O Prof. Almir Ribeiro foi um dos convidados para Palestra "1968: Reflexões e Heranças", organizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Marximo, Educação e Cultura, coordenado pela Profª Drª Áurea de Carvalho Costa, do Departamento de Educação da Faculdade de Ciencias da UNESP - Campus Bauru, e realizada no dia 20 de maio.
07:55
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by Prof. Almir Ribeiro
Cada novo aumento da produção automobilística é comemorado pela mídia. Compram-se automóveis em 99 prestações. Entupidas, as cidades param. Estaremos, como diz Paulo Mendes da Rocha, nos dedicando a aprimorar a máquina de produzir veneno que inventamos? [Leia a matéria completa...]
07:51
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by Prof. Almir Ribeiro
Jeffrey Gettleman, em Dagaari, Somália
A crise global de alimentos chegou à cabana de Safia Ali.
Ela não mais consegue comprar arroz, trigo ou leite em pó. Uma seca dizimou o rebanho de cabras de sua família, transformando o único meio de vida da família em uma pilha de ossos secos e pele que lembra papel.
Safia, 25 anos e mãe de cinco, não come há uma semana. Seu filho de um ano -um menino adorável mas apático que não responde nem a um beliscão- também está passando fome.
A Somália -e grande parte do volátil Chifre da África- era o último lugar na Terra que precisava de uma crise de alimentos. Mesmo antes dos preços dos commodities começarem a subir por todo o mundo, guerra civil, deslocamento e operações de ajuda ameaçadas já deixavam muitas pessoas daqui à beira da fome.
Mas com o preço dos alimentos subindo fora de alcance e os rebanhos caindo mortos na areia, aldeões por toda esta paisagem castigada pelo sol dizem que centenas de pessoas estão morrendo de fome e sede.
Isto é o que acontece, dizem os economistas, quando a crise global de alimentos se encontra com o caos local. Há uma colisão de problemas por toda a região: falta de chuvas, colheitas desastrosas, alta dos preços dos alimentos, morte dos rebanhos, escalada da violência, inflação desenfreada e redução da ajuda alimentar.
Do outro lado da fronteira na Etiópia, na região de Ogaden assolada pela guerra, a situação soa igualmente sombria. Em Darfur, Sudão, a ONU foi obrigada a suspender as rações de alimentos por causa do aumento do banditismo, que ameaça as entregas de ajuda.
O Quênia também parece vulnerável. Uma recente manchete em um dos principais jornais do Quênia declarou: "25 mil aldeões correm risco de fome", se referindo à combinação de seca, preços mais altos de fertilizantes e combustível e violência pós-eleitoral, que deslocou milhares de agricultores.
"Este lugares não estão à beira do precipício", disse Jeffrey D. Sachs, um economista da Universidade de Colúmbia e consultor da ONU, que recentemente visitou o vizinho Quênia. "Eles já caíram no penhasco."
Muitos somalis estão tentando protelar a fome com um mingau ralo feito de galhos amassados de um espinheiro chamado jerrin. Alguns anciãos disseram que seus filhos estavam mascando seus próprios lábios e línguas por não terem comida. O clima tem sido impiedoso com dias intensamente quentes.
Saida Mohamed Afrah, outra mãe emagrecida, deixou recentemente seus dois filhos sob uma árvore e saiu à procura de alimento e água. Quando ela voltou duas horas depois, as crianças estavam mortas.
Ela tinha pouco a dizer sobre a seca. "Eu só queria que meus filhos tivessem morrido no meu colo", ela disse.
A ONU declarou uma grande área central da Somália como de emergência humanitária, o estágio final antes de uma de fome. Mas Christian Balslev-Olesen, o chefe das operações do Unicef na Somália, disse que a situação provavelmente se tornará de fome nas próximas semanas.
A fome é definida por vários critérios, incluindo desnutrição, mortalidade, escassez de água e alimento e a destruição do meio de vida. Alguns destes fatores, como a taxa aguda de desnutrição de 24% em algumas áreas da Somália, já ultrapassaram os limiares de emergência anteriores e estão próximas da faixa da fome.
Balslev-Olesen disse que a Unicef recebeu recentemente relatos de pessoas morrendo de fome e sede. É difícil saber exatamente quantas, ele disse, apesar dos anciãos locais terem colocado o número em centenas.
"Nós temos todos os indicadores posicionados para uma catástrofe", disse Balslev-Olesen. "Nós não podemos ainda declarar isso. Mas estou muito preocupado que seja apenas questão de semanas até podermos."
Muitas pessoas já consideram a Somália uma catástrofe. Ela possui uma das taxas mais altas de desnutrição do mundo -em um bom ano. O colapso do governo central em 1991 lançou a Somália em disputa sangrenta de clãs da qual ainda não saiu. A era começou com uma fome que matou centenas de milhares de pessoas.
O consenso agora é de que todos os mesmos elementos do início dos anos 90 -conflito em alta intensidade, amplo deslocamento e seca- estão se alinhando de novo, e em um momento da maior alta global nos preços dos alimentos em mais de 30 anos.
A ONU diz que 2,6 milhões de somalis precisam de assistência e que o número poderá inchar em breve para 3,5 milhões, quase metade da população estimada. Se houver uma chuva excelente ou uma paz repentina, a crise poderá abrandar. Mas as projeções meteorológicas e até mesmo as previsões políticas mais otimistas não prevêem isso.
O mergulho ou não dos somalis na fome poderá depender da ajuda, mas no momento ela não parece muito boa.
Onze trabalhadores humanitários foram mortos neste ano, e as autoridades da ONU disseram que a Somália está mais complicada e perigosa do que nunca.
Além das disputas entre clãs e senhores da guerra, há um conflito em formação com os trabalhadores humanitários ocidentais. O governo Bush disse que terroristas da Al Qaeda estão escondidos na Somália, protegidos pelos radicais islâmicos locais, e os tem caçado com ataques aéreos. Mas um recente ataque americano contra um líder islâmico em Dhusamareb, uma cidade no centro da zona da seca, provocou ameaças de vingança contra os trabalhadores humanitários ocidentais. A ONU e organizações de ajuda humanitária privadas disseram que agora está perigoso demais para expandir seu trabalho em Dhusamareb.
"Nós estamos em um ambiente diferente agora", disse Chris Smoot, o diretor de projetos de ajuda da World Vision na Somália. Ele disse que há elementos inamistosos anti-Ocidente "que podem matar você de muitas formas e a qualquer momento".
A ajuda também enfrenta sérios problemas na disputada região de Ogaden da Etiópia, do outro lado da fronteira. Um recente relatório escrito por um funcionário de ajuda humanitária americano disse que a seca está "claramente piorando" e que a resposta do governo etíope, um dos principais aliados dos americanos na África, tem sido "absolutamente abissal".
Isto pode não ser por acaso. O governo etíope está lutando com uma insurreição em Ogaden, e o relatório disse que "os alimentos estão claramente sendo usados como arma", com o governo deixando as áreas rebeldes passarem fome, enquanto um misterioso depósito de alimentos doados pelos americanos foi descoberto em frente a uma base do exército etíope.
O governo americano "não pode em boa consciência permitir que a operação de alimentos continue da forma atual", disse o relatório. "Esta situação seria absolutamente vergonhosa em qualquer outro país."
O relatório não se tornou público, mas uma cópia foi fornecida ao "New York Times". Quando perguntado a respeito, um alto funcionário americano de ajuda humanitária o caracterizou como "apenas um retrato e as observações e impressões de uma pessoa".
Mas o alto funcionário, que falou sob a condição de anonimato, também disse: "Nós não estamos dizendo que não há uma crise em Ogaden. Nós não estamos dizendo que a resposta etíope é satisfatória. Mas algum progresso foi obtido. E precisamos de mais".
As autoridades etíopes se recusaram a comentar e há muito negam violações de direitos humanos em Ogaden. Por toda a região, uma das mais pobres entre as mais pobres, as pessoas ficam à mercê do deserto. Na região central da Somália, por exemplo, menos de 127 milímetros de chuva caíram no último ano e meio, disseram autoridades de ajuda. Os ventos são duros, as gargantas são secas. Esta área, como grande parte do Chifre da África, é árida demais para a agricultura. As pessoas daqui, em postos avançados solitários como Dagaari, sobrevivem pastando cabras, ovelhas, gado e camelos, vendendo os animais pelo dinheiro que usam para comprar comida.
"Mas ninguém quer uma cabra esquelética", explicou Abdul Kadir Nur, um pastor em Dagaari. Isto é tudo o que lhe restou após a seca ter matado 400 de seus 450 animais.
Não longe de uma pilha de ossos de cabra se encontra um círculo de pedras. É a sepultura de seu filho bebê. Abdul Kadir disse que o menino morreu de fome e que foi disposto em sua sepultura em um ângulo "para que pudesse dormir".
Ele caminhou mais alguns passos, suas sandálias cavando na terra seca. Ele chegou na cabana de Safia, onde várias pessoas espiavam na porta, observando ela suar no chão de terra. O hospital mais próximo fica a apenas meia hora de distância, mas ninguém tinha dinheiro para pagar pela viagem. "Ela provavelmente morrerá", disse um ancião e então se afastou.
O filho de Safia parecia sentir isso. Ele se aconchegou ao lado de sua mãe enquanto ainda podia, seu rosto pressionado contra o pano úmido que a cobria. Suas costelas se moviam para cima e para baixo, para cima e para baixo, em rápidas respirações superficiais.
A crise global de alimentos chegou à cabana de Safia Ali.
