Das catacumbas para as massas

Sem o imperador Constantino, que adotou e financiou o cristianismo no século 4º, religião não teria passado de "seita de vanguarda", diz Paul Veyne

MARCOS STRECKER, da Redação

Para o historiador Paul Veyne, o "inventor" do cristianismo viveu 300 anos depois de Cristo.
Um dos principais especialistas em Roma Antiga, ele defende em seu novo livro ("Quand Notre Monde Est Devenu Chrétien", Quando Nosso Mundo Se Tornou Cristão, 322 págs., 18 euros, R$ 50) que o imperador romano Constantino é o verdadeiro responsável pela cristianização do mundo, no século 4º.
Sem ele, o cristianismo "não poderia ser nada além de uma seita de vanguarda".
Esse papel do imperador romano, que teria marcado o destino da Europa quase como um capricho pessoal, amplia as já polêmicas discussões sobre o estabelecimento do cristianismo como religião dominante no mundo europeu.
Veyne, 76, que é professor emérito do Collège de France, defende que o cristianismo se estabeleceu apenas por razões históricas e que não é possível falar na existência de "raízes cristãs" européias. "O cristianismo só se impôs quando incorporou um pouco do paganismo", disse em entrevista exclusiva à Folha.
O autor usa analogias polêmicas com o mundo contemporâneo, ao comparar a ambição histórica de Constantino com as de Lênin e Trótski.
No conturbado mundo pós-11 de Setembro, o historiador relativiza o papel dos EUA: "[George W.] Bush é um bufão momentâneo, e a era Bush é apenas um incidente momentâneo, um episódio como o macarthismo".


FOLHA - Em seu último livro, o sr. defende a importância de Constantino como o real introdutor do cristianismo. O desenvolvimento da religião era inevitável ou Constantino teve papel fundamental? Ele é o "inventor" do cristianismo?
PAUL VEYNE - Sim, Constantino é o inventor ou, acima de tudo, o "estopim" desse processo. Ele colocou em movimento essa organização, essa formidável máquina de enquadramento, esse "partido único" hierarquizado que é a igreja. Nunca devemos esquecer que o cristianismo é a única religião do mundo que é, ao mesmo tempo, uma igreja e uma organização. Não havia papas nem bispos no paganismo. Constantino se converteu por fé sincera mas também porque o cristianismo era espiritualmente e filosoficamente bem superior ao conto de fadas ingênuo que era o paganismo. O cristianismo, pela sua superioridade, era aos seus olhos a única religião digna do trono assim como o fato de qoe o imperador devia habitar o palácio mais belo.
Constantino, homem de fé sincero, viu sobretudo um papel imenso a desempenhar na história universal.
Ele faria a felicidade eterna da humanidade ao favorecer a verdadeira religião, enviar seus povos ao paraíso.
Ele teria um papel gigantesco na história da humanidade. Um pouco como Lênin ou Trótski, que em 1917 disseram que fariam a felicidade material da humanidade estabelecendo o comunismo, o "paraíso soviético".
Mas o papel de Constantino nunca foi o de converter pela força os pagãos, que compunham 90% da população do império. Isso seria irrealizável. Ele não forçou ninguém; não há mártires pagãos.
Fez apenas duas coisas. Primeiro, decidiu que o cristianismo era a religião "pessoal" do imperador, "sua" religião pessoal. O império e suas instituições continuavam pagãos, ainda que os ambiciosos tenham se convertido para agradar o imperador.
Segundo, ele favoreceu, sustentou e financiou a igreja. Então essa organização formidável, essa máquina que era a igreja, se pôs em marcha e se impôs como novo hábito, como novo conformismo. O bispo se tornou o grande personagem em todos os lugares, a grande autoridade moral. Isso impressionava as pessoas comuns. Outro exemplo: enquanto um proprietário de terras rico se convertia por ambição, todos os camponeses e subordinados se convertiam também, por docilidade em relação ao mestre. Constantino teve um papel fundamental, desencadeando e sustentando essa formidável organização que é a igreja.

