Garotas de Picasso completam 100 anos

As cinco prostitutas retratadas pelo pintor em 1907 na tela mais célebre do século 20 já não provocam escândalo, mas ainda desafiam críticos e historiadores

Antonio Gonçalves Filho

Há um século o pintor Pablo Picasso, então com 25 anos, abriu seu ateliê parisiense e mostrou para os amigos uma enorme tela com mais de dois metros de altura por outro tanto de largura.
Nela, cinco mulheres liberadas desafiavam não só a moral como a tradição artística ocidental. Essas moças, além de uma sensualidade bizarra, incorporavam algo das culturas arcaicas, especialmente a carga hierática das máscaras africanas e a força assimétrica da escultura ibérica anterior à ocupação romana, anunciando a mais explosiva revolução formal do século 20: o cubismo. Em homenagem ao centenário de Les Demoiselles d'Avignon, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) promove uma exposição que promete render ainda alguns ensaios críticos sobre a pintura mais célebre do século que passou, marco zero da modernidade.

A exposição traz também esboços e estudos preliminares de Picasso para sua criação mais conhecida (ao lado de Guernica). Mas, afinal, por que alguém precisou preencher 16 cadernos de croquis, pintar dezenas de esboços e criar sete centenas de desenhos para colocar numa tela prostitutas de um bordel de Barcelona (da Rua d'Avinyo, cujo nome evoca o da cidade de Avignon, na Provença)? Teria Picasso consciência da importância de sua pesquisa e da revolução que iriam provocar suas 'demoiselles' no mundo da pintura? O poeta André Salmon (1881-1969), que batizou o quadro (em 1920) e referia-se a ele como o 'bordel filosófico' de Picasso, jura que sim. Não há, segundo ele, nada de alegórico nessas figuras. Elas simplesmente desafiam a lógica como uma 'pintura-equação' que propõe um problema sobre sua validade. Enfim, provocam abalos na estrutura da arte européia, que balança com a ruptura formal de Picasso.

Les Demoiselles d'Avignon talvez seja o exemplo mais remoto de genuína vocação multiculturalista no mundo da arte. Ao adotar uma máscara ritual Babuka como modelo do rosto da prostituta da extrema direita (canto superior do quadro), Picasso não se apropriou apenas da cultura do antípoda. Aproximou (muito antes de Freud) pulsão sexual e instinto tanatológico, vida e morte. Claro, Picasso não foi o primeiro a usar uma máscara africana como modelo (que descobriu, aliás, durante um jantar na casa de Matisse), mas foi corajoso ao imprimir nesse mesmo quadro uma crítica ao falso orientalismo europeu (odaliscas e banhos turcos de Ingres) e tecer um comentário ácido da 'joie de vivre' e do mundo harmônico matissiano (ao contrário das mulheres de Matisse, as prostitutas de Picasso mantêm uma expressão grave, de morte, nos rostos). Finalmente, no lugar da composição clássica do nu europeu, os corpos deformados das 'demoiselles' deixam de ser ícones eróticos e regridem à condição primitiva das mulheres nuas da Oceania (lições de Gauguin e Durrio, sem dúvida). Tanta transgressão teve um preço: o da incompreensão de seus pares.

Matisse torceu o nariz para as garotas de Picasso. Só um entre seus amigos (Apollinaire, Derain e Gertrud Stein, entre outros), o marchand e colecionador alemão Daniel-Henry Kahnweiler, parece ter entendido (e gostado) de imediato das pobres prostitutas de Picasso, que pareciam colocar seu criador no patamar renovador de um Manet com a nudez cadavérica de sua Olympia. Picasso, porém, não parecia nada à vontade como Messias da pintura. Talvez não se imaginasse um profeta, mas tinha consciência da sua transgressão, a de contestar os cânones estéticos da representação do corpo feminino. Essas figuras monstruosas, de olhar selvagem, primal, trazem em seus corpos a negação da natureza e a celebração da cultura - ou, pelo menos, da multifacetada perspectiva advinda da fragmentação cubista do espaço.

A esse respeito, o crítico italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992) lembra que Picasso, com Les Demoiselles d'Avignon, coloca em crise a ingenuidade dos fauves e recusa os prazeres hedonistas dos impressionistas. A arte, dizia Argan, não era efusão lírica para Picasso, mas problema. 'A visão de Matisse fundava-se no princípio da harmonia universal, entendido como princípio fundamental da natureza; a visão de Picasso funda-se no princípio da contradição, entendido como princípio fundamental da história', defendia o crítico italiano. É exatamente esse o ponto de divergência entre os dois pintores, segundo Argan: 'Para Matisse, a arte ainda é contemplação da natureza; para Picasso, é intervenção resoluta na realidade histórica.'

Os corpos desproporcionais e assimétricos da prostitutas, herdados da escultura ibérica, cumprem uma destinação histórica. Elas se expõem ao espectador como figuras fragmentadas pelas múltiplas perspectivas e diferentes planos, que parecem se sobrepor nesse ritual de 'passage' (no sentido francês da técnica em que esses planos passam uns sobre os outros). Ao mesmo tempo que jogam o olho do espectador para o fundo da tela, criando uma ilusão de profundidade, obrigam-no a permanecer na superfície, antecipando em muitos anos uma questão que seria apenas desenvolvida à época do expressionismo abstrato americano (anos 1940/50), quando o crítico Clement Grenberg propõe a abolição da dicotomia figura e fundo. Picasso obriga o espectador a permanecer na superfície e projeta-se em seu espaço, estabelecendo a primeira relação cubista da história da pintura.

Lembrando um dos muitos biógrafos de Picasso, Gilles Plazy, Picasso transgride a lei do realismo humanista que domina a arte desde o Renascimento. Projeta - e cria - uma mulher distante do sentimentalismo burguês e mais próxima de um mundo não dominado pelas aparências, reinventando a pintura para reinventar a sociedade. É sintomático o fato de ter optado por expulsar da composição original dois homens que faziam parte da cena, um marinheiro e um estudante de Medicina, não por solidariedade feminista, mas por perceber que essas mulheres estão sozinhas em sua nudez para lá de metafórica. Vale lembrar, a esse respeito, outro biógrafo de Picasso, John Berger. Sobre o bordel do pintor, Berger observa que ele não é chocante por oferecer corpos sensuais, mas por exibir mulheres pintadas 'sem charme nem tristeza, sem ironia nem crítica social, mas como estacas de uma paliçada atarvés da qual os olhos miram como se fixassem a morte'.

A paleta econômica de Les Demoiselles d'Avignon combina com o rigor da composição, que remete em muitos pontos à escola de Cézanne, uma referência fundamental na construção da pintura de Picasso (e não só como homenagem às Baigneuses, mas como proposta de ultrapassar a fronteira histórica da cultura figurativa de Cézanne). Se as cores quentes (rosa, ocre) são reservadas aos corpos, as frias (branco, azul, cinza) são destinadas ao ambiente (cortinas e adereços). É desse confronto que nasce uma sociedade de mulheres que não se comunicam entre si e dirigem-se diretamente ao espectador, obrigando-o a dividir o espaço comum desse bordel protocubista. Braque, ao ver o quadro, teve a impressão de estar comendo estopa, bebendo petróleo e cuspindo fogo. Pode ser que os visitantes do MoMA não sintam o mesmo, mas, por precaução, o museu tem sempre um extintor à mão.

[O Estado de São Paulo, 20/05/2007]

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