Ela não mais consegue comprar arroz, trigo ou leite em pó. Uma seca dizimou o rebanho de cabras de sua família, transformando o único meio de vida da família em uma pilha de ossos secos e pele que lembra papel.
Safia, 25 anos e mãe de cinco, não come há uma semana. Seu filho de um ano -um menino adorável mas apático que não responde nem a um beliscão- também está passando fome.
A Somália -e grande parte do volátil Chifre da África- era o último lugar na Terra que precisava de uma crise de alimentos. Mesmo antes dos preços dos commodities começarem a subir por todo o mundo, guerra civil, deslocamento e operações de ajuda ameaçadas já deixavam muitas pessoas daqui à beira da fome.
Mas com o preço dos alimentos subindo fora de alcance e os rebanhos caindo mortos na areia, aldeões por toda esta paisagem castigada pelo sol dizem que centenas de pessoas estão morrendo de fome e sede.
Isto é o que acontece, dizem os economistas, quando a crise global de alimentos se encontra com o caos local. Há uma colisão de problemas por toda a região: falta de chuvas, colheitas desastrosas, alta dos preços dos alimentos, morte dos rebanhos, escalada da violência, inflação desenfreada e redução da ajuda alimentar.
Do outro lado da fronteira na Etiópia, na região de Ogaden assolada pela guerra, a situação soa igualmente sombria. Em Darfur, Sudão, a ONU foi obrigada a suspender as rações de alimentos por causa do aumento do banditismo, que ameaça as entregas de ajuda.
O Quênia também parece vulnerável. Uma recente manchete em um dos principais jornais do Quênia declarou: "25 mil aldeões correm risco de fome", se referindo à combinação de seca, preços mais altos de fertilizantes e combustível e violência pós-eleitoral, que deslocou milhares de agricultores.
"Este lugares não estão à beira do precipício", disse Jeffrey D. Sachs, um economista da Universidade de Colúmbia e consultor da ONU, que recentemente visitou o vizinho Quênia. "Eles já caíram no penhasco."
Muitos somalis estão tentando protelar a fome com um mingau ralo feito de galhos amassados de um espinheiro chamado jerrin. Alguns anciãos disseram que seus filhos estavam mascando seus próprios lábios e línguas por não terem comida. O clima tem sido impiedoso com dias intensamente quentes.
Saida Mohamed Afrah, outra mãe emagrecida, deixou recentemente seus dois filhos sob uma árvore e saiu à procura de alimento e água. Quando ela voltou duas horas depois, as crianças estavam mortas.
Ela tinha pouco a dizer sobre a seca. "Eu só queria que meus filhos tivessem morrido no meu colo", ela disse.
A ONU declarou uma grande área central da Somália como de emergência humanitária, o estágio final antes de uma de fome. Mas Christian Balslev-Olesen, o chefe das operações do Unicef na Somália, disse que a situação provavelmente se tornará de fome nas próximas semanas.
A fome é definida por vários critérios, incluindo desnutrição, mortalidade, escassez de água e alimento e a destruição do meio de vida. Alguns destes fatores, como a taxa aguda de desnutrição de 24% em algumas áreas da Somália, já ultrapassaram os limiares de emergência anteriores e estão próximas da faixa da fome.
Balslev-Olesen disse que a Unicef recebeu recentemente relatos de pessoas morrendo de fome e sede. É difícil saber exatamente quantas, ele disse, apesar dos anciãos locais terem colocado o número em centenas.
"Nós temos todos os indicadores posicionados para uma catástrofe", disse Balslev-Olesen. "Nós não podemos ainda declarar isso. Mas estou muito preocupado que seja apenas questão de semanas até podermos."
Muitas pessoas já consideram a Somália uma catástrofe. Ela possui uma das taxas mais altas de desnutrição do mundo -em um bom ano. O colapso do governo central em 1991 lançou a Somália em disputa sangrenta de clãs da qual ainda não saiu. A era começou com uma fome que matou centenas de milhares de pessoas.
O consenso agora é de que todos os mesmos elementos do início dos anos 90 -conflito em alta intensidade, amplo deslocamento e seca- estão se alinhando de novo, e em um momento da maior alta global nos preços dos alimentos em mais de 30 anos.
A ONU diz que 2,6 milhões de somalis precisam de assistência e que o número poderá inchar em breve para 3,5 milhões, quase metade da população estimada. Se houver uma chuva excelente ou uma paz repentina, a crise poderá abrandar. Mas as projeções meteorológicas e até mesmo as previsões políticas mais otimistas não prevêem isso.
O mergulho ou não dos somalis na fome poderá depender da ajuda, mas no momento ela não parece muito boa.
Onze trabalhadores humanitários foram mortos neste ano, e as autoridades da ONU disseram que a Somália está mais complicada e perigosa do que nunca.
Além das disputas entre clãs e senhores da guerra, há um conflito em formação com os trabalhadores humanitários ocidentais. O governo Bush disse que terroristas da Al Qaeda estão escondidos na Somália, protegidos pelos radicais islâmicos locais, e os tem caçado com ataques aéreos. Mas um recente ataque americano contra um líder islâmico em Dhusamareb, uma cidade no centro da zona da seca, provocou ameaças de vingança contra os trabalhadores humanitários ocidentais. A ONU e organizações de ajuda humanitária privadas disseram que agora está perigoso demais para expandir seu trabalho em Dhusamareb.
"Nós estamos em um ambiente diferente agora", disse Chris Smoot, o diretor de projetos de ajuda da World Vision na Somália. Ele disse que há elementos inamistosos anti-Ocidente "que podem matar você de muitas formas e a qualquer momento".
A ajuda também enfrenta sérios problemas na disputada região de Ogaden da Etiópia, do outro lado da fronteira. Um recente relatório escrito por um funcionário de ajuda humanitária americano disse que a seca está "claramente piorando" e que a resposta do governo etíope, um dos principais aliados dos americanos na África, tem sido "absolutamente abissal".
Isto pode não ser por acaso. O governo etíope está lutando com uma insurreição em Ogaden, e o relatório disse que "os alimentos estão claramente sendo usados como arma", com o governo deixando as áreas rebeldes passarem fome, enquanto um misterioso depósito de alimentos doados pelos americanos foi descoberto em frente a uma base do exército etíope.
O governo americano "não pode em boa consciência permitir que a operação de alimentos continue da forma atual", disse o relatório. "Esta situação seria absolutamente vergonhosa em qualquer outro país."
O relatório não se tornou público, mas uma cópia foi fornecida ao "New York Times". Quando perguntado a respeito, um alto funcionário americano de ajuda humanitária o caracterizou como "apenas um retrato e as observações e impressões de uma pessoa".
Mas o alto funcionário, que falou sob a condição de anonimato, também disse: "Nós não estamos dizendo que não há uma crise em Ogaden. Nós não estamos dizendo que a resposta etíope é satisfatória. Mas algum progresso foi obtido. E precisamos de mais".
As autoridades etíopes se recusaram a comentar e há muito negam violações de direitos humanos em Ogaden. Por toda a região, uma das mais pobres entre as mais pobres, as pessoas ficam à mercê do deserto. Na região central da Somália, por exemplo, menos de 127 milímetros de chuva caíram no último ano e meio, disseram autoridades de ajuda. Os ventos são duros, as gargantas são secas. Esta área, como grande parte do Chifre da África, é árida demais para a agricultura. As pessoas daqui, em postos avançados solitários como Dagaari, sobrevivem pastando cabras, ovelhas, gado e camelos, vendendo os animais pelo dinheiro que usam para comprar comida.
"Mas ninguém quer uma cabra esquelética", explicou Abdul Kadir Nur, um pastor em Dagaari. Isto é tudo o que lhe restou após a seca ter matado 400 de seus 450 animais.
Não longe de uma pilha de ossos de cabra se encontra um círculo de pedras. É a sepultura de seu filho bebê. Abdul Kadir disse que o menino morreu de fome e que foi disposto em sua sepultura em um ângulo "para que pudesse dormir".
Ele caminhou mais alguns passos, suas sandálias cavando na terra seca. Ele chegou na cabana de Safia, onde várias pessoas espiavam na porta, observando ela suar no chão de terra. O hospital mais próximo fica a apenas meia hora de distância, mas ninguém tinha dinheiro para pagar pela viagem. "Ela provavelmente morrerá", disse um ancião e então se afastou.
O filho de Safia parecia sentir isso. Ele se aconchegou ao lado de sua mãe enquanto ainda podia, seu rosto pressionado contra o pano úmido que a cobria. Suas costelas se moviam para cima e para baixo, para cima e para baixo, em rápidas respirações superficiais.
Tradução: George El Khouri Andolfato
[The New York Times]
07:50
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by Prof. Almir Ribeiro
De Amitai Etzioni*
Será oportuno que Israel seja um Estado judaico? Fazer tal pergunta equivale a se perguntar se é mesmo necessário que o papa seja católico. Ainda assim, os defensores dos direitos individuais andaram insistindo nesta indagação, inspirando-se em argumentos que já foram experimentados em certos países onde parte da opinião pretende colocar a identidade nacional na surdina, de modo que as minorias se sintam mais à vontade em seu convívio na sociedade e evitem engendrar terroristas. Argumentos desta natureza se recusam a levar em consideração a contribuição benéfica da comunidade nacional, dos seus valores fundamentais e da sua identidade, ou seja, o cimento que impede o esfacelamento de uma nação.
Em Israel, o raciocínio em favor das minorias e dos direitos individuais se articula em torno de dois argumentos. O mais evidente, por assim dizer, defende que uma ocupação prolongada da Cisjordânia condenaria Israel quer a permanecer uma potência colonial, quer renunciar à sua identidade judaica em proveito de um Estado binacional. Somente um retorno às fronteiras de 1967 (ligeiramente retificadas) poderia debelar os desastres da ocupação e seus efeitos corrosivos sobre a alma de Israel, preservando, além do mais, uma base demográfica essencial para um Estado judaico e democrático.
