Valsa desafinada

"Salvadores e Sobreviventes" acusa as agências humanitárias de tentar impor uma agenda de recolonização na África

WILLIAM J. DOBSON
Desde que a violência eclodiu em Darfur, no oeste do Sudão, seis anos atrás, 300 mil pessoas já morreram e mais de 2,5 milhões foram forçadas a abandonar suas casas. Essa destruição já foi atribuída ao presidente do Sudão, Omar al Bashir; aos grupos rebeldes que em 2003 lançaram uma insurgência contra Cartum (capital do Sudão); às milícias Janjaweed, que têm o apoio do governo; às Nações Unidas e à União Africana, que demoraram em agir, e à comunidade internacional, que não intervém.
Agora, de acordo com Mahmood Mamdani (em "Saviors and Survivors", Salvadores e Sobreviventes, ed. Verso, 528 págs., 17,99, R$ 58), devemos acrescentar mais um grupo a essa lista: humanitários que lideram a campanha para pôr fim à violência.
Mamdani é professor de ciência política e antropologia na Universidade Columbia. Em "Salvadores e Sobreviventes", ele toma como alvo a organização Save Darfur e outros grupos ocidentais de defesa semelhantes, pelo papel que exercem no Sudão.

Distorção
A Save Darfur é atualmente o maior grupo de defesa de base sediado nos EUA e focado em Darfur. Fundada em 2004, é uma coalizão de mais de 180 grupos religiosos, políticos e de defesa dos direitos humanos.
"Os ativistas da Save Darfur empregam técnicas de política de protesto contra seu próprio governo e ignoram os especialistas que afirmam que eles apenas complicam a história com tantos detalhes que acabam deixando passar em branco a questão principal", diz. Mas acusa o movimento de algo pior do que simplesmente pregar sermões moralizadores vazios. A Save Darfur, argumenta Mamdani, é a mais nova potência colonial num longo histórico de abusos coloniais.
Seu chamado por justiça no Sudão "é, na realidade, um slogan que mascara uma agenda de recolonização da África".
Mamdani tem razão em destacar que o colonialismo britânico agravou as divisões étnicas e raciais. Mas ele permite que o ultraje que sente diante dos crimes coloniais eclipse as atrocidades recentes do regime atual. A raiz do argumento de Mamdani é o desconforto profundo que ele sente com as mudanças recentes nos assuntos internacionais, que, diz ele, erodiram os direitos soberanos de um Estado em favor das normas humanitárias.
Desde que a Guerra Fria chegou ao fim, há um consenso internacional crescente de que um governo não pode usar sua soberania como escudo enquanto comete atrocidades contra sua própria população.
Mas, na visão de Mamdani, essa nova ordem humanitária encerra seus próprios perigos. Ele argumenta que as populações são reduzidas a tutelados da comunidade internacional, em lugar de cidadãos com seus direitos próprios.

Entender o contexto
Mamdani vê o humanitarismo como nada mais que a desculpa mais nova para a intervenção injusta de Estados poderosos nos assuntos dos menos poderosos. Para ele, o colonialismo britânico é mais responsável que Cartum pelas mortes em massa que ocorrem em Darfur hoje. É fato que o colonialismo exerceu efeito pernicioso no Sudão.
Mas é um acinte ao bom senso -e à opinião de especialistas- argumentar que a administração colonial de mais de 50 anos atrás seria mais culpada pelo que aconteceu em Darfur do que um regime governista que armou os agressores.
Mesmo assim, a Save Darfur e grupos semelhantes farão bem em não ignorar este livro. Os grupos ocidentais de ajuda e defesa de causas, embora em alguns casos tenham sido eficientes em mobilizar a opinião pública em seus países de origem, em muitos casos têm demorado mais a compreender os ambientes pós-coloniais.
Se quiserem acalmar os temores daqueles que procuram ajudar, precisam fazer mais para explicar às populações locais o "contexto" de seus próprios objetivos e metas. Se não o fizerem, seu trabalho se tornará vítima da "atitude de desdém" daqueles que se propõem a escrever livros como este.

A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


[Folha de São Paulo, 24/05/2009]
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