Mariano Grondona
Quando Simón Bolívar e José de San Martín se reuniram em Guayaquil em 1822, não foram apenas dois generais vitoriosos, unidos pelo ideal da independência americana, que se sentaram frente a frente; foram também os portadores de duas concepções opostas do poder. Bolívar e San Martín foram duas personalidades tão extraordinárias que Plutarco (46-119) não teria hesitado em incluí-los em suas famosas Vidas Paralelas. Quando a América se emancipou, o novo continente teve de preencher o vazio de poder deixado pelo tumultuado afastamento de seus tutores europeus. Para remediar esta carência, surgiram dois modelos políticos: um personalista, o de Bolívar; outro institucional, o de San Martín.
Como Natalio Botana observou recentemente em La Nación, Bolívar almejava o que veio a ser chamado de presidência perpétua. Logo após a renúncia de San Martín em Guayaquil, o grande venezuelano pôde exercer a presidência simultânea da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Presidência que era, em sua intenção, 'perpétua'. O projeto 'bolivariano' acabou fracassando, mas seu objetivo era substituir o comando de uma pessoa, o rei espanhol, pelo de outra, o caudilho latino-americano que Bolívar pretendia ser, de modo que o vazio de poder gerado pelo afastamento de um comando pessoal situado na Europa fosse preenchido por um novo comando pessoal de origem crioula, mudando assim a titularidade, mas não a substância do poder.
Botana cita Bolívar defendendo seu projeto: 'O presidente da república vem a ser em nossa Constituição como o sol que, firme em seu centro, dá vida ao universo.' Embora o libertador venezuelano confessasse sua fé republicana, ele quis retardar a criação de uma república autêntica na América Latina.
Bolívar quis substituir o personalismo monárquico espanhol por um novo personalismo só aparentemente republicano. Por isso, o jurista argentino Juan Bautista Alberdi, ao alertar que a independência 'externa' em relação à Espanha talvez não equivalesse à liberdade 'interna' dos latino-americanos, perguntou angustiado: 'Agora que nos libertamos da Espanha, quem nos libertará de nossos libertadores?'
A RENÚNCIA
Há dois modos de fundar um regime político. Um é prolongar indefinidamente o poder daquele que libertou o país de sua antiga dependência. Esse foi o método de Bolívar. O outro é abrir o jogo do poder a novos atores para que possibilitem a 'liberdade interna' dos cidadãos. Esse foi o método de San Martín. Um método que, em vez de exaltar o libertador da antiga dependência, o levou à renúncia.
Esse método não inaugura a exaltação passageira de um homem, e sim a longa vigência de um sistema. É que os fundadores de um sistema só o são quando vão embora. Temos exemplos ilustres na América. George Washington, o primeiro presidente da democracia americana, só fundou o sistema efetivamente quando, depois de exercer o poder por dois períodos sucessivos de quatro anos, entre 1789 e1797, decidiu retirar-se para sua fazenda. Foi a partir desse momento que os EUA iniciaram sua longa travessia republicana, em vigor há mais de dois séculos.
Mas o exemplo de Washington não é o único na América. Em 1994, tendo ocupado a presidência do Chile por quatro anos depois da ditadura de Pinochet, Patricio Aylwin resistiu com firmeza às pressões para que mudasse a Constituição a fim de se reeleger. A atual república estável do Chile nasceu nesse momento de renúncia, já que, depois desse grande exemplo inaugural, nenhum sucessor de Aylwin buscou a reeleição imediata. O Chile de hoje é uma república autêntica porque nenhum 'bolivariano' prevaleceu em suas origens.
A fórmula da renúncia não pôde ser aplicada na Argentina enquanto o libertador ainda vivia, pois a 'ditadura perpétua' de Juan Manuel de Rosas durou de 1829 a 1852. Mas logo após a aprovação da Constituição de Alberdi, que ainda rege o país, Justo José de Urquiza, o primeiro presidente constitucional, não buscou a reeleição.
Em seguida veio a série dos grandes presidentes: Bartolomé Mitre, Domingo Sarmiento, Nicolás Avellaneda e Julio Roca. Nenhum deles almejou ser reeleito de imediato e só um, Roca, foi reeleito, depois de ficar afastado por dois períodos de seis anos.
A Argentina do crescimento econômico ímpar do fim do século 19 e início do 20, em suma, não foi bolivariana, e sim sanmartiniana.
BOLÍVAR VOLTOU?