A segunda parte da argumentação põe em jogo questões mais delicadas, que dizem respeito da mesma forma a outras nações: uma vez contido nas suas fronteiras de 1967, Israel deveria abrir-se para o multiculturalismo. Isto é, renunciar aos seus valores judaicos para tornar-se um Estado culturalmente neutro, capaz de garantir a integração de mais de um milhão de cidadãos árabes (ou seja, cerca de um quinto da população israelense).
Isso permitiria que judeus laicos tirassem proveito da oportunidade para se alforriar daquilo que é considerado por muitos como um regime rabínico opressivo.
(Atualmente, em Israel, ninguém pode casar-se, divorciar nem ser enterrado sem recorrer a uma autoridade religiosa, judaica, muçulmana ou outra).
Contudo, essas considerações parecem menosprezar o fato de que todas as nações do mundo, por mais vastas que sejam, como os Estados Unidos ou a China, têm pelo menos alguma coisa em comum: valores, uma história, uma identidade compartilhada. Se fossem transformadas em Estados neutros, elas seriam espoliadas da dimensão positiva que nos proporcionam as comunidades. Esta dimensão não deve ser subestimada: um cidadão pode muito bem estar pronto para morrer pela sua pátria, indignar-se pessoalmente ao ouvir alguém denegri-la ou, muito simplesmente, ter um sentimento de orgulho ao ver os seus compatriotas vencerem uma competição internacional ou conquistarem uma medalha nos Jogos Olímpicos.
Os defensores dos direitos individuais alegam que, de qualquer maneira, os valores comuns dos israelenses judeus se dissolveram, e que até mesmo as outras nações dispõem de noções apenas vagas da sua cultura comum: no Reino Unido, a noção de "britishness" ("britanicidade") se resumiria a um gosto imoderado pela cerveja morna e pelo críquete.
Mas é importante constatar, entretanto, que as nações desprovidas de valores federativos fortes estão expostas a secessões -como no Canadá ou na Espanha- e enfrentam dificuldades para implantar uma política nacional que exige sacrifícios pelo bem comum.
Aliás, toda nação digna deste nome possui de fato uma determinada orientação cultural. Você pode caçoar quando ouve falar da Europa como de um continente cristão, mas é fato que o descanso dominical nela vigora como regra (e não o sabá judaico nem a sexta-feira dos muçulmanos), as férias acompanham o calendário das festas cristãs, e até mesmo os manuais escolares, assim como diversos ritos públicos veiculam valores cristãos.
Ao procurar apagar essas culturas nacionais, corre-se o risco de um empobrecimento. É justamente o temor de que uma tão grande deterioração ocorra que está atraindo a simpatia de tantos eleitores europeus por partidos políticos hostis à imigração, e que alimenta sentimentos antipalestinos em Israel. A única posição aceitável consiste, portanto, em respeitar a diversidade no âmbito da unidade: cada nação definiria quais são as regras que devem ser compartilhadas por todos, e dentro de quais limites cada comunidade está livre para seguir suas próprias tradições.
Assim, no Reino Unido, em vez de se promover a fusão de todos os grupos étnicos, conforme chegou a ser sugerido recentemente, seria preferível aceitá-los tal como eles são, na medida em que eles não ameaçam os valores nem as instituições nacionais comuns.
Em Israel, isso implicaria não só em respeitar o direito dos judeus e dos árabes a praticarem livremente a sua religião, como também o direito de não se praticar nenhuma. Além do mais, os pregadores de ódio e os apóstolos da violência não deveriam beneficiar de nenhuma complacência. Seria também imperativo suprimir as medidas discriminatórias contra os árabes israelenses e os judeus laicos em matéria de subsídios e de privilégios alocados pelo Estado, como é o caso na atribuição de bolsas de estudos.
A sociologia nos ensina que as sociedades são organismos complexos, animados por necessidades e valores diversos, entre os quais não se deve privilegiar alguns deles, a não ser em detrimento de todos os outros. Não é possível poupar as suscetibilidades de cada uma das minorias sem se arriscar a comprometer o essencial: a comunidade nacional.
Todo esforço visando a assimilar completamente as minorias (o que só pode ser feito menosprezando a cultura própria de cada uma delas) ou a liquidar o etos nacional (em detrimento da cultura comum) de nada servirá senão para exacerbar os conflitos e as tensões. O interesse geral exige antes que se consiga alcançar uma justa dosagem entre os aportes positivos da diversidade e os valores fundamentais que nós temos por obrigação de compartilhar, todos nós sem exceção.
*Amitai Etzioni é sociólogo, professor da universidade George Washington (Washington, DC)
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Será oportuno que Israel seja um Estado judaico? Fazer tal pergunta equivale a se perguntar se é mesmo necessário que o papa seja católico. Ainda assim, os defensores dos direitos individuais andaram insistindo nesta indagação, inspirando-se em argumentos que já foram experimentados em certos países onde parte da opinião pretende colocar a identidade nacional na surdina, de modo que as minorias se sintam mais à vontade em seu convívio na sociedade e evitem engendrar terroristas. Argumentos desta natureza se recusam a levar em consideração a contribuição benéfica da comunidade nacional, dos seus valores fundamentais e da sua identidade, ou seja, o cimento que impede o esfacelamento de uma nação.
Em Israel, o raciocínio em favor das minorias e dos direitos individuais se articula em torno de dois argumentos. O mais evidente, por assim dizer, defende que uma ocupação prolongada da Cisjordânia condenaria Israel quer a permanecer uma potência colonial, quer renunciar à sua identidade judaica em proveito de um Estado binacional. Somente um retorno às fronteiras de 1967 (ligeiramente retificadas) poderia debelar os desastres da ocupação e seus efeitos corrosivos sobre a alma de Israel, preservando, além do mais, uma base demográfica essencial para um Estado judaico e democrático.
A segunda parte da argumentação põe em jogo questões mais delicadas, que dizem respeito da mesma forma a outras nações: uma vez contido nas suas fronteiras de 1967, Israel deveria abrir-se para o multiculturalismo. Isto é, renunciar aos seus valores judaicos para tornar-se um Estado culturalmente neutro, capaz de garantir a integração de mais de um milhão de cidadãos árabes (ou seja, cerca de um quinto da população israelense).
Isso permitiria que judeus laicos tirassem proveito da oportunidade para se alforriar daquilo que é considerado por muitos como um regime rabínico opressivo.
(Atualmente, em Israel, ninguém pode casar-se, divorciar nem ser enterrado sem recorrer a uma autoridade religiosa, judaica, muçulmana ou outra).
Contudo, essas considerações parecem menosprezar o fato de que todas as nações do mundo, por mais vastas que sejam, como os Estados Unidos ou a China, têm pelo menos alguma coisa em comum: valores, uma história, uma identidade compartilhada. Se fossem transformadas em Estados neutros, elas seriam espoliadas da dimensão positiva que nos proporcionam as comunidades. Esta dimensão não deve ser subestimada: um cidadão pode muito bem estar pronto para morrer pela sua pátria, indignar-se pessoalmente ao ouvir alguém denegri-la ou, muito simplesmente, ter um sentimento de orgulho ao ver os seus compatriotas vencerem uma competição internacional ou conquistarem uma medalha nos Jogos Olímpicos.
Os defensores dos direitos individuais alegam que, de qualquer maneira, os valores comuns dos israelenses judeus se dissolveram, e que até mesmo as outras nações dispõem de noções apenas vagas da sua cultura comum: no Reino Unido, a noção de "britishness" ("britanicidade") se resumiria a um gosto imoderado pela cerveja morna e pelo críquete.
Mas é importante constatar, entretanto, que as nações desprovidas de valores federativos fortes estão expostas a secessões -como no Canadá ou na Espanha- e enfrentam dificuldades para implantar uma política nacional que exige sacrifícios pelo bem comum.
Aliás, toda nação digna deste nome possui de fato uma determinada orientação cultural. Você pode caçoar quando ouve falar da Europa como de um continente cristão, mas é fato que o descanso dominical nela vigora como regra (e não o sabá judaico nem a sexta-feira dos muçulmanos), as férias acompanham o calendário das festas cristãs, e até mesmo os manuais escolares, assim como diversos ritos públicos veiculam valores cristãos.
Ao procurar apagar essas culturas nacionais, corre-se o risco de um empobrecimento. É justamente o temor de que uma tão grande deterioração ocorra que está atraindo a simpatia de tantos eleitores europeus por partidos políticos hostis à imigração, e que alimenta sentimentos antipalestinos em Israel. A única posição aceitável consiste, portanto, em respeitar a diversidade no âmbito da unidade: cada nação definiria quais são as regras que devem ser compartilhadas por todos, e dentro de quais limites cada comunidade está livre para seguir suas próprias tradições.
Assim, no Reino Unido, em vez de se promover a fusão de todos os grupos étnicos, conforme chegou a ser sugerido recentemente, seria preferível aceitá-los tal como eles são, na medida em que eles não ameaçam os valores nem as instituições nacionais comuns.
Em Israel, isso implicaria não só em respeitar o direito dos judeus e dos árabes a praticarem livremente a sua religião, como também o direito de não se praticar nenhuma. Além do mais, os pregadores de ódio e os apóstolos da violência não deveriam beneficiar de nenhuma complacência. Seria também imperativo suprimir as medidas discriminatórias contra os árabes israelenses e os judeus laicos em matéria de subsídios e de privilégios alocados pelo Estado, como é o caso na atribuição de bolsas de estudos.
