Livro reescreve a história dos EUA para fazer propaganda do neoconservadorismo

Segundo a história da política externa dos Estados Unidos do século 19, escrita por Robert Kagan, as ações norte-americanas são motivadas pela moral, e não pelo auto-interesse. Como trabalho histórico o livro não vale nada, mas pode interessar aos estudiosos da propaganda neoconservadora

Michael Lind
Robert Kagan é um dos membros de um pequeno grupo de autores neoconservadores que são lidos devido à influência que exercem sobre o governo Bush. No seu livro de 2003, "Of Paradise and Power" ("Do Paraíso e do Poder"), ele apresentou a explicação famosa segundo a qual os norte-americanos são de Marte, enquanto os europeus são de Vênus. Ele argumentou que os europeus pusilânimes, livres da tarefa de se defender devido à confiança no poder dos Estados Unidos, gostam de denunciar como militarismo estabanado aquilo que na verdade seria uma avaliação racional norte-americana das realidades do poder mundial.

"Of Paradise and Power" foi uma peça de polêmica neoconservadora disfarçada de política comparada. "Dangerous Nation" ("Nação Perigosa"), o livro mais recente de Kagan, é uma peça de polêmica neoconservadora disfarçada de história das relações internacionais dos Estados Unidos do período colonial à Guerra Americana-Espanhola de 1898 (há a promessa de um segundo volume, focado no século 20).

Os alvos implícitos de "Of Paradise and Power" são os europeus e os norte-americanos que criticaram a Guerra do Iraque e a política neoconservadora de hegemonia unilateral dos Estados Unidos. Os alvos implícitos de "Nação Perigosa" são aqueles indivíduos que argumentam que a Guerra do Iraque - e a estratégia neoconservadora em geral - representa uma ruptura com as tradições de política externa dos Estados Unidos, em vez de se constituir na implementação inevitável e desejável dessas tradições.

Os críticos da grande estratégia neoconservadora e da Guerra do Iraque freqüentemente comparam estes elementos com a Guerra Americana-Espanhola e com o imperialismo naval dos Estados Unidos de um século atrás, denunciando ambos os fenômenos como violações das tradições políticas dos Estados Unidos. "Está muito bem", anda dizendo Kagan. "Eu aceito a comparação - mas inverto a avaliação". Assim, o precedente alegado para o Iraque, a Guerra Americana-Espanhola, torna-se uma "boa guerra" - uma cruzada democrática.

No parágrafo final do seu livro, Kagan conclui: "Muito pouca gente enxergou, ou, quem sabe, tenha desejado enxergar, a guerra como sendo o produto de atitudes norte-americanas profundamente enraizadas no que diz respeito ao lugar do país no mundo. Ela foi o produto de uma ideologia universalista conforme esta se encontra articulada na declaração de independência".

A declaração de independência! Então a fidelidade aos princípios dos Fundadores da Nação teria não só compelido os Estados Unidos a esmagarem e reconstruírem o sul escravista durante e após a Guerra Civil, mas teria também feito com que o país disseminasse a "ideologia universal" de Jefferson e Lincoln ao procurar estabelecer depósitos de abastecimento de carvão no Pacífico, ao roubar a Baía de Guantánamo da Espanha em 1898 - e, presumivelmente, ao invadir o Iraque em 2003.

"Dangerous Nation" é um tratado anti-realista, a primeira história diplomática aceita dos Estados Unidos escrita segundo uma ótica neoconservadora de "Idealpolitik". Ironicamente - ou, talvez, apropriadamente, ao se levar em conta que as origens do neoconservadorismo estão na esquerda anti-soviética - Kagan tem uma grande dívida intelectual para com as histórias de política externa dos Estados Unidos escritas por progressistas e esquerdistas radicais, que dominaram esse campo durante grande parte do século 20.

Aqui, faz-se necessária uma explicação. Os historiadores progressistas tendiam a colocar a culpa pelas guerras norte-americanas nos interesses especiais, culpando os donos de escravos pela Guerra Mexicana-Americana e os fabricantes de munições e financistas pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Os historiadores radicais, por outro lado, eram propensos a ver a política externa de forma mais sistêmica, como o resultado de um impulso inexorável rumo à expansão capitalista.

Tanto os progressistas-moralistas quanto os anticapitalistas radicais tendiam a concordar quanto a uma coisa: os Estados Unidos não se depararam com nenhuma ameaça externa genuína após o fim da Guerra Anglo-Americana de 1812. Portanto, os argumentos baseados em ameaças externas feitos pelos elaboradores de políticas norte-americanas não passaram de propaganda, camuflando os verdadeiros motivos (geralmente econômicos) por trás da expansão dos Estados Unidos.

