Entre leituras liberais, revisionistas e marxistas, a revolução evoca o embate atual que continua a opor direita e esquerda
Francisco Quinteiro Pires
O perigo de ignorar os fatos históricos, quando se aceita passivamente a bitola ideológica, é que eles podem se voltar contra a humanidade, impossibilitada de compreender a dimensão e os matizes do processo histórico, no qual os indivíduos podem influir de fato. Segundo o historiador Edward Acton, da Universidade East Anglia, do Reino Unido, e autor de Rethinking The Russian Revolution (Oxford), três vertentes interpretativas sobre a Revolução Russa se fizeram notar, sobretudo nos meios acadêmicos europeus, durante o século 20 - a soviética ortodoxa, a liberal e a revisionista. A primeira diz que a revolução era inevitável e irreversível e aponta o partido bolchevique como o líder legítimo da ditadura do proletariado e portador do direito de governar para sempre. A segunda entende a Revolução Russa como antidemocrática, um produto de ocasião, “um desvio na estrada da História cujo fim é o capitalismo e a democracia”. Os bolcheviques não passam de manipuladores, donos de aguda inteligência tática e dirigentes de uma massa de indivíduos vulneráveis por viverem um momento histórico de caos e fraqueza do governo. “O czar é considerado incapaz, até maluco, Lênin é apenas um estrategista competente e existe a certeza absoluta de que o regime soviético não tem legitimidade nenhuma”, diz Edward Acton.
“As abordagens soviética ortodoxa e liberal mantiveram um diálogo de surdos”, afirma Acton. “A leitura liberal, que é direitista, afirma que, no embate entre esquerda e direita, o colapso soviético representa a derrota esquerdista, e o socialismo é tido como uma experiência exclusiva da URSS”, ele continua. Até a esquerda crítica ao regime dos sovietes se sentiu derrotada. A linha revisionista rompe essa falta de diálogo, ao avaliar que a ascensão dos bolcheviques - condutores das classes operária e campesina - para implantar o socialismo é um evento histórico que não pode ser tratado como um golpe de Estado dado por uma minoria, mas como uma revolução de massas, feita de baixo para cima, por um povo frustrado - os camponeses reivindicavam o acesso à propriedade fundiária e os operários, a conquista de melhores condições de vida. “Para os revisionistas, a revolução seria feita mesmo se não eclodisse a 1ª Guerra Mundial para agravar a situação russa e os bolcheviques teriam criado um Estado para reprimir os socialistas rivais”, diz Acton. A Rússia vivia um impasse estrutural e o advento da 1ª Guerra levou ao paroxismo a crise do país. Camponeses são recrutados para lutar pela Rússia e os sobreviventes, quando desertam, têm o trunfo das armas para promover a revolução contra o governo provisório presidido por Alexander Kerenski.
Mais do que isso é prematuro afirmar quando se sabe que, com o fim da guerra fria, os regimes socialistas sob influência da URSS libertaram as academias, não mais obrigadas a utilizar a estrutura teórica marxista-leninista como ferramenta historiográfica, e os arquivos se tornaram disponíveis em razão do afrouxamento do controle político oficial. O foco historiográfico faz novos recortes como o da iconografia, do discurso, da vida privada e da sexualidade do pós-Revolução Russa.
Outro risco histórico é conceber a URSS, criada em 1922, como bloco histórico homogêneo e conseqüência dos ideais defendidos em outubro de 1917. Vários professores ouvidos pelo Estado concordam com o entendimento de que a ascensão de Joseph Stálin, nos anos 1920, fortaleceu a burocracia estatal, criadora de privilégios cuja manutenção se tornou prioridade, em detrimento da implantação progressiva do socialismo.
De acordo com o historiador Angelo Segrillo, autor de O Declínio da URSS (Record), o engessamento político-econômico do stalinismo personificado pela burocracia seria o responsável pelo imobilismo do Estado até o seu término em 1991, mesmo depois de Nikita Kruchev ter apontado no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética os desmandos stalinistas e ter distendido o regime soviético. A promessa feita no começo dos anos 1960 de que a URSS, “dentro de 20 anos, ultrapassaria os EUA em produção e produtividade não seria cumprida diante do capitalismo que mudara a dinâmica da competição econômica e dera flexibilidade ao paradigma trabalhista, como no toyotismo, adequado à exigência de difusão de criatividade e sucessor do fordismo, que era semelhante à estrutura de trabalho das fábricas soviéticas na primeira metade do século 20”, diz Segrillo. No entanto a meta irrealizada não significa que o socialismo como modelo de organização econômica tenha uma ineficiência inerente, como argumentam os liberais, sobretudo quando se observam a expansão da economia soviética entre os anos 1930 e 1960 e o avanço científico-tecnológico, comprovado pelo pioneirismo na conquista do espaço nos anos 1950, segundo Segrillo. Essas comparações mostram como durante o século passado o socialismo, estado de transição entre capitalismo e comunismo, parece ter funcionado na URSS como um regime para rivalizar com o do capital e não substituí-lo, por força da atuação do proletariado no poder. As inovações soviéticas no campo militar e espacial, porém, não foram transferidas para a indústria civil.