A sociologia nos ensina que as sociedades são organismos complexos, animados por necessidades e valores diversos, entre os quais não se deve privilegiar alguns deles, a não ser em detrimento de todos os outros. Não é possível poupar as suscetibilidades de cada uma das minorias sem se arriscar a comprometer o essencial: a comunidade nacional.
Todo esforço visando a assimilar completamente as minorias (o que só pode ser feito menosprezando a cultura própria de cada uma delas) ou a liquidar o etos nacional (em detrimento da cultura comum) de nada servirá senão para exacerbar os conflitos e as tensões. O interesse geral exige antes que se consiga alcançar uma justa dosagem entre os aportes positivos da diversidade e os valores fundamentais que nós temos por obrigação de compartilhar, todos nós sem exceção.
*Amitai Etzioni é sociólogo, professor da universidade George Washington (Washington, DC)
Tradução: Jean-Yves de Neufville
07:37
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by Prof. Almir Ribeiro
Ao longo de 60 anos, a sociedade israelense viveu três rupturas
De Gilles Paris
No decorrer dos seus 60 anos de existência, a sociedade israelense transformou-se consideravelmente. Hoje, a imigração, que foi inerente ao seu desenvolvimento, está em vias de esgotamento. Israel converteu-se a uma economia de mercado das mais clássicas. Finalmente, as provas das tensões sociais e políticas acabaram sendo fatais para o "homem novo" que deveria acompanhar o crescimento do Estado judaico.
Um país fundado pelas "aliyas" sucessivas
O Estado judeu tinha como objetivo reagrupar em sua terra a maior parte possível da diáspora judaica. Este objetivo dos dirigentes sionistas foi alcançado apenas parcialmente (cerca de 40% dos judeus existentes em todo o mundo vivem atualmente em Israel).
Desde 1948, a imigração sempre foi realizada em ritmo irregular. Ultimamente, ela vem apresentando uma diminuição constante, passando, em 2007, e pela primeira vez ao longo de vinte anos, abaixo da marca de 20.000 chegadas por ano. Esta diminuição pode ser explicada pelo fato de os "reservatórios" que constituíam as diásporas dos países da ex-União Soviética estarem atualmente esgotados, ao passo que as diásporas judaicas mais importantes (Estados Unidos, França) se caracterizam por uma imigração reduzida e muito seletiva. Por exemplo, apenas 2.659 franceses de confissão judaica optaram por se instalar em Israel, em 2007.
O crescimento constante da população (que foi multiplicada por oito no espaço de 60 anos) se baseia daqui para frente numa fecundidade cuja taxa é variável, dependendo dos segmentos de população (entre os ultra-ortodoxos, por exemplo, ela é muito elevada).
Entretanto, esta taxa em nível nacional diminuiu de 3,9 filhos por mulher, durante os anos 1950, para 2,8 em 2005. Como resultado de um efeito de convergência, a taxa de fecundidade na população árabe israelense, que por muito tempo foi uma das mais elevadas do mundo, diminuiu da mesma forma, até se estabilizar em 4 filhos por mulher a partir de 2005.
Uma nação impregnada pelo coletivismo
Caracterizado, desde a sua origem, pelo funcionamento dos "kibutz" e pela parte importante da sua atividade dedicada à agricultura, Israel foi se convertendo progressivamente à economia de mercado. Neste processo, o Estado e a principal central sindical, a Histadrout, que eram inicialmente instituições essenciais para o seu funcionamento, foram se desengajando em relação à economia.
No decorrer dos últimos anos, a parte das despesas públicas não parou de diminuir, uma tendência que também se repercutiu nas despesas sociais. Daqui para frente, a economia israelense está fortemente integrada à economia mundial. Aliás, os investimentos estrangeiros no país alcançaram o valor total recorde de US$ 14,3 bilhões (cerca de R$ 24 bilhões) em 2006.
Esta economia se caracteriza atualmente por um forte crescimento (de 5,3% em 2007), enquanto a taxa de desemprego subiu em 2008 para 7,3%. O crescimento israelense tem sido dinamizado, entre outros, pelo setor das novas tecnologias (mais de 10% do PIB), o qual passou a ocupar o lugar que havia sido atribuído, 60 anos atrás, à agricultura. Esta liberalização também gerou o seu lado negativo: praticamente um quarto (24,7%) da população israelense é considerada atualmente como pobre. A pobreza aumentou em 20,3% desde 2002.
Um "homem novo" ancorado no seu território
Com a sua atuação decisiva no contexto do desenvolvimento do Estado, e o seu status diferenciado em relação à diáspora, o "sabra" encarna o israelense ideal, ao mesmo tempo agricultor, combatente e laico. A grande massa dos sabras constitui a coluna vertebral do Mapai, o ancestral do Partido Trabalhista, que monopoliza o poder. Este modelo vai se esgotando, depois dos questionamentos sucessivos do modelo de integração privilegiado, a partir dos anos 1930 até os anos 1960; e em conseqüência da contestação "sefardi", que encontra uma tradução política em 1977 com a vitória do Likoud, que introduziu a primeira alternância política em Israel.
Durante os anos 1970, depois da conquista militar da Cisjordânia e de Gaza, o movimento da colonização consegue reencarnar, nos territórios palestinos, o espírito pioneiro e o ideal de "nova fronteira". O processo de paz de Oslo, a partir de 1993, passou a questionar o modelo encarnado pelos colonos. Além disso, a retirada unilateral de Gaza, em 2005, que evidenciou a marginalização deste movimento no âmbito da sociedade israelense, desferiu um golpe fatal neste ideal.
Paralelamente aos conflitos que se sucederam no decorrer da sua história, a conversão por necessidade, ou forçada, de Israel ao pragmatismo contribuiu para a sua perenidade.
CRONOLOGIA
- 14.mai.1948 - Proclamação do Estado de Israel em Tel-Aviv por David Ben Gourion. Começo da imigração sefardi; inicialmente oriunda de países orientais (Iraque, Iêmen), foi reativada pela chegada dos judeus originários do Maghreb (países da África do Norte) depois da guerra de 1956 e da descolonização
- 01.abr.1952 - Adoção pela Knesset (Parlamento) da lei que confere nacionalidade israelense a todo imigrante judeu que se instala em Israel
- 18.mai.1971 - Manifestação em Jerusalém organizada pelo movimento das Panteras Negras, que expressa as frustrações dos sefardis. Explica em parte a vitória do Likoud (direita nacionalista) nas eleições legislativas de 1977. Em 1984, é fundado o Shass, partido dos ultra-ortodoxos sefardis, que se torna uma força de apoio estratégica
- 14.set.1984 - Para enfrentar a crise, uma coalizão entre os trabalhistas e o Likoud assume o comando da economia. O primeiro-ministro Shimon Peres adota uma política de questionamento e substituição progressiva do modelo original, impregnado de coletivismo, dos kibutz
- 28.mar.2006 - O partido Israel Beitenou, liderado por Avigdor Lieberman, conquista 11 assentos nas eleições legislativas e confirma a permanência de importante eleitorado "russo", como resultado da imigração muito intensa, durante os anos 1990, de provenientes da ex-URSS
TERMOS
aliyas: "subidas" até Israel; imigração de judeus, no sentido oposto ao da diáspora, para o novo Estado israelense
kibutz: comunidade típica e específica de Israel, que se caracteriza pelo colectivismo em todos os aspectos da sua atividade, da construção de casas e cuidado das famílias à formação de renda através do trabalho e cultivo de plantações sabra nome dado aos israelenses nascidos no novo Estado israelense
sefardi: judeus cuja ascendência remonta às comunidades judaicas ibéricas, que viveram na Idade Média na Espanha e em Portugal até se espalharem pela Europa e o Oriente Médio
Tradução: Jean-Yves de Neufville
[The New York Time, 14/05/2008]
De Gilles Paris
No decorrer dos seus 60 anos de existência, a sociedade israelense transformou-se consideravelmente. Hoje, a imigração, que foi inerente ao seu desenvolvimento, está em vias de esgotamento. Israel converteu-se a uma economia de mercado das mais clássicas. Finalmente, as provas das tensões sociais e políticas acabaram sendo fatais para o "homem novo" que deveria acompanhar o crescimento do Estado judaico.
Um país fundado pelas "aliyas" sucessivas
O Estado judeu tinha como objetivo reagrupar em sua terra a maior parte possível da diáspora judaica. Este objetivo dos dirigentes sionistas foi alcançado apenas parcialmente (cerca de 40% dos judeus existentes em todo o mundo vivem atualmente em Israel).
Desde 1948, a imigração sempre foi realizada em ritmo irregular. Ultimamente, ela vem apresentando uma diminuição constante, passando, em 2007, e pela primeira vez ao longo de vinte anos, abaixo da marca de 20.000 chegadas por ano. Esta diminuição pode ser explicada pelo fato de os "reservatórios" que constituíam as diásporas dos países da ex-União Soviética estarem atualmente esgotados, ao passo que as diásporas judaicas mais importantes (Estados Unidos, França) se caracterizam por uma imigração reduzida e muito seletiva. Por exemplo, apenas 2.659 franceses de confissão judaica optaram por se instalar em Israel, em 2007.
O crescimento constante da população (que foi multiplicada por oito no espaço de 60 anos) se baseia daqui para frente numa fecundidade cuja taxa é variável, dependendo dos segmentos de população (entre os ultra-ortodoxos, por exemplo, ela é muito elevada).