A Argentina de hoje continua sendo sanmartiniana? É lícito duvidar. O projeto de eleger um Kirchner no lugar do outro, em outubro, não seria uma pretensão de fundar uma 'co-presidência perpétua' de natureza bolivariana?
A que se deve o eclipse da tradição sanmartiniana argentina? É possível identificar duas causas dessa regressão institucional. Uma é a hostilidade dos Kirchners contra as Forças Armadas, que implica tirar de cena não só o maior general da história do país, mas também o herói contemporâneo que é o capitão Guillermo Tarapow, do navio Irízar. A outra é a influência assumidamente bolivariana do ditador venezuelano, Hugo Chávez, que voltou a visitar a Argentina na semana passada com suas mãos repletas.
Quando Chávez se confessa bolivariano, quer duas coisas. Uma é homenagear, com justiça, um dos grandes libertadores latino-americanos. A outra é imitar o modelo bolivariano da presidência perpétua. A ambição do poder ilimitado, que em nossa América encontra máxima expressão em Chávez, coincide com a história recente argentina, já que, desde Juan Domingo Perón, a idéia da presidência perpétua ganhou espaço no país.
Pouco depois de ser eleito presidente, em 1946, Perón promoveu uma reforma constitucional que incluía a reeleição indefinida do chefe de Estado. Seu exemplo foi seguido mais tarde por dois governos militares que buscaram um poder sem prazos: o de Juan Carlos Onganía em 1966 e o de Jorge Rafael Videla em 1976.
Mas a Constituição de 1853 retornou com a democracia em 1983, até que Carlos Menem desejou e obteve, com o respaldo de Raúl Alfonsín, a reintrodução da reeleição imediata. Assim, quando Chávez impôs de novo a meta da presidência perpétua, encontrou uma Argentina politicamente predisposta. Uma Argentina, mais que sanmartiniana, bolivariana. E quanto aos Kirchners, quem se animaria a atribuir-lhes uma vocação sanmartiniana?
Em Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, ganha espaço o personalismo autoritário que herdamos da Espanha e que nossa mãe pátria não obstante abandonou, depois da morte de Franco, em 1975, para se transformar, seguida por nações como Chile, México, Brasil e Uruguai, numa das democracias bem-sucedidas de nosso tempo.
*Mariano Grondona é colunista do jornal 'La Nación' - TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA
[O Estado de São Paulo, 12/09/2007]
Quando Simón Bolívar e José de San Martín se reuniram em Guayaquil em 1822, não foram apenas dois generais vitoriosos, unidos pelo ideal da independência americana, que se sentaram frente a frente; foram também os portadores de duas concepções opostas do poder. Bolívar e San Martín foram duas personalidades tão extraordinárias que Plutarco (46-119) não teria hesitado em incluí-los em suas famosas Vidas Paralelas. Quando a América se emancipou, o novo continente teve de preencher o vazio de poder deixado pelo tumultuado afastamento de seus tutores europeus. Para remediar esta carência, surgiram dois modelos políticos: um personalista, o de Bolívar; outro institucional, o de San Martín.
Como Natalio Botana observou recentemente em La Nación, Bolívar almejava o que veio a ser chamado de presidência perpétua. Logo após a renúncia de San Martín em Guayaquil, o grande venezuelano pôde exercer a presidência simultânea da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Presidência que era, em sua intenção, 'perpétua'. O projeto 'bolivariano' acabou fracassando, mas seu objetivo era substituir o comando de uma pessoa, o rei espanhol, pelo de outra, o caudilho latino-americano que Bolívar pretendia ser, de modo que o vazio de poder gerado pelo afastamento de um comando pessoal situado na Europa fosse preenchido por um novo comando pessoal de origem crioula, mudando assim a titularidade, mas não a substância do poder.
Botana cita Bolívar defendendo seu projeto: 'O presidente da república vem a ser em nossa Constituição como o sol que, firme em seu centro, dá vida ao universo.' Embora o libertador venezuelano confessasse sua fé republicana, ele quis retardar a criação de uma república autêntica na América Latina.
Bolívar quis substituir o personalismo monárquico espanhol por um novo personalismo só aparentemente republicano. Por isso, o jurista argentino Juan Bautista Alberdi, ao alertar que a independência 'externa' em relação à Espanha talvez não equivalesse à liberdade 'interna' dos latino-americanos, perguntou angustiado: 'Agora que nos libertamos da Espanha, quem nos libertará de nossos libertadores?'
