O beijo da Morte

Autor de "Robinson Crusoe", o inglês Daniel Defoe descreveu, em forma de reportagem, a peste que devastou Londres no ano de 1665.

LEONARDO FRÓES

No cenário horripilante do ano da peste em Londres, 1665, o beijo da morte é um dos momentos de maior pavor teatral. Um homem já contaminado, que parece estar delirante ou bêbado, sem mais nem menos agarra uma mulher na rua, beijando-a à força na boca para contaminá-la também.
O episódio é dado por verídico e se intercala a muitos outros igualmente patéticos, mas nunca saberemos ao certo se ele foi inventado ou se de fato corresponde a uma visão real.
O repórter pioneiro que o narra em "Um Diário do Ano da Peste", Daniel Defoe (1660-1731), tinha apenas cinco anos de idade quando a desgraça se abateu sobre Londres.
(Há uma boa tradução brasileira de "Um Diário do Ano da Peste", por Eduardo San Martin, publicada em 2002 pela editora Artes e Ofícios.) Além disso, como repórter romanceador ou ficcionista dos fatos, Daniel Defoe mistura boletins semanais de óbitos e outros dados precisos sobre a calamidade a blocos de uma prosa envolvente, porque direta e voltada para a ação, sobre casos que o narrador diz ter ouvido contar. O "Diário" foi escrito e publicado em 1722, mais de meio século depois da Grande Peste (bubônica), e esses casos assim, mesmo que tivessem base real, já estariam muito adulterados pelo passar do tempo.
Ao fazer sua reportagem retrospectiva da história, o jornalista tarimbado, que durante uma década redigiu praticamente sozinho todas as edições de seu pequeno e influente jornal, "The Review", pesquisou não só estatísticas como também muitos folhetos contemporâneos da peste, que a sumariavam no calor da hora.

Ratos de porão
Trazida por ratos nos porões dos navios que atracavam em Londres e disseminada por pulgas dos cães e gatos que os comiam, a epidemia chegou ao auge no verão de 1665, matando no decorrer desse ano, segundo os cálculos do narrador do "Diário", cerca de 100 mil pessoas.
Se inovou em sua época, pela maneira sutil como emendava o ficcional com o vivido, Daniel Defoe também se antecipou ao futuro no manejo de um estilo que é corrente hoje, quando a convergência cada vez mais estreita entre literatura e jornalismo tem determinado a criação de tantos produtos tecnicamente semelhantes ao "Diário da Peste".
Sem ornamentar suas frases, sem exibir erudição, sem se demorar em excursos, traços peculiares à prosa setecentista, Defoe mantém o leitor sempre ligado na sucessão de quadros de horror que recompõe com eficácia.
Tudo começa com um certo disse-me-disse de que a peste vinha chegando. Em breve se evidenciam os primeiros casos, e a mortandade dispara.
Ruas, depois quarteirões inteiros se esvaziam. As casas onde há doentes, às vezes toda a família, são lacradas pela polícia e vigiadas dia e noite, para impedir que os pesteados fujam.
Proíbem-se bailes, bebidas e diversões públicas, mas, quando as coisas se agravam, ninguém mais garante a lei, porque até mesmo os tribunais são fechados. O caos, por fim, se instala em toda a cidade. Londres estava inchada quando a peste chegou. Com a queda da efêmera república inglesa e a restauração da monarquia, cinco anos antes, "as famílias arruinadas do partido do rei" tinham voltado do exílio, assim como voltavam soldados, sem eira nem beira, da recente guerra com a Holanda.
Sem condições de saneamento, as zonas mais pobres forneciam a maior quantidade de cadáveres que os carroções levavam. Os ricos, aos primeiros alarmes, foram refugiar-se correndo nas propriedades rurais de que dispunham.
Mas os últimos fugitivos pobres da peste se refugiaram no mato, construindo toscas cabanas e sobrevivendo ao acaso, como depois irá fazer Robinson Crusoe, o personagem mais rico de Defoe.

Reconciliação
Apesar da devastação que causou, a Grande Peste, segundo seu narrador, teve um lado positivo, pois "a contemplação da morte próxima reconciliou entre si os homens de bons princípios".
Apontando para as divergências, preconceitos e maus sentimentos que então se perpetuavam, ele diz que "outro ano de peste teria reconciliado estas diferenças".
No ano seguinte, 1666, a peste não voltou, mas Londres foi assolada por seu devastador Grande Incêndio, que em menos de uma semana a reduziu pelo meio a cinzas.

LEONARDO FRÓES é poeta, tradutor e crítico.

[Folha de São Paulo, 03/05/2009]
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