Entretanto, esta taxa em nível nacional diminuiu de 3,9 filhos por mulher, durante os anos 1950, para 2,8 em 2005. Como resultado de um efeito de convergência, a taxa de fecundidade na população árabe israelense, que por muito tempo foi uma das mais elevadas do mundo, diminuiu da mesma forma, até se estabilizar em 4 filhos por mulher a partir de 2005.
Uma nação impregnada pelo coletivismo
Caracterizado, desde a sua origem, pelo funcionamento dos "kibutz" e pela parte importante da sua atividade dedicada à agricultura, Israel foi se convertendo progressivamente à economia de mercado. Neste processo, o Estado e a principal central sindical, a Histadrout, que eram inicialmente instituições essenciais para o seu funcionamento, foram se desengajando em relação à economia.
No decorrer dos últimos anos, a parte das despesas públicas não parou de diminuir, uma tendência que também se repercutiu nas despesas sociais. Daqui para frente, a economia israelense está fortemente integrada à economia mundial. Aliás, os investimentos estrangeiros no país alcançaram o valor total recorde de US$ 14,3 bilhões (cerca de R$ 24 bilhões) em 2006.
Esta economia se caracteriza atualmente por um forte crescimento (de 5,3% em 2007), enquanto a taxa de desemprego subiu em 2008 para 7,3%. O crescimento israelense tem sido dinamizado, entre outros, pelo setor das novas tecnologias (mais de 10% do PIB), o qual passou a ocupar o lugar que havia sido atribuído, 60 anos atrás, à agricultura. Esta liberalização também gerou o seu lado negativo: praticamente um quarto (24,7%) da população israelense é considerada atualmente como pobre. A pobreza aumentou em 20,3% desde 2002.
Um "homem novo" ancorado no seu território
Com a sua atuação decisiva no contexto do desenvolvimento do Estado, e o seu status diferenciado em relação à diáspora, o "sabra" encarna o israelense ideal, ao mesmo tempo agricultor, combatente e laico. A grande massa dos sabras constitui a coluna vertebral do Mapai, o ancestral do Partido Trabalhista, que monopoliza o poder. Este modelo vai se esgotando, depois dos questionamentos sucessivos do modelo de integração privilegiado, a partir dos anos 1930 até os anos 1960; e em conseqüência da contestação "sefardi", que encontra uma tradução política em 1977 com a vitória do Likoud, que introduziu a primeira alternância política em Israel.
Durante os anos 1970, depois da conquista militar da Cisjordânia e de Gaza, o movimento da colonização consegue reencarnar, nos territórios palestinos, o espírito pioneiro e o ideal de "nova fronteira". O processo de paz de Oslo, a partir de 1993, passou a questionar o modelo encarnado pelos colonos. Além disso, a retirada unilateral de Gaza, em 2005, que evidenciou a marginalização deste movimento no âmbito da sociedade israelense, desferiu um golpe fatal neste ideal.
Paralelamente aos conflitos que se sucederam no decorrer da sua história, a conversão por necessidade, ou forçada, de Israel ao pragmatismo contribuiu para a sua perenidade.
CRONOLOGIA
- 14.mai.1948 - Proclamação do Estado de Israel em Tel-Aviv por David Ben Gourion. Começo da imigração sefardi; inicialmente oriunda de países orientais (Iraque, Iêmen), foi reativada pela chegada dos judeus originários do Maghreb (países da África do Norte) depois da guerra de 1956 e da descolonização
- 01.abr.1952 - Adoção pela Knesset (Parlamento) da lei que confere nacionalidade israelense a todo imigrante judeu que se instala em Israel
- 18.mai.1971 - Manifestação em Jerusalém organizada pelo movimento das Panteras Negras, que expressa as frustrações dos sefardis. Explica em parte a vitória do Likoud (direita nacionalista) nas eleições legislativas de 1977. Em 1984, é fundado o Shass, partido dos ultra-ortodoxos sefardis, que se torna uma força de apoio estratégica
- 14.set.1984 - Para enfrentar a crise, uma coalizão entre os trabalhistas e o Likoud assume o comando da economia. O primeiro-ministro Shimon Peres adota uma política de questionamento e substituição progressiva do modelo original, impregnado de coletivismo, dos kibutz
- 28.mar.2006 - O partido Israel Beitenou, liderado por Avigdor Lieberman, conquista 11 assentos nas eleições legislativas e confirma a permanência de importante eleitorado "russo", como resultado da imigração muito intensa, durante os anos 1990, de provenientes da ex-URSS
TERMOS
aliyas: "subidas" até Israel; imigração de judeus, no sentido oposto ao da diáspora, para o novo Estado israelense
kibutz: comunidade típica e específica de Israel, que se caracteriza pelo colectivismo em todos os aspectos da sua atividade, da construção de casas e cuidado das famílias à formação de renda através do trabalho e cultivo de plantações sabra nome dado aos israelenses nascidos no novo Estado israelense
sefardi: judeus cuja ascendência remonta às comunidades judaicas ibéricas, que viveram na Idade Média na Espanha e em Portugal até se espalharem pela Europa e o Oriente Médio
Tradução: Jean-Yves de Neufville
[The New York Time, 14/05/2008]
19:06
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by Prof. Almir Ribeiro
Qualidade de vida de escravos e homens livres, ambos vivendo em condições precárias, pouco diferia na América portuguesa
MANOLO FLORENTINO
Historiador tem mania de origem. Talvez porque os primeiros a se interessarem pelo tempo o fizeram quando às línguas bastava flexionar passado e presente, e tudo se encontrava de antemão em seu devido lugar. O passado explicava e determinava.
Vício pior veio depois, quando de recitada a história virou escrita. Enquanto não passou de mais um gênero literário, ela conseguiu guardar muito da antiga flexibilidade argumentativa. Podia-se escrever sem temor, por exemplo, que a profecia guiara certo líder ou que filosófica deveria ser a forma de narrar algumas trajetórias.
Foi necessário muito tempo para que, convertidos em cientistas sociais, os historiadores se vissem obrigados a de tudo reter apenas o essencial e laico.
Por vezes a transição se fez isolando seus objetos em verdadeiros chiqueirinhos binários, do tipo civilizado/primitivo, capitalismo/feudalismo, moderno/arcaico, direita/esquerda. Mas, quando a ambigüidade transbordava o indivíduo e impregnava o coletivo, operar com códigos binários levava muitos estudiosos a jogar fora a água e o bebê.
Tome-se o cativo como exemplo. Simultaneamente mercadoria e pessoa, nele a ambigüidade se inscreve como nódoa, não cabendo ao historiador transformá-la em "problema" a ser resolvido.
Mistura ambígua
De sua humanidade fala a família escrava, espaço de afirmação e de ressignificação cultural. Da condição mercantil dá a conhecer uma cifra eloqüente, pinçada de Moses Finley (1912-1986): quando já não havia tráfico externo, um escravo do sul dos EUA era comprado e vendido em média 1,4 vez durante a vida.
Se ambígua era a condição cativa, não é razoável que as sociedades escravistas pudessem se reduzir à aporia cativeiro versus liberdade.
Como na propagação de círculos concêntricos em água maculada por sólido, o lusco-fusco encarnado no preto escravizado se espalhava por toda a sociedade, bordando as relações com os amos, enodoando os contatos com os outros homens livres e cativos, plasmando instituições formais e informais, desviando a sociedade da "civitas".
Servos livres
Os escravos representavam em média um terço da população da América portuguesa, padrão semelhante ao do mundo greco-romano. Por referir-se a cativos concentrados em poucas mãos, desse dado resulta que a maior parte da população colonial era constituída por homens e mulheres pobres e remediados.
Maioria livre? Sem dúvida, mas apenas na letra da lei. Pois se, como testemunhou o estatístico Gregory King (1648-1712), no berço do individualismo -a Inglaterra-, 40% das pessoas ainda estavam submetidas a alguma sorte de servidão, que dizer da profusão de mestiços desapossados a errar pela fronteira mais longínqua da Europa?
Do outro lado, é certo que a maior parte dos escravos nascidos ou desembarcados no Brasil morria como homens-mercadorias. Mas documentos referentes à mobilidade ascendente, da qual a alforria podia representar apenas o primeiro passo, resultaram em grandes livros exatamente porque desvelaram variações de cativeiro que embaralhavam a herança jurídica romana.
Neles encontramos a escrava dona de apenas um quarto de si, pois três dos quatro amos que a herdaram recusavam-se a alforriá-la. Ou aquela que, tendo comprado a liberdade a prestação, era por alguns juízes considerada uma devedora livre e, por outras, cativa até a quitação da última parcela -é óbvio, o estatuto dos filhos nascidos durante o processo também dividia os magistrados.
Papéis urbanos tecem enredos ainda mais inusitados: escravos pagando pela liberdade a amos igualmente escravizados. Escravos escravistas vivendo longe das casas de seus proprietários, sujeitos ao pago de jornais semanais ou mensais, as únicas ocasiões em que ambos se encontravam. O dia-a-dia de alguns cativos era marcado por tanta autonomia que às vezes era preferível "melhorar de vida" dentro do cativeiro do que buscar superá-lo.
Fotogramas
A historiadora Cacilda Machado demonstrou que recortes geracionais podem desvendar outros intrincados aspectos. E que, de quebra, tem razão o britânico Peter Burke ao insistir na importância de estudar os casos de mobilidade descendente.
Ela descobriu no sul da América portuguesa de fins do século 18 uma família formada pelo escravo Jerônimo e pela índia Verônica, cujos cinco filhos (Eusébia, Caetano, Micaela, Antonia e Antonio do Carmo) eram todos livres -a prole herdava o estatuto da mãe.