Diretor do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, Michael Löwy, que não participou dos seminários e sobre quem vários especialistas escrevem no As Utopias de Michael Löwy (Boitempo), cita a filósofa Rosa Luxemburgo para afirmar a impossibilidade de “construir o socialismo sem liberdades democráticas, de opinião e organização”. Além de fortalecer os burocratas, ressuscitando o elemento autocrático do czarismo, Stálin transformara o espírito crítico em crime de Estado, apesar da advertência de Karl Marx sobre a necessidade incontornável de haver autocrítica constante dentro do socialismo. “Assassinado por um agente da GPU, serviço secreto stalinista, em 1940, no México, Trotski observava que o bolchevismo e o stalinismo eram separados por um rio de sangue”, continua Löwy. Como parece regra geral na História da humanidade, a Revolução Russa apresenta resultados imprevisíveis, apesar da clareza ideológica. O historiador Modesto Florenzano evoca Engels para declarar que os revolucionários não sabem o que fazem, enquanto estão revolucionando, e o resultado de suas ações é sempre diferente do pretendido. Autor de As Revoluções Burguesas (Brasiliense), Florenzano é um dos vários debatedores que retomam a Revolução Francesa de 1789 para entender a da Rússia em 1917. Os revolucionários bolcheviques miravam o exemplo francês, que derrubara o Antigo Regime e instalara a burguesia no poder. Lênin comemora quando a duração da Revolução Russa ultrapassa a da Comuna de Paris, de 1871. Mas, à diferença do acontecimento revolucionário na França, depois do qual uma classe exerce a dominação, representando uma parcela do país e preservando privilégios, os bolcheviques pretendiam estabelecer a ditadura do proletário, que, por ser representante da maioria da sociedade russa, organizaria democraticamente os interesses nacionais.
As revoluções se apresentam como saltos de consciência que aceleram o tempo, é como se existissem “semanas que valem por anos e que desafiam o vício intelectual de pensar que o dia de amanhã será igual ao de hoje”, reflete Valério Arcary, autor de Esquinas Perigosas da História (Xamã). O historiador Jorge Grespan cita Walter Benjamin, segundo o qual o “instante revolucionário explode o tempo contínuo”, entendido como uma sucessão natural, sem rupturas, de eventos históricos diante dos quais os indivíduos são impotentes. Grespan aponta nas contradições das crises capitalistas brechas históricas que podem ser vislumbradas por “homens de talento, cuja consciência se constitui e amadurece em contextos de discussão”; a partir dessas brechas é possível deflagrar os instantes de explosão revolucionária. Como exemplo de crises, ele menciona o colapso da Nasdaq, em 2000, e a atual debacle das hipotecas no mercado imobiliário norte-americano, cujos prejuízos eram estimados na semana passada em até US$ 60 bilhões. O filósofo húngaro István Mészáros concorda com a interpretação sobre o tempo contínuo,classificado de “eterno presente”. Em entrevista ao Estado, Mészáros, que está lançando O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico (Boitempo), ele diz que “o mundo tem de enfrentar a necessidade de uma mudança radical, em um futuro não tão distante, em função da forma destrutiva, perdulária e insustentável com que o capital administra o planeta”. Ele afirma que o capitalismo vive uma fase de “crise estrutural” e não mais “periódica ou conjuntural”.
Sendo ou não o comunismo a alternativa possível, a vigência de 25 de outubro de 1917, que mudou o curso do século 20, ganha sentido à medida que a discussão isenta de paixões cegas mostra os erros que não devem ser repetidos. “O passado se vive no presente como projeção do futuro”, conclui Grespan. Cada geração precisa reescrever o passado, porque o presente, embora tendendo a contínuo, apresenta mudanças e desafios diferentes. Os 90 anos de Revolução Russa soam o alarme sobre a carência de calor no debate em torno de temas históricos, o qual pode contribuir para liquefazer a névoa sobre a História.
[Estado de São Paulo, 18/11/2007]
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