George W. Bush certa vez pensou que conseguia olhar nos olhos de Vladimir Putin e ver sua alma. Agora que o líder russo apertou suas garras no poder, porém, a amizade tensa entre esses dois estadistas pode virar uma inimizade declarada. O conflito em torno do Irã é apenas um exemplo
Gregor Peter Schmitz, em Washington
O senador John McCain falou em voz baixa, como faz freqüentemente em campanha. O candidato à presidência tinha acabado de falar sobre o Irã e era hora de dizer uma ou duas palavras sobre a Rússia. "Quando olhei nos olhos de Vladimir Putin", disse à platéia em um sussurro de conspiração, "vi três coisas: a K a G e a B."
Na quarta-feira (17/10), em uma conferência da Casa Branca com a imprensa, um repórter perguntou ao presidente o que ele achava das palavras de McCain. "Boa frase", disse Bush rindo -e jogou mais carvão retórico no fogo. Ele disse que Putin era "malicioso" sobre a questão de quem o sucederia no Kremlin.
Bush tinha acabado de usar palavras extraordinariamente enérgicas para descrever a tensão nuclear com o Irã. Claramente referindo-se a Putin, Bush disse aos repórteres: "Se alguém estiver interessado em evitar a Terceira Guerra Mundial, precisa estar interessado em impedir o Irã de ter o conhecimento necessário para fazer uma arma nuclear."
Essa referência à "Terceira Guerra" lembrou retóricas presidenciais anteriores com o "eixo do mal" (Bush, 2002) e "o império do mal" (Reagan, 1983). A escolha das palavras refletiu um profundo esfriamento das relações EUA-Rússia -e as diferenças em relação ao Irã não são a única razão para isso.
"O relacionamento está realmente abalado. Os dois lados parecem determinados a atacar um ao outro sempre que possível nos últimos meses", disse Rose Gottemoeller, diretora do escritório de Moscou do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em entrevista ao Spiegel Online.
Trocando comentários depreciativosO conflito vem fermentando há meses. Algumas vezes, Putin denuncia abusos de poder por parte dos americanos -como fez em Munique em fevereiro- e algumas vezes compara os EUA sob Bush à Alemanha nazista sob Hitler. Na semana passada, ele deixou o secretário de defesa americano Robert Gates e a secretária de Estado Condoleezza Rice esperando 45 minutos em Moscou; depois, fez piadas sobre a possibilidade de um sistema de defesa de mísseis conjunto na Lua.
De sua parte, os americanos nunca perdem uma oportunidade de taxar a Rússia de Putin de não democrática. Em maio de 2006, o vice-presidente americano fez uma forte repreensão a Putin quando acusou o governo russo de usar petróleo e gás como meio de chantagear seus vizinhos. Agora, Bush foi além. Como Putin não coopera plenamente com os EUA no Irã, o presidente advertiu do perigo de uma terceira guerra mundial.O conflito sobre o Irã, entretanto, é apenas um osso da briga nesse relacionamento complexo. Parece improvável, por exemplo, que a visita de Putin ao presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad nesta semana tenha sido apenas para provocar os americanos.
"Os russos basicamente vêm perseguindo seus próprios interesses na região", diz Gottemoeller. "A visita se encaixa com seus esforços de aumentar seu papel como potência mundial." No entanto, ela acredita que Putin cometeu um erro estratégico em suas observações sobre o direito do Irã de desenvolver um programa nuclear civil. "Ele queria ser calorosamente recebido em Teerã e por isso fez essas declarações. Agora ele tem que lidar com um dilema de longo prazo, porque os iranianos esperarão apoio dele nesta questão."
No entanto, o Irã continua sendo uma ameaçaDe fato, Moscou ainda parece querer que o Irã coopere com os europeus e americanos. Não devemos esquecer que, antes de sua viagem a Teerã, Putin se reuniu com a chanceler alemã Angela Merkel e com Condoleezza Rice para discutir uma abordagem adequada.
Gottemoeller está organizando uma grande conferência sobre o Irã em Moscou; depois de conversar com jornalistas e autoridades do governo, ela acredita que a Rússia ainda vê o Irã armado com armas nucleares como ameaça.
Bush também age como se ainda pudesse trabalhar com a Rússia no Irã. Em sua conferência belicosa com a imprensa, ele não condenou prontamente a visita de Putin a Teerã -mas disse que preferia esperar ouvir seu relatório. Bush expressou abertamente sua esperança que Washington e Moscou continuem a cooperar.