FOLHA - A Europa tem "raízes cristãs" ou o cristianismo se desenvolveu no continente por razões históricas?
VEYNE - O cristianismo se desenvolveu apenas por razões históricas, porque Constantino colocou a igreja no poder. Sem sua ajuda, o cristianismo não poderia ter se imposto, não poderia ter se enraizado. Era uma religião muito erudita e exigente, que não poderia ser nada além de uma seita de vanguarda, só para os particularmente crentes. De fato, o paganismo não era exigente, não obrigava as pessoas a respeitarem a moral, a ir à missa, a acreditar em dogmas. O paganismo não exigia nada e prometia bastante: boas colheitas, cura de doenças, viagens sem naufrágios.
Enquanto o cristianismo primitivo não prometia nada (as pessoas se limitavam a obedecer a Deus) e exigia muito de seus fiéis. Era pesado demais. O cristianismo pôde se tornar a religião corrente de toda a população romana apenas quando deixou de ser muito exigente, quando tolerou que existissem pecadores e, sobretudo, quando passou a prometer a felicidade, como prometia o paganismo. Foi a partir do ano 400 que os cristãos passaram a pedir a Deus (e aos santos) a cura, viagens a salvo etc. E que eles passaram a oferecer ex-votos, como ofereciam os pagãos. E as pessoas passaram a pedir a Deus e aos santos boas colheitas, como faziam os pagãos. O cristianismo só se impôs quando incorporou um pouco do paganismo.

FOLHA - O Brasil é o maior país católico do mundo, em número absoluto de fiéis. A partir do seu estudo, o que é possível inferir em relação ao desenvolvimento do cristianismo no Novo Mundo?
VEYNE - Suponho que as coisas tenham se passado da mesma maneira como ocorreram no Império Romano.
Os conquistadores espanhóis e portugueses e seus reis ajudaram na construção da igreja, cuja autoridade teve papel importante para as populações. A igreja se impôs, por sua autoridade e seu orgulho, como o novo conformismo, como a grande coisa a ser respeitada.

FOLHA - Religiões são ideologias?
VEYNE - Podem servir de ideologia ou pode não ser utilizada para isso. Uma religião pode servir para tudo: de pretexto para festas, para solenização dos grandes momentos da vida (batismo, enterro, casamento), hábitos étnicos (proibições alimentares), prever o futuro ou curar doenças. A religião serve para determinações morais, para explicar fenômenos naturais, para as utopias sociais ou políticas, para legitimar um poder político e uma sociedade. Também pode servir como ideologia de classe, para expressão de uma identidade nacional etc. E para o erotismo, quase me esqueci de mencionar! Ela pode servir de ideologia étnica... O cristianismo tornou-se uma ideologia e uma bandeira para uma comunidade apenas por volta do ano 500, quando quase todos os habitantes do império se tornaram cristãos. O cristianismo passou a servir então de símbolo de identidade.

FOLHA - O mundo greco-romano representou a primeira "globalização"? Qual é a relação que pode ser estabelecida com o presente?
VEYNE - Houve uma primeira globalização na Antigüidade, mas foi anterior ao Império Romano e ao cristianismo. Foi na época de Alexandre, o Grande, a partir dos anos 300 a.C. A civilização grega dominava a cultura "mundial", do atual Afeganistão (onde os budas são esculpidos como bacos) ao atual Marrocos. A língua grega ocupava o lugar que o inglês ocupa hoje. Os próprios romanos possuíam uma cultura grega, assim como o Japão atual é ocidentalizado...

FOLHA - Após o 11 de Setembro, com a política antiterror do governo George W. Bush, o sr. considera que houve um retorno à idéia de que é necessário cristianizar o mundo para salvá-lo?
VEYNE - Francamente não! A era Bush é só um incidente momentâneo, em via de se extinguir.
É um episódio, como o macarthismo. É uma circunstância menor, não tem a dimensão de um evento histórico. Bush é um bufão momentâneo, um anão ridículo e sanguinário. Não é do tipo que muda o destino do mundo.

[Folha de São Paulo, 13/05/2007]
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