Ubiratan Brasil
O escritor Carlos Fuentes viveu de maneira intensa a primavera européia de 1968. Em maio, presenciou a revolta dos estudantes franceses contra o conformismo, saindo às ruas armados de tinta e pichando os muros de Paris com dizeres diversos, como 'A política está na rua', 'Consumidores ou participantes?' e 'O álcool mata. Tome LSD'. Meses depois, ele viajou ao lado de Gabriel García Márquez e Julio Cortázar até Praga, na antiga Checoslováquia, para visitar Milan Kundera. Lá, dias antes, manifestantes enfrentaram os invasores soviéticos, buscando humanizar o comunismo. Finalmente, em dezembro, comoveu-se, a distância, com a decisão do governo mexicano em atirar contra estudantes em uma manifestação - o 'massacre de Tlatelolco'.
Três eventos de grande importância ocorridos em um mesmo ano. '1968 é um desses anos-constelação nos quais, sem razão imediatamente explicável, coincidem fatos, movimentos e personalidades inesperadas e separadas no espaço', conta Fuentes, que uniu seus relatos pessoais, escritos no calor da hora, e formou o livro Em 68, que a Rocco lança nesta semana.
Ele conta que, na França, presenciou a insatisfação da juventude parisiense com a ordem conservadora, capitalista e consumidora, que havia esquecido a promessa humanista de luta contra o fascismo. Já a Primavera de Praga não combatia o sistema comunista - humanizava-o, democratizava-o e socializava-o. E o movimento mexicano de 68, no qual o governo de Diaz Ordaz reprimiu violentamente os estudantes em Tlatelolco, representou uma ruptura flagrante entre a legitimidade revolucionária como fundamento de todos os governos.
'Mas, como o maio parisiense, a Primavera de Praga e o ano 68 mexicano sofreram uma derrota de Pirro, ou seja, derrotas aparentes cujos frutos só puderam ser avaliados a longo prazo: derrotas pírricas, vitórias adiadas', comenta Fuentes, que conversou com o Estado por telefone. 'Os caminhos da democracia e da crítica social se abriram graças aos movimentos de Paris, Praga e México.'
Ainda há muito que se falar sobre os movimentos de 1968?
Sim, mesmo passados 40 anos. O mundo mudou muito, mas uma simultaneidade de eventos marcou aquele ano: Paris, Praga, México e também em Chicago, onde houve eleições. Eventos cruciais como os de 1848, quando revoluções de ruptura entre burguesia e proletariado se estenderam de Paris a Budapeste. Foi essa simultaneidade que me motivou a escrever esse livro.
E são mesmo derrotas pírricas?
Sim. Na França, em 68, desapareceu o velho partido socialista de Guy Mollet. O mesmo aconteceu com Suécia e Argélia. Com isso, abriu-se caminho para um novo socialismo encabeçado por François Mitterrand. Em Praga, a reação à ocupação soviética provocou uma série de movimentos que resultou na queda do muro de Berlim, em 1989, e no fim do poder da União Soviética. E, no México, graças ao sacrifício do movimento estudantil, derrotado naquele ano, abriu-se caminho para a atual democracia mexicana, que certamente não existiria sem os acontecimentos de 68. Portanto, foram movimentos que, embora derrotados, trouxeram muitos benefícios para a humanidade.
Em sua opinião, a história se repete ou se refaz?
Não acredito que se repita nunca. A história é um evento contínuo, mas sempre único. É um engano pensar que haja repetição.
E o que alimenta uma mudança: a nostalgia ou a esperança?
Falamos aqui de duas utopias. Uma é regressiva, que busca a sociedade perfeita. É aquela pregada por D. Quixote aos pastores, a de Ovídio, para quem as pessoas se amam sem conflito ou guerra. E a outra é a utopia do futuro, que busca uma sociedade ideal. Mas creio que não passam de utopias - nossa preocupação tem de ser com o presente, no qual está o passado (nossa memória) e o futuro (nosso desejo). O tempo de se realizar algo é sempre o agora, considerando que a história não é simplesmente uma coleção de fatos, mas um horizonte de possibilidades.
É possível combater a injustiça sem que isso provoque mais injustiça?
