos israelenses uma sensação renovada de segurança. Mais importante, ela criou uma divisão física entre os dois lados. À medida que se aproxima de sua conclusão, a obra torna cada vez mais impossível simplesmente cruzar as colinas até a Cisjordânia e vice-versa.
Em 2005, Sharon realizou seu empreendimento mais ousado, a "desocupação" de Gaza. Ele ordenou a remoção de todos os assentamentos israelenses e dos postos militares, recuando para a fronteira pré-1967. Apesar dessa medida ter sido apoiada pela maioria dos israelenses na época, muitos passaram a questioná-la posteriormente, quando a área evacuada se transformou em um bastião de simpatizantes do Hamas e uma base para ataques com foguetes contra as cidades e aldeias de fronteira israelenses. Todavia, a desocupação selou Gaza atrás de muros altos, e nos últimos dois anos Israel buscou cortar seus laços e responsabilidades remanescentes ali. O governo declarou Gaza "uma entidade hostil" e marcou as passagens como postos de fronteira.
As medidas de separação cada vez maiores, a independência econômica em relação aos palestinos e acima de tudo as barreiras físicas isolaram os israelenses como nunca antes do "outro lado". Isto permitiu a Israel florescer como um lugar de primeiro mundo, um enclave ocidental no coração de um mundo árabe altamente estagnado.
Mas esta situação tem um preço. Ao permitir que os israelenses ignorem seus vizinhos inamistosos e a viverem sob a ilusão de que seu país existe em algum lugar na Europa ou na América do Norte, o status quo reduz a motivação dos israelenses para se chegar a um meio termo e à paz com os palestinos. Para observadores da deterioração das condições dos palestinos nos territórios ocupados, tal sintoma de negação israelense pode parecer moralmente repugnante. E à medida que cresce a privação naquelas áreas, o status quo provavelmente não será sustentável -um caos ainda maior poderá surgir e se tornar um problema ainda maior para o governo e povo de Israel.
Talvez mais significativamente, o status quo solidificado impeça uma eventual aceitação do Estado judeu no Oriente Médio, uma meta já difícil. Em um momento em que o Irã e seus aliados buscam minar a legitimidade de Israel, e mesmo buscar ativamente sua destruição, o isolamento auto-imposto por Israel pode ser o maior risco de todos.
Tradução: George El Khouri Andolfato
[Der Spiegel, 27/11/2007]
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