A RENÚNCIA
Há dois modos de fundar um regime político. Um é prolongar indefinidamente o poder daquele que libertou o país de sua antiga dependência. Esse foi o método de Bolívar. O outro é abrir o jogo do poder a novos atores para que possibilitem a 'liberdade interna' dos cidadãos. Esse foi o método de San Martín. Um método que, em vez de exaltar o libertador da antiga dependência, o levou à renúncia.
Esse método não inaugura a exaltação passageira de um homem, e sim a longa vigência de um sistema. É que os fundadores de um sistema só o são quando vão embora. Temos exemplos ilustres na América. George Washington, o primeiro presidente da democracia americana, só fundou o sistema efetivamente quando, depois de exercer o poder por dois períodos sucessivos de quatro anos, entre 1789 e1797, decidiu retirar-se para sua fazenda. Foi a partir desse momento que os EUA iniciaram sua longa travessia republicana, em vigor há mais de dois séculos.
Mas o exemplo de Washington não é o único na América. Em 1994, tendo ocupado a presidência do Chile por quatro anos depois da ditadura de Pinochet, Patricio Aylwin resistiu com firmeza às pressões para que mudasse a Constituição a fim de se reeleger. A atual república estável do Chile nasceu nesse momento de renúncia, já que, depois desse grande exemplo inaugural, nenhum sucessor de Aylwin buscou a reeleição imediata. O Chile de hoje é uma república autêntica porque nenhum 'bolivariano' prevaleceu em suas origens.
A fórmula da renúncia não pôde ser aplicada na Argentina enquanto o libertador ainda vivia, pois a 'ditadura perpétua' de Juan Manuel de Rosas durou de 1829 a 1852. Mas logo após a aprovação da Constituição de Alberdi, que ainda rege o país, Justo José de Urquiza, o primeiro presidente constitucional, não buscou a reeleição.
Em seguida veio a série dos grandes presidentes: Bartolomé Mitre, Domingo Sarmiento, Nicolás Avellaneda e Julio Roca. Nenhum deles almejou ser reeleito de imediato e só um, Roca, foi reeleito, depois de ficar afastado por dois períodos de seis anos.
A Argentina do crescimento econômico ímpar do fim do século 19 e início do 20, em suma, não foi bolivariana, e sim sanmartiniana.
BOLÍVAR VOLTOU?
A Argentina de hoje continua sendo sanmartiniana? É lícito duvidar. O projeto de eleger um Kirchner no lugar do outro, em outubro, não seria uma pretensão de fundar uma 'co-presidência perpétua' de natureza bolivariana?
A que se deve o eclipse da tradição sanmartiniana argentina? É possível identificar duas causas dessa regressão institucional. Uma é a hostilidade dos Kirchners contra as Forças Armadas, que implica tirar de cena não só o maior general da história do país, mas também o herói contemporâneo que é o capitão Guillermo Tarapow, do navio Irízar. A outra é a influência assumidamente bolivariana do ditador venezuelano, Hugo Chávez, que voltou a visitar a Argentina na semana passada com suas mãos repletas.
Quando Chávez se confessa bolivariano, quer duas coisas. Uma é homenagear, com justiça, um dos grandes libertadores latino-americanos. A outra é imitar o modelo bolivariano da presidência perpétua. A ambição do poder ilimitado, que em nossa América encontra máxima expressão em Chávez, coincide com a história recente argentina, já que, desde Juan Domingo Perón, a idéia da presidência perpétua ganhou espaço no país.
Pouco depois de ser eleito presidente, em 1946, Perón promoveu uma reforma constitucional que incluía a reeleição indefinida do chefe de Estado. Seu exemplo foi seguido mais tarde por dois governos militares que buscaram um poder sem prazos: o de Juan Carlos Onganía em 1966 e o de Jorge Rafael Videla em 1976.
Mas a Constituição de 1853 retornou com a democracia em 1983, até que Carlos Menem desejou e obteve, com o respaldo de Raúl Alfonsín, a reintrodução da reeleição imediata. Assim, quando Chávez impôs de novo a meta da presidência perpétua, encontrou uma Argentina politicamente predisposta. Uma Argentina, mais que sanmartiniana, bolivariana. E quanto aos Kirchners, quem se animaria a atribuir-lhes uma vocação sanmartiniana?
Em Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, ganha espaço o personalismo autoritário que herdamos da Espanha e que nossa mãe pátria não obstante abandonou, depois da morte de Franco, em 1975, para se transformar, seguida por nações como Chile, México, Brasil e Uruguai, numa das democracias bem-sucedidas de nosso tempo.
*Mariano Grondona é colunista do jornal 'La Nación' - TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA
[O Estado de São Paulo, 12/09/2007]
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