Creio que não se consegue a justiça de forma absoluta, instantânea. Veja o caso da eleição americana, na qual hoje uma mulher e um negro disputam a candidatura do Partido Democrata. Isso seria inconcebível antes, não fosse a histórica luta dos negros por seus direitos civis - os mesmos que, nos séculos passados, foram açoitados, sodomizados, jogados ao mar, mortos de fome. E também pela luta das mulheres, que só tinham a possibilidade de ser donas de casa e conquistaram seus direitos pouco a pouco, não de maneira radical. Creio que a atual situação americana é bem ilustrativa. Trata-se de um país cuja independência veio com uma revolução colonial, que não equilibrou os direitos entre homens e mulheres. Houve uma guerra civil para emancipar os negros, seguido da luta pacífica de Martin Luther King. Processos pelos quais se acumulam direitos - às vezes com violência, outros politicamente, mas em luta constante para, ao menos, garantir a manutenção desses direitos acumulados.
Ou seja, embora os ideais mais utópicos tenham sido derrotados, o que se conseguiu foi uma sociedade mais democrática?
Com certeza. Temos vitórias parciais que são mais importantes que derrotas. O direito da mulher, a emancipação do negro, a defesa do meio ambiente, a defesa pela alimentação são alguns trunfos. Não viveremos sem problemas, é certo, portanto, temos de nos socorrer nas soluções do passado para imaginar como resolver.
Ainda é possível dizer que vivemos sob os ares de 1968?
Não, de forma nenhuma. Como disse antes, a história não se repete. O correto é analisar esse fato passado para descobrir o que não conseguimos conquistar naquele momento. Para isso serve a comemoração destes 40 anos - e não a celebração de vitórias particulares.
E o que dizer hoje da frase de Milan Kundera, uma visão bem pessoal do mundo, segundo a qual 'o totalitarismo é um idílio'?
É verdade, porque o idílio vive pouco. O próprio Kundera foi membro do partido comunista checo e viveu os momento que descreve em seus romances. Para o jovem saído da 2ª Guerra Mundial, a liberdade era conquistada via comunismo. Mas logo se percebeu que isso duraria pouco. A lição que fica é a seguinte: não podemos confiar em idílios.
O escritor Carlos Fuentes viveu de maneira intensa a primavera européia de 1968. Em maio, presenciou a revolta dos estudantes franceses contra o conformismo, saindo às ruas armados de tinta e pichando os muros de Paris com dizeres diversos, como 'A política está na rua', 'Consumidores ou participantes?' e 'O álcool mata. Tome LSD'. Meses depois, ele viajou ao lado de Gabriel García Márquez e Julio Cortázar até Praga, na antiga Checoslováquia, para visitar Milan Kundera. Lá, dias antes, manifestantes enfrentaram os invasores soviéticos, buscando humanizar o comunismo. Finalmente, em dezembro, comoveu-se, a distância, com a decisão do governo mexicano em atirar contra estudantes em uma manifestação - o 'massacre de Tlatelolco'.
Três eventos de grande importância ocorridos em um mesmo ano. '1968 é um desses anos-constelação nos quais, sem razão imediatamente explicável, coincidem fatos, movimentos e personalidades inesperadas e separadas no espaço', conta Fuentes, que uniu seus relatos pessoais, escritos no calor da hora, e formou o livro Em 68, que a Rocco lança nesta semana.
Ele conta que, na França, presenciou a insatisfação da juventude parisiense com a ordem conservadora, capitalista e consumidora, que havia esquecido a promessa humanista de luta contra o fascismo. Já a Primavera de Praga não combatia o sistema comunista - humanizava-o, democratizava-o e socializava-o. E o movimento mexicano de 68, no qual o governo de Diaz Ordaz reprimiu violentamente os estudantes em Tlatelolco, representou uma ruptura flagrante entre a legitimidade revolucionária como fundamento de todos os governos.
'Mas, como o maio parisiense, a Primavera de Praga e o ano 68 mexicano sofreram uma derrota de Pirro, ou seja, derrotas aparentes cujos frutos só puderam ser avaliados a longo prazo: derrotas pírricas, vitórias adiadas', comenta Fuentes, que conversou com o Estado por telefone. 'Os caminhos da democracia e da crítica social se abriram graças aos movimentos de Paris, Praga e México.'
Ainda há muito que se falar sobre os movimentos de 1968?