Uma minoria dos historiadores, composta basicamente por historiadores militares, adota um ponto de vista diferente. Esses historiadores levam a sério a crença dos estadistas e dos soldados norte-americanos nas ameaças externas. As ameaças representadas em diversas ocasiões pela França, o Reino Unido, a Alemanha, o Japão e a União Soviética podem ter sido exageradas ou irreais, mas os elaboradores de políticas norte-americanas acreditavam nelas. A crença desses indivíduos se constitui em uma explicação suficiente para a maior parte das políticas militares dos Estados Unidos, que, ainda quando acabaram beneficiando os empresários norte-americanos, não foram implementadas por causa destes.

Chamem as duas escolas de história de política internacional norte-americana de escola da compulsão interna e escola da ameaça-e-resposta. Uma vê a política externa dos Estados Unidos como a manifestação da dinâmica social interna; a outra, como uma resposta, nem sempre racional, à percepção de ameaças à segurança.

A crítica realista das tradições de política externa norte-americana é uma versão modificada da escola da compulsão interna. Os realistas explicam a história da política externa dos Estados Unidos em termos de um idealismo ingênuo e militante, e não como as maquinações de interesses especiais (os historiadores progressistas) ou a dinâmica do imperialismo (os radicais). Quaisquer que sejam as suas diferenças políticas, os realistas, os progressistas e os radicais tendem a concordar que, como os Estados Unidos não enfrentaram nenhuma ameaça representada por uma grande potência desde os momentos iniciais da história do país, a explicação para a sua política externa precisa ser procurada em alguma compulsão interna - seja ela ideológica ou econômica.

Mas o fato é que pouco ou nada do que os Estados Unidos fizeram no final do século 19 e início do século 20 pode ser entendido a não ser como uma resposta - uma resposta exagerada, em alguns casos, mas ainda assim uma resposta - às ameaças representadas por grandes potências, e especialmente pela ameaça da Alemanha imperial.

Tendo rejeitado a política externa moderada de Bismarck e adotado uma estratégia agressiva de Weltpolitik, o kaiser e os seus assessores na década de 1890 passaram a procurar bases e aliados no México, no Caribe e na América do Sul, bem como em ilhas do Pacífico e em protetorados na China. O rápido crescimento naval da Alemanha inspirou os Estados Unidos. A Alemanha e os Estados Unidos competiram por bases insulares no Oceano Pacífico em Samoa e nas Filipinas, onde, durante a Guerra Americana-Espanhola, a frota alemã ameaçava a norte-americana.

A fim de combinar o poder das frotas do Atlântico e do Pacífico no caso de uma guerra com a Alemanha ou o Japão, os Estados Unidos montaram farsescamente a independência panamenha e construíram às pressas o Canal do Panamá. E foi para negar à Alemanha qualquer desculpa para a ocupação de países caribenhos ou centro-americanos que os Estados Unidos declararam a prerrogativa exclusiva das suas próprias forças armadas de impor a lei internacional em nome dos credores estrangeiros na América Latina. Já em 1903, a marinha dos Estados Unidos fazia planos para prevenir desembarques alemães no hemisfério ocidental por meio da ocupação de ilhas caribenhas estratégicas, um plano implementado por Washington nos anos iniciais da Primeira Guerra Mundial.

É possível prever que no seu segundo volume Kagan venha a alegar que o idealismo puro e o ódio ao militarismo prussiano, ao fascismo e ao comunismo, e não uma tentativa mundana de garantir a segurança nacional e a prosperidade dos Estados Unidos em um ambiente global pacífico, expliquem as intervenções norte-americanas nas guerras mundiais e na guerra fria, seguidas pelas guerras desinteressadas para substituir a ditadura pela democracia no Panamá, na Sérvia e no Iraque. Dotados de um traço do espírito dos jacobinos radicais e dos comunistas soviéticos, neoconservadores como Kagan vêem os Estados Unidos como o centro de uma ideologia militante e universal que precisa ser disseminada pela força das armas. Já os norte-americanos comuns, de forma contrastante, têm sido guerreiros relutantes.

A coruja de Minerva voa ao anoitecer. A tentativa engenhosa, mas inconvincente, de Kagan de reescrever a história dos Estados Unidos a fim de apresentar os norte-americanos como neoconservadores e a Guerra do Iraque como a conseqüência lógica da declaração da independência está destinada ao fracasso, assim como já fracassou aquela política para a qual ele procura fornecer um passado aproveitável. "Dangerous Nation" não tem valor algum para os estudantes da história da política externa dos Estados Unidos. No entanto, será objeto de algum interesse para os estudiosos da história da propaganda neoconservadora.

*Michael Lind é pesquisador da New America Foundation, em Washington D.C., e autor do livro "The American Way of Strategy" ("O Estilo Norte-Americano de Estratégia").
Tradução: UOL


[Prospect, 15/11/2007]
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