Um dos filhos de Eusébia uniu-se a uma escrava em 1814, razão pela qual os netos de Eusébia retornaram ao cativeiro do qual a avó se livrara por ser filha de Verônica. Antes, em 1812, o filho de Caetano tomara por cônjuge outra cativa, pelo que também Caetano viu seus netos voltarem à escravidão da qual escapara.
Se tomarmos essas trajetórias individuais e de linhagens não como fotografias, mas como fotogramas que compõem vários filmes, veremos que seus atores vegetavam no mesmo cenário de pobreza em que chafurdava a maioria dos homens livres.
Talvez tenha surgido ali -na pobreza, e não nos estatutos jurídicos ou nas etnias em particular- a ambigüidade que se tornou o outro nome do Brasil.
MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[Folha de São Paulo, 11/05/2008]
19:03
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by Prof. Almir Ribeiro
Segundo professor de Harvard, países mais pobres da África hoje são os que mais exportaram escravos no passado
ERNANE GUIMARÃES NETO
Estatísticas comprovam: vender escravos faz mal à África. É o que diz Nathan Nunn, 33, professor de economia na Universidade Harvard. Nunn apresentou, no início do ano, resultados de uma pesquisa que correlaciona a exportação de escravos no passado à baixa renda de hoje. A pesquisa usou informações do Projeto Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, que reúne documentos diversos, como inventários, arquivos religiosos e registros de compra e venda, relacionados ao tráfico de escravos africanos do século 15 ao 19. No artigo "Efeitos de Longo Prazo do Comércio de Escravos Africanos", publicado no "Quarterly Journal of Economics", Nunn diz que "não apenas o uso de escravos é deletério para uma sociedade, mas a produção de escravos, ocorrida por meio da guerra doméstica, da pilhagem e dos seqüestros, também tem impactos negativos no desenvolvimento". Em seus estudos, o Brasil aparece perfeitamente enquadrado à linha de correlação segundo a qual quanto maior a proporção de escravos na população em 1750, menor o PIB per capita em 2000. E, do outro lado do Atlântico, as regiões africanas que mais exportaram escravos se tornaram os países de menor renda hoje. Apesar de colegas o criticarem por cruzar dados no mínimo heterogêneos, o estudo já é visto nos EUA como prova matemática do dano causado pelo Ocidente à África. Em entrevista à Folha, Nunn não arrisca conclusões práticas. Devem-se reparações à África? "Não estudei esse ponto."
FOLHA - O que relaciona a escravidão do passado à pobreza de hoje?
NATHAN NUNN - Meu estudo trata dos canais de ligação mais prováveis. Um é a formação dos Estados -o comércio escravista historicamente inibiu o desenvolvimento de grandes Estados estáveis. Outro é o fracionamento étnico: o comércio de escravos inibiu a formação de grupos étnicos maiores.
FOLHA - Guerra e escravidão já não eram características comuns entre povos africanos antes do comércio escravista com o Ocidente?
NUNN - A escravidão e a guerra eram provavelmente comuns antes do comércio escravista, mas o escravismo certamente aumentou sua ocorrência.
FOLHA - Como foi feita a pesquisa? Há registros confiáveis tratando de escravos, por exemplo, em 1500?
NUNN - Há registros datados dos anos 1500. Os dados estão disponíveis apenas para certos anos e para certos países. As informações mais antigas são particularmente dispersas, mas isso só poderia ter como conseqüência que não encontrássemos nenhuma relação entre os dados. Ao invés disso, apesar da má qualidade dos dados, vemos correlações fortes entre os números.
FOLHA - O Ocidente tem "culpa"?
NUNN - Não sei bem o que isso significa. Europeus estiveram envolvidos em parte do comércio de escravos, assim como africanos e árabes.
FOLHA - Em seu texto "Legados Históricos", o sr. diz que, em certas regiões da África, "por causa da estabilidade dos equilíbrios de baixa produção, a sociedade fica presa ao equilíbrio "subótimo" mesmo depois de encerrado o período de extração externa" [tráfico de escravos e colonialismo]. Isso quer dizer que esses povos se acostumaram à pobreza?
NUNN - Não. É porque temos dois equilíbrios nesse modelo. O jugo colonial fez a sociedade mudar de um equilíbrio para o outro. No equilíbrio, a produção é baixa porque há uma alta quantidade de "rent-seeking" [submissão de políticas públicas aos interesses particulares visando ao acúmulo de riqueza individual]. Há muito "rent-seeking" porque a produção é baixa, e assim por diante. Desse modo há um equilíbrio estável, auto-sustentado.
FOLHA - E como é que a escravidão não produziu riqueza para os descendentes dos caçadores e vendedores de escravos?
NUNN - Não há estudos sobre a riqueza individual de descendentes dos caçadores e comerciantes de escravos. Por conta da minha pesquisa, sabemos que o nível médio de renda em um país é negativamente afetado pelo comércio de escravos. Mas não sabemos como foi afetada a renda de certos grupos.
FOLHA - Quero dizer: não se formaram "Estados escravistas"? A riqueza de certos reinos atuais não é herdeira do escravismo?
NUNN - Alguns Estados, como o axanti e o oyo, desenvolveram um consumo do escravismo. Esses Estados predatórios enriqueceram com o comércio de escravos, mas eram instáveis e duraram pouco. Aparentemente, não possuíam as instituições necessárias para resistir ao tempo. Teoricamente, o escravismo poderia ter causado centralização nesses países predadores, mas na prática deve ter causado enfraquecimento e fragmentação da política.
FOLHA - Quais são as especificidades da escravidão na América portuguesa?
NUNN - O que distinguiu Portugal é que foi um dos primeiros países europeus a exportar escravos durante o tráfico escravista atlântico -e foi o último país europeu a parar.
[Folha de São Paulo, 11/05/2008]
18:59
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by Prof. Almir Ribeiro
Da Guerra Fria à guerra por prestígio
Em seu livro, o jornalista Edward Lucas exagera ao falar da ameaça da Rússia ao Ocidente, mas não deixa de alarmar [Leia...]
A revolução que não houve... e mudou tudo
Talvez a geração de 1968 não tenha chegado aonde queria, mas mesmo assim deixou suas marcas na História, o que é uma outra maneira de vencer [Leia...]
18:47
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by Prof. Almir Ribeiro
Gaudêncio Torquato
O estrangeiro que chega ao País sem passar pela ponte que liga o lado da ficção à banda da realidade toma um susto: o Brasil está sendo passado a limpo. Organismos policiais, escudados na maior rede de espionagem da história pátria, estouram máfias e arrebentam fronteiras de corrupção. Operações se sucedem, cada uma com direito a nome fantasia para tipificar o evento, sem limitações de espaços e perfis. Políticos, empresários, profissionais liberais, pessoas de todos os calibres são captadas pela gigantesca lupa da mais contemporânea extensão orwelliana do Big Brother. O Estado moral se impõe, absoluto, jogando no leito do governo que o dirige feitos surpreendentes, alguns de nítido caráter espetaculoso, com presos algemados, entre eles advogados, figuras que, por dever de ofício, jamais se arriscariam a correr se estivessem de punhos livres. O estrangeiro nem desconfia que, simbolicamente, a algema é um traço que separa o passado do presente, o facão estropiado da injustiça de outrora da lâmina afiada da hodierna Justiça. É isso que o selo lulista quer passar.
As estruturas a serviço do Estado moral lubrificam mecanismos de vigilância e estendem seus tentáculos sobre os mais recônditos abrigos da corrupção. O Ministério Público, povoado por jovens promotores, alguns tocados pela chama cívica, aciona dispositivos e faz subir aos céus uma montanha de denúncias. Não se lhes tira o mérito de contribuírem para a limpeza ética nos devastados terrenos da administração pública. Fica, porém, patente a existência de dois grupos, um composto por perfis guiados por padrões éticos, outro encantado com o brilho midiático, pronto a ilustrar a galeria do Estado espetáculo. O próprio Judiciário entra na campanha moralizadora, não economizando locução. Nos últimos tempos, tornaram-se freqüentes manifestações de teor polêmico emitidas por membros da alta magistratura, nos vazios abertos pelo Parlamento nacional, e a título de interpretar pontos obscuros da legislação, particularmente no campo partidário. O nosso estrangeiro se arrepia ao perceber que o DNA da política corre nas veias dos guardiães da lei.
No afã de implantar uma reforma de costumes na arena eleitoral, o bem-intencionado ministro Carlos Ayres Britto, novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, promete aprumar o olho em direção a candidatos de ficha suja. Parte do pressuposto de que alguém envergando a tarja de processos criminais e de improbidade administrativa não pode entrar no vestibular das eleições. Põe em xeque o consagrado princípio do direito penal: um candidato só se torna inelegível se for condenado com sentença transitada em julgado. O ministro vale-se do inciso 9º do artigo 14 da Constituição federal, que manda considerar “a vida pregressa do candidato”. A discussão está posta às vésperas do pleito municipal, em que milhares de candidatos com fichas manchadas entrarão de qualquer jeito, até por saberem que nossa Justiça é lenta como tartaruga.
