Encontrado um comentário às 'Categorias' do filósofo grego no 'Palimpsesto de Arquimedes'
De Lola Galán , em Madri, Espanha
A história ainda não se pronunciou sobre Ioannes Myronas. Foi um destrutor da cultura clássica, ou contribuiu para preservá-la, inadvertidamente? Myronas, conhecido só pelos eruditos, foi um monge bizantino autor de um livro de orações -que concluiu em 14 de abril de 1229- confeccionado a partir de vários códices, entre eles o que continha sete tratados de Arquimedes. Mas esse palimpsesto [pergaminho reutilizado], batizado com o nome do cientista grego, guardava outras duas jóias: discursos desconhecidos de Hipérides, um dos grandes oradores gregos, que viveu no século 4º a.C., e um comentário às 'Categorias' de Aristóteles, o pai da filosofia, descoberto graças às últimas técnicas de fotografia digital.
Primeiro foi a ciência, depois a política, finalmente a filosofia. Não é a ordem de criação disposta por alguma deidade caprichosa, mas a seqüência de descobertas que fizeram do chamado Palimpsesto de Arquimedes, submetido a exaustiva análise nos EUA, mais que um manuscrito, uma minibiblioteca clássica ambulante.
No século 13, o presbítero bizantino Ioannes Myronas reciclou, para criar seu breviário, nada menos que quatro códices, tirados de uma biblioteca bem abastecida. Pouco se sabe desse monge, exceto que se aplicou com rigor à tarefa de desmontar de seus bastidores de madeira os fólios do pergaminho e a apagar com ácido as letras minúsculas, do grego clássico. Menos ainda se sabe sobre o escriba cujo trabalho destruía.
A totalidade do saber acumulado na Grécia clássica foi transmitida para o mundo graças a copistas desconhecidos. Mas sua tarefa foi minada pelas vicissitudes da história. O homem que copiou os argumentos de Arquimedes (287-212 a.C.), as sentenças dos discursos de Hipérides (389-322 a.C.) e as reflexões de Alexandre de Afrodísias (cerca de 200 a.C.) a propósito de uma obra essencial de Aristóteles teve um êxito desigual. Nem mesmo sabemos se foi uma única pessoa. Mas sua tarefa exigiu longas horas e numerosas folhas de pergaminho, elaborado a partir da pele de pelo menos 24 ovelhas.
Cada fólio original media 30 cm de comprimento por 19,5 de largura. Cada um desses fólios seria dobrado pela metade três séculos depois para criar o breviário de Myronas. Os especialistas têm certeza de que o escriba desconhecido realizou sua tarefa no último quarto do século 10º, período no qual se impõe o uso de minúsculas e se intercalam espaços de separação entre as palavras.
Tanto Arquimedes quanto Aristóteles escreviam em maiúsculas, em longas séries de palavras coladas entre si. O caminho para se chegar a esta última descoberta foi extenso.
Tudo começou em outubro de 1998, quando o palimpsesto, comprado em um leilão da Christie's por um desconhecido milionário americano que pagou US$ 2 milhões por ele, foi depositado no Museu Walters de Baltimore. Desde janeiro do ano seguinte a conservadora do museu, Abigail Quandt, pôs mãos à obra. O primeiro que fez foi desencadernar o manuscrito, tarefa que levou quatro anos.
Ao mesmo tempo, houve o trabalho de especialistas em ciência antiga, em interpretação de signos e sobretudo no uso das últimas técnicas digitais para pesquisar as profundezas de uma imagem, até destrinchá-la.
"Os fólios correspondentes ao livro sobre Aristóteles foram os mais difíceis de decifrar", admite Roger Easton, professor de ciências da imagem no Instituto de Tecnologia de Rochester (EUA), que desenvolveu os programas especiais para aplicar as técnicas de imagem multiespectral.
Trata-se basicamente de utilizar fotografias tiradas com diferentes comprimentos de onda para ampliar determinadas áreas da imagem. Apesar de Easton não saber grego, não pôde conter a emoção quando viu aparecer no computador as letras de um texto novo, um comentário sobre as 'Categorias' de Aristóteles. Fragmentos não tão importantes quanto os tratados de Arquimedes ou o discurso do orador Hipérides descoberto anteriormente, mas não menos fascinantes.
"É uma contribuição importantíssima para nosso conhecimento sobre a recepção que teve essa obra de Aristóteles", disse Reviel Netz, professor de Ciência Antiga na Universidade de Stanford (Califórnia) e membro da equipe que trabalha no palimpsesto desde 1999. Netz já considerava praticamente esgotado o caudal de erudição procedente desse manuscrito.
"Sabemos tudo, exceto o conteúdo de duas páginas de 'O método dos teoremas mecânicos' de Arquimedes, que se perderam e devem estar em algum canto da Europa." Material irrecuperável, porque esse tratado não figura em nenhum outro lugar. Mas com esse códice muito antigo não se esgota um filão importante.
"Tenho certeza de que deve haver outros manuscritos que podem conter tratados de importância similar no Oriente Médio. Nosso palimpsesto pertenceu aos monges de um mosteiro próximo a Jerusalém. E é surpreendente que outro famoso palimpsesto, o de Eurípedes, mais ou menos da mesma época que o de Arquimedes, tenha sido localizado lá. Tudo indica que na Jerusalém dos cruzados uma grande biblioteca foi reutilizada com o objetivo de fazer palimpsestos. Serão encontrados mais materiais na Palestina e no deserto do Sinai", acrescenta Netz em uma mensagem eletrônica.
As bibliotecas recicladas por monges para elaborar livros de oração condenaram ao esquecimento ninguém sabe quantos tesouros. Pelo menos até que o trabalho isolado de estudiosos e especialistas projete luz sobre eles.
