Para a maioria das pessoas, o nome Pitágoras é associado ao teorema que relaciona a hipotenusa aos catetos de um triângulo retângulo. Lembro que, na escola, o professor nos ensinou que Pitágoras foi o fundador da matemática, o primeiro pensador a criar a estrutura de teoremas e provas que a caracteriza.
Lendo sobre sua vida; aprendemos que Pitágoras viveu em torno de 550 a.C., que fundou uma seita filosófica que combinava misticismo e matemática e que foi o primeiro a desenvolver a noção de que os números são a essência da realidade: se quisermos compreender a estrutura da natureza, o funcionamento das coisas, basta explorarmos as relações entre os números. Ou seja, a Pitágoras é atribuído o título de pai da ciência.
Arthur Koestler, em seu maravilhoso livro "Os Sonâmbulos", escreveu que Pitágoras foi o "fundador da cultura européia em sua vertente mediterrânea ocidental". O filósofo e matemático Bertrand Russell escreveu em 1946 que "Pitágoras foi intelectualmente um dos homens mais importantes da história". Realmente impressionante. Pena que quase tudo acima seja falso, resultado de uma elaborada fabricação.
Não há dúvida de que Pitágoras criou mesmo uma seita no sul da Itália, e de que nela se especulava sobre a relação entre os números e a realidade. Mas o objetivo não era criar uma descrição científica da natureza; o foco das atividades parecia ser uma numerologia que atribuía significado mágico aos números.
Por exemplo, ao casamento era atribuído o número 5, pois é a soma do primeiro ímpar, representando os homens (3) e do primeiro par, representando as mulheres (2). Aparentemente, o número 1 não contava. O desafio maior encontrado pelos historiadores é que não existe sequer uma linha escrita por Pitágoras. As fontes são todas póstumas, como é o caso de Aristóteles, que escreveu em torno de 150 anos após a morte de Pitágoras.
Segundo o historiador Walter Burkert, as fontes do mito pitagórico, que dizem que Pitágoras criou uma visão unificadora da natureza descrevendo-a a partir de números e geometria foram deliberadamente criadas. De acordo com elas, ele desenvolvera a relação entre os tons da música e os números inteiros e, também, pregava que a essência da natureza é matemática e que a missão do filósofo é desvendar essa essência para, com isso, compreender a mente de Deus.
Essa criação coube a dois discípulos de Platão, Espeusipo e Xenócrates, ambos líderes da Academia após a morte de seu ilustre mestre.
O que os discípulos tentaram, ao aumentar o conteúdo das descobertas dos pitagóricos, foi atribuir a Platão a continuidade da obra de Pitágoras que, segundo eles, foi o apóstolo de uma filosofia matemática que antecipava vários aspectos da metafísica platônica. Segundo outra lenda, na entrada da Academia, podia-se ler a inscrição: "Que ninguém ignorante de geometria entre".
A estratégia funcionou. O mito pitagórico cresceu com os séculos, influenciando profundamente os místicos neoplatônicos da Idade Média e da Renascença, que contribuíram ainda mais na sua elaboração.
No meu livro "A Dança do Universo", onde descrevo em mais detalhe a lenda e o legado pitagórico, afirmei que "o poder de um mito não está em ele ser falso ou verdadeiro, mas em ser efetivo". Não é tão importante se foi ou não Pitágoras o criador dessa relação entre os números e a natureza.
O mito inspirou grandes pensadores, de Copérnico e Kepler a Einstein. E influencia até hoje, na busca por uma descrição unificada da realidade física baseada na geometria.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
[Folha de São Paulo, 27/07/2008]
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