Tchecoslováquia celebra uma revolução com raízes em um rumor

Jonathan Adams, em Praga (República Tcheca)
Vaclav Havel, o dissidente que liderou a Revolução de Veludo que derrubou o comunismo na Tchecoslováquia, já declarou que "verdade e amor devem triunfar sobre a mentira e o ódio". Mas a revolução - seu nome sendo uma referência ao punho cerrado em uma luva de veludo - foi provocada por um falso rumor que permanece um mistério 20 anos depois.

Nesta terça-feira, milhares de tchecos marcharam pelas ruas daqui, ao som de sirenes e rosnados dos cães da polícia, reproduzindo de forma impressionante a marcha estudantil não-violenta em 17 de novembro de 1989, na qual a polícia cercou os manifestantes e rumores se espalharam de que um estudante universitário de 19 anos, chamado Martin Smid, tinha sido morto brutalmente. Dezenas de outros tinham sido violentamente espancados. Mas, na verdade, ninguém morreu.

Jan Urban, um líder dissidente e jornalista que ajudou a disseminar a mentira que ele, como muitos outros, acreditava ser verdade na época, lembrou em uma entrevista que a notícia da suposta morte se espalhou rapidamente, ajudando a despertar uma nação de sua apatia coletiva e fornecendo a fagulha - oito dias após a queda do Muro de Berlim - para acender a rebelião pacífica que culminou com o fim do regime.

"Até aquele dia, havia um acordo entre o regime comunista e o povo: 'Vocês calam a boca e nós cuidaremos de vocês'", ele disse. "Mas no momento em que as pessoas tiveram a impressão de que seus filhos estavam sendo mortos, o acordo foi cancelado. Como jornalista, eu me envergonho da mentira porque foi um erro profissional. Mas não lamento, porque ajudou a provocar o fim de quatro décadas de comunismo."

Havel, o presidente Vaclav Klaus e o primeiro-ministro Jan Fischer se juntaram, nesta terça-feira, a centenas que colocavam velas no monumento que marca o confronto. "A manifestação, a marcha, colocou a história em movimento", disse Havel.

Mas duas décadas após uma mentira ter ajudado a provocar uma revolução, muitos tchecos permanecem sem saber ao certo sobre a verdade do que transcorreu naqueles dias de novembro de 1989, assim como as consequências de uma revolução que alguns sentem ter fracassado em cumprir suas promessas.

A República Tcheca, um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia, é em muitos aspectos a inveja de seus vizinhos. Ela conta com uma democracia vibrante e mais riqueza relativa do que muitos aqui poderiam imaginar. Em uma recente pesquisa feita pela Academia Tcheca de Ciências, 81% dos tchecos disseram que não desejam retornar ao velho regime, apesar de notáveis 14% dizerem que a vida era melhor antes de 1989.

Entre as queixas está uma frustração com a classe política, um ressentimento com as desigualdades sociais e um sentimento geral de apatia e alienação. Um senso de estagnação política tomou conta do país desde que o governo do primeiro-ministro Mirek Topolanek foi derrubado em um voto de não-confiança em março, embaraçando o país na metade de sua presidência da União Europeia.

Lukas Toth, 23 anos, um estudante de filosofia que tinha 3 anos durante a revolução, escreveu recentemente um manifesto expondo as queixas dos estudantes universitários com sua jovem democracia. Ele lamentou o país permanecer atolado na "ressaca comunista", que ele caracterizou como uma tendência de olhar para dentro, um cinismo a respeito da política e uma relutância geral em confrontar o passado. Ele disse que muitos de seus pares não tinham ideia do que estava sendo celebrado em 17 de novembro, porque a história recente foi maquiada nos livros de história tchecos.

"Durante a era comunista, as pessoas aprendiam a sentar sobre suas mãos e não fazer nada, algo que não mudou com a Revolução de Veludo", ele disse. "Uma reflexão histórica não ocorreu porque não podemos lidar com a dor de olhar com muita atenção para o que aconteceu."

Quando perguntados nesta terça-feira sobre o significado do 17 de Novembro, muitos tchecos disseram que era apenas outra desculpa para não trabalhar.

Mas outros, como Mirek Kodym, um ex-segurança de 56 anos com rabo-de-cavalo, que publicava tratados políticos e literários ilegais antes de 1989 e que marchou nesta terça-feira como fez há 20 anos, disse que a Revolução de Veludo foi um momento seminal, no qual uma nação sitiada finalmente provou a liberdade.

"Hoje, você pode ser o que quiser e fazer o que quiser, pois ninguém interferirá", disse. "A nostalgia pelo passado é uma coisa estúpida."

Talvez seja um sinal tanto do pluralismo político do país quanto de sua amnésia coletiva que, 20 anos após a revolução, o Partido Comunista tcheco, um partido marxista não reformado, ainda conquiste quase 15% dos votos aqui.

Na última sexta-feira, ele divulgou uma declaração incendiária para marcar o aniversário de 17 de Novembro, acusando os governos eleitos democraticamente que se seguiram à revolução há 20 anos de "promessas e mentiras".

Havel, que pressionou pela abertura dos arquivos da polícia secreta e ajudou a proibir ex-informantes comunistas de exercerem qualquer cargo público responsável, se recusou a proibir o Partido Comunista em si quando era presidente, por temer causar uma caça às bruxas. Ele argumentou recentemente que a nostalgia pelo antigo regime reflete a condição de um povo que ficou aprisionado por tanto tempo que não sabe o que fazer com sua liberdade recém encontrada.

"Eu sempre comparei a ser solto da prisão", afirmou. "Na prisão, tudo é feito para você; você não decide nada. Eles dizem quando acordar, o que vestir, tudo é decidido por outras pessoas para você. Se você viver assim por anos e então for solto repentinamente, a liberdade se transforma em um fardo."

A Revolução de Veludo ocorreu tarde, mas ainda assim foi um episódio épico de teatro político quando finalmente ocorreu. Em meados de 1989, os governos comunistas da Polônia e da Hungria já tinham sucumbido. Milhares de alemães orientais fugiram para Budapeste e Praga, tentando ir para a Alemanha Ocidental por intermédio de suas embaixadas. Os tchecoslovacos se sentiram ainda mais encorajados quando o Muro de Berlim caiu, enviando o sinal mais potente do que o poder do povo pode fazer.

Após a marcha estudantil de 17 de novembro terminar em sangue, a oposição inchou em uma massa dissidente. Liderados por Havel, que estava na prisão por oposição ao governo, eles iniciaram o Fórum Cívico, que exigia eleições livres. Uma semana após a Sexta-Feira Sangrenta, o Politburo renunciou.

Quando centenas de milhares de pessoas se reuniram na Praça Wenceslas, em Praga, e uma maioria se mobilizou em uma greve geral em 27 de novembro, ficou claro que Havel e seu movimento democrático tinham triunfado.

Tradução: George El Khouri Andolfato

[Herald Tribune, 19/11/2009]
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