Quando o palimpsesto de Arquimedes chegou ao museu de Baltimore já se sabia, na verdade, o fundamental que as orações de Myronas ocultavam. Um filólogo dinamarquês, Johan Ludwig Heiberg, conhecedor da existência de um manuscrito com diagramas no Metochion, uma dependência do Santo Sepulcro em Constantinopla, apresentou-se ali em 1906.
Com uma câmera fotográfica da época e seus prodigiosos conhecimentos de grego, estudou o manuscrito, do qual haviam desaparecido, nas transmutações dos últimos séculos, 60 fólios, e foi capaz de compreender que tinha diante de si uma jóia de valor incalculável. Nada menos que vários tratados de Arquimedes no grego original, entre eles um totalmente desconhecido pela comunidade científica, 'O Método', junto com um livro curioso, o 'Stomachion'.
Heiberg publicou sua descoberta em uma revista e editou as obras completas de Arquimedes alguns anos depois. Mesmo assim, o especialista não deu atenção especial nem aos diagramas do livro nem aos outros textos que nele figuravam.
O material permaneceu oculto por quase um século, até que a equipe dirigida por Will Noel - responsável por manuscritos no Museu Walters de Baltimore - conseguiu desentranhar os mistérios restantes do palimpsesto: praticamente a totalidade dos sete tratados de Arquimedes e os discursos de Hipérides. Dez fólios que projetam uma nova luz sobre a batalha de Salamina, no ano 480 a.C., na qual os gregos derrotaram os persas. E o punhado de fólios com o comentário às 'Categorias' de Aristóteles, obra de um estudioso grego que viveu entre os séculos 2º e 3º de nossa era, Alexandre de Afrodísias. Pensando bem, a história deveria indultar o presbítero Ioannes Myronas.
As cotações de Afrodisias
No último códice do palimpsesto descoberto, Alexandre de Afrodísias comenta as 'Categorias' de Aristóteles. O texto está sendo transcrito. Nele incluem-se parágrafos como este fragmento, já traduzido: "Da mesma maneira que pé é ambíguo, ao poder referir-se igualmente a um animal ou a uma cama, são ambíguas as expressões 'com pés' ou 'sem pés', e portanto com 'em espécie' Aristóteles quer dizer 'em sua fórmula'. Porque se acontece alguma vez que o mesmo nome indique distinções de gênero que são diferentes entre si e não subordinadas, por força não podem ser as mesmas na fórmula."
Mil anos para chegar à Christie's
As peripécias vividas pelo palimpsesto de Arquimedes são dignas de uma novela de aventura. Os tratados do matemático nascido em Siracusa (Sicília) e morto em 212 a.C. foram guardados na biblioteca do Templo das Musas de Alexandria. Essa é, pelo menos, a tese defendida por Reviel Netz e William Noel em seu livro 'El Codigo de Arquimedes' (em espanhol, pela Editorial Temas de Hoy).
Em Alexandria eles foram copiados, passando do rolo para o códice. Quando as coisas ficaram feias, em plena eclosão do cristianismo, os códices saíram para Constantinopla não se sabe como.
No século 6º, Isidoro de Mileto, um dos arquitetos de Santa Sofia, utilizou os conhecimentos de Arquimedes para edificar a fabulosa cúpula do templo de Istambul. E acredita-se que, por ordem dele, as obras do matemático grego foram novamente copiadas.
Séculos mais tarde, Constantinopla e com ela o Império Bizantino experimentam um novo apogeu. Constroem-se palácios e lêem-se os clássicos. E, o que é mais importante, copiam-se novamente seus tratados. Desta vez, incorporando algumas novidades. Afinal, estamos no último quarto do século 10º. O escriba introduz espaços entre as palavras, usa abreviaturas e minúsculas.
Mas Constantinopla foi arrasada pelos cruzados no ano 1209. Muitos dos antigos códices se perderam. Outros conseguiram se salvar e parar em alguma biblioteca importante no Oriente Médio.
Duas décadas depois, talvez em algum lugar próximo a Jerusalém, o monge Myronas pega quatro códices e escreve, sobre o pergaminho previamente tratado com ácido para apagar as antigas letras, um livro de orações.
Durante séculos esse livro permanece, sem maiores contratempos, no mosteiro de San Sabas, perto de Belém. Até que no século 19 a biblioteca inteira fica sob a autoridade do patriarca grego de Constantinopla, e os livros são arquivados no Metochion, uma dependência do Santo Sepulcro nessa cidade.
Pelo menos duas pessoas têm acesso ao palimpsesto nessa época: o estudioso Papadopoulos-Kerameus, que realizou um catálogo desses arquivos, em 1899, e algumas décadas antes o acadêmico alemão Constantin Tischendorf, que inclusive arranca uma página do manuscrito. Anos depois seria vendida à Universidade de Cambridge.
Conhecendo as qualidades desse livro, o estudioso dinamarquês J. L. Heiberg viaja a Constantinopla e o analisa a fundo em 1906. Não se volta a saber do livro até quase um século depois. O material guardado no Metochion é enviado para Atenas nos primeiros anos da década de 1920, mas nem tudo chega a seu destino.
O Palimpsesto de Arquimedes fica em poder de um cidadão francês, um tal Sirieix. Seus herdeiros o leiloam, em 1998, através da Christie's de Nova York. Ali foi adquirido por um milionário americano e depois depositado no Museu Walters de Baltimore, onde permanecerá até 2008, data em que está previsto que o projeto do Palimpsesto de Arquimedes conclua com uma exposição e um filme.
Os avatares do manuscrito não merecem menos.
[El País, 20/05/2007. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves]
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