Sim, mesmo passados 40 anos. O mundo mudou muito, mas uma simultaneidade de eventos marcou aquele ano: Paris, Praga, México e também em Chicago, onde houve eleições. Eventos cruciais como os de 1848, quando revoluções de ruptura entre burguesia e proletariado se estenderam de Paris a Budapeste. Foi essa simultaneidade que me motivou a escrever esse livro.
E são mesmo derrotas pírricas?
Sim. Na França, em 68, desapareceu o velho partido socialista de Guy Mollet. O mesmo aconteceu com Suécia e Argélia. Com isso, abriu-se caminho para um novo socialismo encabeçado por François Mitterrand. Em Praga, a reação à ocupação soviética provocou uma série de movimentos que resultou na queda do muro de Berlim, em 1989, e no fim do poder da União Soviética. E, no México, graças ao sacrifício do movimento estudantil, derrotado naquele ano, abriu-se caminho para a atual democracia mexicana, que certamente não existiria sem os acontecimentos de 68. Portanto, foram movimentos que, embora derrotados, trouxeram muitos benefícios para a humanidade.
Em sua opinião, a história se repete ou se refaz?
Não acredito que se repita nunca. A história é um evento contínuo, mas sempre único. É um engano pensar que haja repetição.
E o que alimenta uma mudança: a nostalgia ou a esperança?
Falamos aqui de duas utopias. Uma é regressiva, que busca a sociedade perfeita. É aquela pregada por D. Quixote aos pastores, a de Ovídio, para quem as pessoas se amam sem conflito ou guerra. E a outra é a utopia do futuro, que busca uma sociedade ideal. Mas creio que não passam de utopias - nossa preocupação tem de ser com o presente, no qual está o passado (nossa memória) e o futuro (nosso desejo). O tempo de se realizar algo é sempre o agora, considerando que a história não é simplesmente uma coleção de fatos, mas um horizonte de possibilidades.
É possível combater a injustiça sem que isso provoque mais injustiça?
Creio que não se consegue a justiça de forma absoluta, instantânea. Veja o caso da eleição americana, na qual hoje uma mulher e um negro disputam a candidatura do Partido Democrata. Isso seria inconcebível antes, não fosse a histórica luta dos negros por seus direitos civis - os mesmos que, nos séculos passados, foram açoitados, sodomizados, jogados ao mar, mortos de fome. E também pela luta das mulheres, que só tinham a possibilidade de ser donas de casa e conquistaram seus direitos pouco a pouco, não de maneira radical. Creio que a atual situação americana é bem ilustrativa. Trata-se de um país cuja independência veio com uma revolução colonial, que não equilibrou os direitos entre homens e mulheres. Houve uma guerra civil para emancipar os negros, seguido da luta pacífica de Martin Luther King. Processos pelos quais se acumulam direitos - às vezes com violência, outros politicamente, mas em luta constante para, ao menos, garantir a manutenção desses direitos acumulados.
Ou seja, embora os ideais mais utópicos tenham sido derrotados, o que se conseguiu foi uma sociedade mais democrática?
Com certeza. Temos vitórias parciais que são mais importantes que derrotas. O direito da mulher, a emancipação do negro, a defesa do meio ambiente, a defesa pela alimentação são alguns trunfos. Não viveremos sem problemas, é certo, portanto, temos de nos socorrer nas soluções do passado para imaginar como resolver.
Ainda é possível dizer que vivemos sob os ares de 1968?
Não, de forma nenhuma. Como disse antes, a história não se repete. O correto é analisar esse fato passado para descobrir o que não conseguimos conquistar naquele momento. Para isso serve a comemoração destes 40 anos - e não a celebração de vitórias particulares.
E o que dizer hoje da frase de Milan Kundera, uma visão bem pessoal do mundo, segundo a qual 'o totalitarismo é um idílio'?
É verdade, porque o idílio vive pouco. O próprio Kundera foi membro do partido comunista checo e viveu os momento que descreve em seus romances. Para o jovem saído da 2ª Guerra Mundial, a liberdade era conquistada via comunismo. Mas logo se percebeu que isso duraria pouco. A lição que fica é a seguinte: não podemos confiar em idílios.
[O Estado de São Paulo, 30/03/2008]
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