A escritora somali lança a autobiografia Infiel e diz que o Islã não é compatível com a modernidade ocidental, além de criar uma cultura que provoca atraso a cada geração
Antonio Gonçalves Filho
No primeiro parágrafo do livro Infiel (Companhia das Letras, 500 págs., R$ 49), a escritora somali Ayaan Hirsi Ali, de 38 anos, conta que nasceu num país dilacerado pela guerra e foi criada num continente “mais conhecido pelo que dá errado do que pelo que dá certo”. Para os padrões da Somália, ela deveria, se ainda fosse religiosa, erguer as mãos ao céu por ainda estar viva e sã. E conta a razão: aos 5 anos, foi “torturada” pela avó até decorar os nomes de todos os ancestrais, como todos os filhos de nômades do deserto, sob o risco de ir para o inferno; ainda criança, foi “purificada” mediante a ablação da genitália; finalmente, já adulta, começou a refletir sobre a condição feminina nos países muçulmanos e, obrigada a casar contra a sua vontade, deu um jeito de pedir asilo político ao desembarcar em solo holandês a caminho do Canadá. Foi na Holanda que conheceu há quatro anos o cineasta Theo Van Gogh, com quem colaborou no roteiro do filme Submissão, definido por ela como um curta sobre os muitos tipos de sofrimento causados às mulheres pela sujeição ao Islã.
O filme acabou decretando a morte do cineasta por um muçulmano marroquino, em 2004. Van Gogh não deu a mínima quando Ayaan o alertou sobre a mensagens divulgadas pela internet que exortavam os fiéis de Alá a dar um fim em ambos. O cineasta acabou degolado na rua pelo fanático islâmico, que ainda fincou uma faca em seu peito com uma carta destinada à escritora. Nela, o assassino condenava os “atos criminosos” cometidos pela autora somali contra o Islã. Desde então, Ayaan vive sob proteção policial, primeiro na Holanda, onde chegou a conquistar uma cadeira no Parlamento, e agora nos EUA. De lá ela concedeu uma entrevista ao Estado, em que define o islamismo como “incompatível com os direitos humanos e os valores liberais”.
Você diz que a mensagem de seu livro é que o Ocidente faz mal em prolongar a dor da transição do Islã para a modernidade, alçando culturas farisaicas à estatura de um estilo de vida alternativo. O Islã é, segundo seu ponto de vista, uma ameaça ao pensamento liberal?
Sim, do jeito que eu vi homens e mulheres muçulmanos enchendo a cabeça de suas crianças com a idéia de inferno e punição, o mínimo que posso dizer é que a transição do Islã para a modernidade será muito difícil, porque o fundamentalismo religioso é incompatível com os valores democráticos. Ao ameaçar quem não crê na infalibilidade do Alcorão ou do profeta, os fundamentalistas criam uma cultura que provoca retrocessos a cada geração. O inferno começa quando alguém lembra que o Alcorão foi escrito num contexto e época diferentes e os radicais o acusam de infiel, por refutar as palavras de Deus. Temos de nos livrar dessa idéia de um deus ditador, como fizeram várias religiões, entre elas o cristianismo.
A imprensa internacional costuma dizer que você e Theo van Gogh foram longe em sua crítica ao Islã, ao defender que os multiculturalistas do Ocidente não deveriam tolerar os fundamentalistas islâmicos. Você acha que sua defesa intransigente da igualdade feminina e a condenação do islamismo não podem atiçar um sentimento racista contra os muçulmanos?
Não, ao contrário. Não defendo a abolição do Islã, nem que os muçulmanos sejam expulsos dos países ocidentais, mas, neste exato momento, milhões de mulheres muçulmanas estão trancadas em casa sem o poder de escolha que eu tenho. Quando alguém me diz que a cultura islâmica está calcada em tolerância, compaixão e liberdade, penso nessas mulheres muçulmanas e como elas farão para viver num mundo moderno. O mundo islâmico está preparado para uma revolução como a do cristianismo na era moderna? Não quando a teologia islâmica proíbe qualquer discussão sobre o Alcorão. Ao admitir que o profeta é infalível, os muçulmanos instituíram uma tirania permanente, renunciando à liberdade.
No momento em que desembarcou na Holanda, você tomou contato com um sistema moral alternativo, como admite em seu livro, notando que a história filosófica e religiosa ocidentais revelam que o Ocidente progrediu depois de questionar a infalibilidade da Bíblia. Você concorda com Christopher Hitchens quando ele diz que Deus não é grande?
Concordo e entendo quando ele preconiza a necessidade de um estado laico, distante da ingerência religiosa. Religiões levam invariavelmente à guerra. Pode-se imaginar outro caminho para a evolução além de dogmas religiosos. A história da humanidade, claro, não é feita apenas de progresso. Avança-se às vezes para retroceder em outras ocasiões. O Islã nos faz retroceder. Eu, pessoalmente, recuso-me a voltar ao sétimo século e sei que muitas outras pessoas nascidas em países muçulmanos dividem a mesma posição.
Alguns jornalistas americanos gostam de provocá-la dizendo que você comprou a ideologia neoconservadora do American Enterprise Institute. Há mesmo quem diga que você estaria na mesma rota de David Frum, que cunhou a expressão “eixo do mal”, depois usada por Bush. Você acredita num “eixo do mal”?
Primeiro, é preciso dizer que nem todos são conservadores no American Enterprise Institute. Há democratas também. Depois, é preciso lembrar que o instituto nasceu com o propósito de pensar a questão do mercado e influenciar governos, não o de ditar suas políticas externas. Se eu acredito em eixo do mal? Acredito, sim. É só analisar a ameaça da bomba atômica no caso iraniano, prestes a ser fabricada, ou o caso da Coréia do Norte.
Você se arrepende de ter feito o filme Submissão com Theo van Gogh quando pensa em sua morte ou nas ameaças que você recebeu?
Não. Theo tampouco deu atenção às ameaças, porque preferia morrer a ver seu país transformado pelo medo. Ele dizia: “Ayaan, este é meu país, este é meu filme. Se eu não fizer Submissão, estarei morando num país de bárbaros, e não mais na Holanda.”
Salman Rushdie escreveu um texto que a define como a primeira refugiada da Europa desde o Holocausto, um testemunho único da fraqueza e, ao mesmo tempo, da fortaleza do Ocidente. Como você vê seu futuro e o do mundo?
O Islã foi fundado nos desertos árabes, dentro de uma realidade tribal que nada mais tem a ver com o mundo moderno. É duro ser uma exilada, mas não quero ser uma bandeira ou lutar contra ninguém. Digo apenas que devemos desbloquear nossas mentes. Esta é a minha contribuição para as gerações futuras.
[O Estado de São Paulo, 28/10/2007]
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