Muitos especialistas também vêem um nível exagerado de preocupação em relação a uma declaração recente de cinco nações do mar Cáspio. Um dos princípios dessa declaração é que os signatários não permitirão que outros países usem seu solo para atos de agressão contra outro Estado da região do Cáspio -incluindo o Irã. O acordo foi entendido como um aumento das divergências entre EUA e Rússia, em parte porque os EUA mantiveram relações próximas com o Azerbaijão e podem querer usar bases aéreas no país.
"Não acho essa declaração tão surpreendente", disse Richard Morningstar, enviado especial para a região sob o presidente Bill Clinton que hoje é palestrante em Harvard. "Os EUA usariam bases azeri se quisessem lançar missões contra o Irã? Provavelmente não", disse ao Spiegel Online. "A Rússia vem tentando expandir sua influência na região? Sim. Esses países se encontram regularmente? Sim. Os americanos entendem isso? É claro. São vizinhos da Rússia, afinal."
Os relacionamentos pessoais, inclusive os entre líderes de Estado, são muito importantes para Bush, e ele sente que Putin o decepcionou. "Ele fez um julgamento totalmente errado de Putin", diz Michael McFaul do Instituto Hoover da Universidade de Stanford. "Ele achou que era um dos mocinhos". Assim como a descrição do ex-chanceler alemão Gerhard Schröder de Putin como "democrata exemplar", o galanteio de Bush depois de seu primeiro encontro com Putin em 2001 -q uando ele disse que tinha olhado nos olhos do líder russo e visto sua alma - parece ter sido pensamento positivo.
Os americanos também se sentem atropelados pela possibilidade da carreira política contínua de Putin. "A Casa Branca esperava que Putin assumisse algum papel depois de sua partida, talvez como diretor da Gazprom", disse Gottemoeller. "Mas eles não acharam que seria um papel político chave." Os rumores atuais que Putin concorrerá a primeiro-ministro arrasaram as esperanças de altas autoridades em Washington de um novo começo nas relações EUA-Rússia.
No interesse de manter um diálogo estratégico com Moscou, os americanos também foram cuidadosos em criticar as violações de direitos humanos pelos russos na Tchetchênia. No entanto, se também forem forçados a aceitar os planos pouco democráticos de Putin para se manter no poder, poderão perder a credibilidade como defensores da democracia -uma imagem que já foi manchada no mundo pelo fiasco do Iraque e escândalos de tortura.
"É difícil reprogramar o DNA básico russo"Durante sua visita a Moscou, Condoleezza Rice insistiu que a Casa Branca não tinha, de forma alguma, perdido autoridade moral em seu relacionamento com a Rússia. Muitos intelectuais discordam, porém, incluindo Masha Lipman, ex-diretora de uma revista de notícias russa e colunista do Washington Post: "Não está claro se Putin verdadeiramente acredita que a democracia ocidental seja algo mais que disfarce e manipulação, mas ele nunca perde uma oportunidade de dizer isso, e o povo russo cada vez mais compartilha dessa opinião."
Elementos moderados dos dois lados tentaram amainar a retórica dramática, inclusive Richard Lugar, senador republicano influente. Durante uma aparição no Instituto Brookings pouco antes da visita de Rice a Moscou, ele falou como um conselheiro conjugal: "Nós dois temos que entender que precisamos urgentemente um do outro", disse ao público, "e temos que colocar tanta energia em encontrar abordagens comuns quanto colocamos recentemente para ventilar nossas frustrações" .
Os desafios, entretanto, são assombrosos. "A busca do Kremlin de um novo arquiinimigo alterou as relações entre a Rússia e os EUA", diz McFaul. "Potenciais áreas de cooperação, como investimentos comuns na produção de petróleo, bases militares para combater o Taleban e sistemas de defesa de mísseis foram transformadas em competição acirrada onde há apenas vencedores e perdedores."
Putin já deixou claro que, se os EUA não respeitarem os interesses de segurança russos, a Rússia vai se retirar dos acordos firmados no final da Guerra Fria, incluindo grandes tratados de desarmamento. E sua postura assertiva durante a viagem ao Irã lembrou aos americanos da "doutrina Putin", que pode ser resumida como: aceitem-nos como iguais, tratem-nos como pares.
Certa vez, Bush imaginou que tinha visto a alma de Putin, mas agora ele parece ter aceitado os russos como são, apesar da retórica pesada sobre guerras mundiais. Na conferência com a imprensa na Casa Branca nesta semana, ele parecia resignado. "Reprogramar o DNA russo básico, que pede uma autoridade centralizada -isso é difícil", disse ele.
Tradução: Deborah Weinberg
[Der Spiegel, 20/10/2007]
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