Ao enxergar a feição moral moldada por nossas instituições e estampada na mídia, o estrangeiro não resiste à primeira leitura de que o Brasil é rigorosa nação emergente. Para arrematar a convicção, vê o presidente Luiz Inácio justificando a entrada do País no ranking do investment grade por conta da seriedade do governo. De fato, desde os tempos do experimentalismo monetário, o País virou a página à barbárie populista, voltada para o aceno às massas. Como o estrangeiro desta narrativa é um anglo-saxão de cultura racional começa, no entanto, a desconfiar de que, por aqui, a seriedade tem um quê de deboche. Ele se pergunta por que o presidente da República passa todos os dias da semana em palanque perorando sobre um filho de nome pomposo - Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - e apresentando ao povo a mãe do rebento e candidata in pectore à Presidência da República, ministra Dilma Rousseff. Surpreende-se quando descobre que a campanha presidencial será apenas em 2010. Fica mais embasbacado quando constata que, de R$ 17,2 bilhões já autorizados para se gastarem no PAC este ano, apenas R$ 1,9 bilhão foi empenhado e, deste, apenas R$ 13,7 milhões pagos. Se o Brasil escapou do populismo (será?), raciocina o visitante, parece não ter saído da barbárie gerencial.
Pergunta a um interlocutor o que significa a frase presidencial gritada num púlpito do Piauí: “Ninguém segura este país.” É dito a ele que se trata de um bordão muito conhecido nos tempos da ditadura militar. E no instante em que o “como assim?” engasga na garganta do estrangeiro, a ele se explica que a frase pertence ao vocabulário ufanista, em que abundam paradoxos e superlativos. Não deveria ser levada a sério. Até porque o atual governo sabe que há máquinas obsoletas que seguram o País, impedindo mudanças. Os portos oferecem estrutura defasada. A malha viária é um quebra-molas da logística. A navegação aérea retrocedeu. O sistema ferroviário não evoluiu. O saneamento básico racha a cara da cidadania. A burocracia enfeita o paternalismo com florestas de papel e tinta. A carga tributária apunhala setores produtivos. O cipoal normativo sufoca o empreendedorismo. A segurança jurídica é frouxa. As agências reguladoras continuam à procura de uma biruta. E o assistencialismo em forma bruta detém o avanço. Enfim, cai a ficha do nosso visitante.
Nesse ponto, as bandas do quase nada e do quase tudo se juntam. O Brasil, conclui ele, é um país que patina na relatividade. O cabo-de-guerra puxado pelas alas dá empate. Os mutirões éticos são louváveis. Mas a pirotecnia é pérfida. Usar métodos científicos para investigar o assassinato de uma garotinha é avanço. Mas botar a boca no trombone diante de câmeras, holofotes, microfones, antes de exame da Justiça, é execrável. Na era do Estado espetáculo, até o denuncismo cai em desgraça. Que o diga o jogador Ronaldo, que conseguiu o “fenômeno” de transformar acusadores em réus.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
[O Estado de São Paulo, 11/05/2008]
O estrangeiro que chega ao País sem passar pela ponte que liga o lado da ficção à banda da realidade toma um susto: o Brasil está sendo passado a limpo. Organismos policiais, escudados na maior rede de espionagem da história pátria, estouram máfias e arrebentam fronteiras de corrupção. Operações se sucedem, cada uma com direito a nome fantasia para tipificar o evento, sem limitações de espaços e perfis. Políticos, empresários, profissionais liberais, pessoas de todos os calibres são captadas pela gigantesca lupa da mais contemporânea extensão orwelliana do Big Brother. O Estado moral se impõe, absoluto, jogando no leito do governo que o dirige feitos surpreendentes, alguns de nítido caráter espetaculoso, com presos algemados, entre eles advogados, figuras que, por dever de ofício, jamais se arriscariam a correr se estivessem de punhos livres. O estrangeiro nem desconfia que, simbolicamente, a algema é um traço que separa o passado do presente, o facão estropiado da injustiça de outrora da lâmina afiada da hodierna Justiça. É isso que o selo lulista quer passar.
As estruturas a serviço do Estado moral lubrificam mecanismos de vigilância e estendem seus tentáculos sobre os mais recônditos abrigos da corrupção. O Ministério Público, povoado por jovens promotores, alguns tocados pela chama cívica, aciona dispositivos e faz subir aos céus uma montanha de denúncias. Não se lhes tira o mérito de contribuírem para a limpeza ética nos devastados terrenos da administração pública. Fica, porém, patente a existência de dois grupos, um composto por perfis guiados por padrões éticos, outro encantado com o brilho midiático, pronto a ilustrar a galeria do Estado espetáculo. O próprio Judiciário entra na campanha moralizadora, não economizando locução. Nos últimos tempos, tornaram-se freqüentes manifestações de teor polêmico emitidas por membros da alta magistratura, nos vazios abertos pelo Parlamento nacional, e a título de interpretar pontos obscuros da legislação, particularmente no campo partidário. O nosso estrangeiro se arrepia ao perceber que o DNA da política corre nas veias dos guardiães da lei.
No afã de implantar uma reforma de costumes na arena eleitoral, o bem-intencionado ministro Carlos Ayres Britto, novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, promete aprumar o olho em direção a candidatos de ficha suja. Parte do pressuposto de que alguém envergando a tarja de processos criminais e de improbidade administrativa não pode entrar no vestibular das eleições. Põe em xeque o consagrado princípio do direito penal: um candidato só se torna inelegível se for condenado com sentença transitada em julgado. O ministro vale-se do inciso 9º do artigo 14 da Constituição federal, que manda considerar “a vida pregressa do candidato”. A discussão está posta às vésperas do pleito municipal, em que milhares de candidatos com fichas manchadas entrarão de qualquer jeito, até por saberem que nossa Justiça é lenta como tartaruga.
Ao enxergar a feição moral moldada por nossas instituições e estampada na mídia, o estrangeiro não resiste à primeira leitura de que o Brasil é rigorosa nação emergente. Para arrematar a convicção, vê o presidente Luiz Inácio justificando a entrada do País no ranking do investment grade por conta da seriedade do governo. De fato, desde os tempos do experimentalismo monetário, o País virou a página à barbárie populista, voltada para o aceno às massas. Como o estrangeiro desta narrativa é um anglo-saxão de cultura racional começa, no entanto, a desconfiar de que, por aqui, a seriedade tem um quê de deboche. Ele se pergunta por que o presidente da República passa todos os dias da semana em palanque perorando sobre um filho de nome pomposo - Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - e apresentando ao povo a mãe do rebento e candidata in pectore à Presidência da República, ministra Dilma Rousseff. Surpreende-se quando descobre que a campanha presidencial será apenas em 2010. Fica mais embasbacado quando constata que, de R$ 17,2 bilhões já autorizados para se gastarem no PAC este ano, apenas R$ 1,9 bilhão foi empenhado e, deste, apenas R$ 13,7 milhões pagos. Se o Brasil escapou do populismo (será?), raciocina o visitante, parece não ter saído da barbárie gerencial.
Pergunta a um interlocutor o que significa a frase presidencial gritada num púlpito do Piauí: “Ninguém segura este país.” É dito a ele que se trata de um bordão muito conhecido nos tempos da ditadura militar. E no instante em que o “como assim?” engasga na garganta do estrangeiro, a ele se explica que a frase pertence ao vocabulário ufanista, em que abundam paradoxos e superlativos. Não deveria ser levada a sério. Até porque o atual governo sabe que há máquinas obsoletas que seguram o País, impedindo mudanças. Os portos oferecem estrutura defasada. A malha viária é um quebra-molas da logística. A navegação aérea retrocedeu. O sistema ferroviário não evoluiu. O saneamento básico racha a cara da cidadania. A burocracia enfeita o paternalismo com florestas de papel e tinta. A carga tributária apunhala setores produtivos. O cipoal normativo sufoca o empreendedorismo. A segurança jurídica é frouxa. As agências reguladoras continuam à procura de uma biruta. E o assistencialismo em forma bruta detém o avanço. Enfim, cai a ficha do nosso visitante.
Nesse ponto, as bandas do quase nada e do quase tudo se juntam. O Brasil, conclui ele, é um país que patina na relatividade. O cabo-de-guerra puxado pelas alas dá empate. Os mutirões éticos são louváveis. Mas a pirotecnia é pérfida. Usar métodos científicos para investigar o assassinato de uma garotinha é avanço. Mas botar a boca no trombone diante de câmeras, holofotes, microfones, antes de exame da Justiça, é execrável. Na era do Estado espetáculo, até o denuncismo cai em desgraça. Que o diga o jogador Ronaldo, que conseguiu o “fenômeno” de transformar acusadores em réus.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
[O Estado de São Paulo, 11/05/2008]
17:06
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by Prof. Almir Ribeiro
Georgina Higueras
"Ainda ouço com nitidez os gritos dos soldados que irromperam em minha casa naquela manhã. 'Tudi maus, tudi maus!' Não sei o que isso queria dizer. Nem sei se era inglês ou uma imitação de vietnamita, mas era o que gritavam enquanto apontavam para nós e faziam sinais para sairmos. 'Tudi maus, tudi maus!' Minha mãe me disse para fugir e me esconder. Minhas irmãs corriam atrás de mim seguidas pela minha mãe com meus dois irmãos pequenos; o menor, tinha dois anos. Quando íamos entrar no abrigo, nos metralharam. Seus corpos caíram sobre mim.
Estava aterrorizado e ferido. Não sabia se os corpos que se empilhavam sobre minhas costas estavam vivos ou mortos. Eu estava vivo e consciente. Não sei quanto tempo me mantive imóvel e calado. Desmaiei e acordei à tarde, quando os habitantes de outro povoado chegaram para ver o que havia acontecido e começaram a recolher os cadáveres."
Cong Pham Thanh tinha então onze anos, e ainda hoje vive entre os fantasmas dessa manhã aterrorizante de 16 de março de 1968. Ele é diretor do museu que foi construído no local da tragédia para que "ninguém volte a repetir uma barbárie semelhante". Ele diz que, todavia, os fantasmas só atormentam seus sonhos quando ele fala sobre o que aconteceu, quando se lembra e escuta eles gritarem 'tudi maus, tudi maus!' Então, na quietude da noite, aqueles três soldados - dois negros e um branco -retornam com seus vozeirões e o despertam.
No Ocidente o episódio é conhecido como o massacre de My Lai, e no Vietnã, como Son My, o nome do povoado a que pertenciam as quatro aldeias, entre elas My Lai, que serviram de cenário para a orgia matinal de sangue, vingança, ódio e violência celebrada pelos homens da Companhia Charlie, 1º Batalhão da 20ª Divisão de Infantaria dos Estados Unidos, dirigida pelo capitão Ernest Medina. O tenente no comando da divisão que esteve mais envolvida na matança era William Calley. No total, 504 pessoas (segundo os vietnamitas), em sua grande maioria idosos, mulheres e crianças (cerca de 170), foram assassinadas a sangue frio em apenas quatro horas. Ron Haeberle, fotógrafo militar que acompanhava o pelotão, encarregou-se de imortalizar o horror.
Sobreviveram apenas umas vinte pessoas. As casas foram incendiadas, e as quatro aldeias, reduzidas a cinzas. Quando acabou a guerra, em 1975, alguns voltaram para recomeçar a vida na terra de seus ancestrais, situada a 13 quilômetros de Quang Ngai, capital da província de mesmo nome, no centro do país do sudeste asiático. Seis deles permanecem na comunidade rebatizada pela República Socialista do Vietnã como Tinh Khe.
Casado e com três filhos, Cong Pham diz que não sente mais raiva, apesar de ainda se perguntar: que dispositivo imoral e inumano acionou os soldados para agirem de forma tão selvagem contra crianças, bebês, mulheres e idosos? Os camponeses que o tiraram debaixo dos corpos de seus familiares o levaram a uma pequena clínica próxima e cuidaram dele durante os mais de três meses que suas feridas levaram para sarar. A raiva o consumia por dentro. "Eu queria matar os invasores porque eles tinham vindo me matar."
Aos 15 anos ele já havia se juntado aos Vietcongs, como os norte-americanos chamavam a guerrilha comunista com base no sul do país. O inimigo voltou a feri-lo em 1974. Seu pai, que na manhã da matança não estava em casa, enterrou a mulher e os filhos e o localizou somente semanas depois, quando ele já havia se juntado ao exército de libertação. "Os americanos mataram meu pai dois anos depois", disse, engolindo a amargura da solidão em que a guerra o lançou.
Obcecado com a expansão do comunismo na Ásia, e depois que a guerra da Coréia (1950-1953) terminou num empate, os Estados Unidos foram deslizando para o vespeiro do Vietnã até enredarem-se em sua mais vergonhosa aventura militar. Começaram no início dos anos 50 com o envio de militares e armas para apoiar as tropas francesas que lutavam para manter a colônia. Paris se retirou depois da derrota de Dien Bien Phu em 1954, e Washington foi ocupando o vazio de poder deixado pelos franceses, até que em 1965 aconteceu o primeiro desembarque de tropas de combate nas praias de Danang.
My Lai fica a cerca de 140 quilômetros ao sul dessa idílica praia de areias finas como o talco. Se em 1963, os Estados Unidos tinham 23 mil militares no Vietnã, três anos depois o número do efetivo havia crescido para 184 mil, e em 1968, no ano do massacre, tinham mais de meio milhão de soldados no país, que tem uma área parecida com a da Itália (326.797 quilômetros quadrados).
A única sobrevivente que voltou e reconstruiu sua antiga casa foi Ha Thi Quy, que hoje tem 83 anos. Apesar do trauma sofrido, as rugas profundas que sulcam seu rosto não conseguiram apagar um certo ar de inocência. Ela preparava o café da manhã quando sentiu os helicópteros se aproximarem. O marido e o filho mais velho fugiram imediatamente, mas foram vistos e feridos por balas vindas do alto. "Eram muitos soldados, aproximaram-se da casa atirando nas galinhas e os patos. Matavam tudo o que viam. Sentimos um medo atroz. Eles nunca haviam se comportado assim. Vinham com freqüência para o povoado. Pediam água do poço e nos davam comida em troca. Não tínhamos medo deles, mas naquela manhã eles eram outros. Na casa, estávamos minha mãe, minha filha de 16 anos, meu filho de seis e eu, que estava grávida. Apontaram suas armas para nós e pediram que saíssemos e fôssemos até o açude. A uma vizinha bem mais velha, que não conseguia se mover de tanto medo, mataram ali mesmo. Havia muita gente no açude. Empurraram-nos para dentro dele a coronhadas. Juntávamos as mãos e implorávamos para que não nos matassem, mas eles começaram a disparar", contou, com a voz trêmula e gesticulando com as mãos.
Ha Thi sentiu como se as balas lhe mordessem nas costas e na perna, viu como elas arrancaram metade do rosto de sua filha, e então desmaiou. "O frio me devolveu a consciência", relata. "Meu filho pequeno jazia a meu lado. Vi umas crianças procurando suas mães e pedi que elas me ajudassem a sair daquela confusão de cadáveres. Não conseguia andar. Arrastei-me para chegar à minha casa e beber água porque estava com uma sede terrível. No caminho encontrei os corpos nus de muitas jovens. Eles as haviam violado e assassinado. Eu tinha a intenção de cobri-las quando eles chegaram com o helicóptero e aterrisaram".
Depois de safar-se da morte nessa indescritível carnificina, Ha Thi pensou que eles vinham novamente para matá-la. Tratou de arrastar-se o mais rápido que pôde e de se esconder, mas dois soldados a carregaram, em vôo, por debaixo dos braços, colocaram-na no helicóptero e levaram-na a um hospital. O médico retirou várias balas de sua perna, mas, para tirar a que estava nas costas, precisava operá-la, o que não fez para não prejudicar sua gravidez. A bala continua incrustada em seu corpo. Ela não se importa, porque seu filho nasceu meses depois sem problemas.
Ela deu a luz no acampamento de Tra Khuc, um dos inumeráveis campos onde o exército norte-americano mantinha escondidos os camponeses das áreas consideradas zonas de fogo, que eram alvo militar dos bombardeios norte-americanos e sobre as quais eles disparavam contra tudo o que se movia, porque estavam supostamente "infectadas" com vietcongs. Os helicópteros lançavam panfletos em que advertiam os habitantes para abandonarem suas terras se não quisessem ser bombardeados. A maioria obedecia. Cidades e aldeias ficaram vazias e milhões de sul-vietnamitas foram forçados a se instalar em acampamentos, nos quais viveram até o fim da guerra.
Quarenta anos depois de My Lai, Ha Thi atravessa um doce momento em sua vida. Há alguns anos, um compatriota do sul lhe deu o dinheiro para construir uma casa nova e maior. A antiga - um cômodo pequeno separado por um pátio da nova - agora faz as vezes de depósito de grãos. Ao lado deste, o filho menor construiu uma casa minúscula, e, em conseqüência, a casa de Ha Thi está sempre cheia de netos e até de bisnetos, já que o filho mais velho vive lá perto com a família. Além disso, há dois anos ela arrendou o terreno de 750 metros quadrados que o governo comunista lhe deu em 1977 para cultivar arroz. "Na colheita passada [são duas por ano] fiquei com dez sacas. É muito para nós [ela vive com um neto de 15 anos desde que ele tinha 16 meses]. Vou vender uma parte agora porque o preço está muito alto", disse com um sorriso satisfeito.
As fotos de Haeberle cobrem as paredes do museu de My Lai. Ao sair do exército, 14 meses depois, o fotógrafo vendeu as 18 imagens do horror para a revista Life por 25 mil dólares. Sua publicação em novembro de 1969 teve um efeito devastador para a imagem dos Estados Unidos tanto dentro quanto fora do país. O governo norte-vietnamita pagou 11 mil dólares à Life por onze fotos em 1971, conforme explica a guia do museu, Tran Thi Thanh Huong.
Até então, a matança havia sido encoberta pelo Pentágono, cujas autoridades relataram, no informe oficial, que haviam ocorrido combates na área que resultaram na morte de "128 membros do Vietcong". Ninguém levou em consideração a denúncia apresentada por Hugh Thompson, piloto do helicóptero de reconhecimento que viu como o capitão Medina chutou e matou uma jovem vietnamita ferida, estendida no chão.
Thompson aterrissou seu helicóptero OH23 e enfrentou seus companheiros que ainda estavam em My Lai, evitando que eles continuassem a matança. O piloto e dois atiradores que o acompanhavam recolheram e levaram ao hospital do exército nove vietnamitas feridos, incluindo cinco crianças. Para isso tiveram de realizar várias viagens.
No magnífico livro "A Guerra do Vietnã", Christian G. Appy recolheu, entre muitas vozes de testemunhas, a de Larry Colbrun, um dos atiradores: "sobrevoamos uma vala em que haviam sido mortos mais de cem vietnamitas. [Glenn] Andreotta [o outro atirador, morto em combate uma semana depois] percebeu movimentos, então Thompson aterrissou novamente. Andreotta foi diretamente até a vala. Teve que caminhar entre cadáveres que chegavam à altura de sua cintura para resgatar um menino pequeno. Eu fiquei de pé, em campo aberto. Glenn se aproximou e me entregou o menino, mas a vala estava tão cheia de cadáveres e de sangue que ele não conseguia sair. Estendi o meu rifle para ele e o ajudei a sair".
Pham Thi Thuan, que então tinha 30 anos, também não conseguia sair do açude. Levava em seus braços sua filha de três anos - "quase asfixiada pelo peito que eu havia colocado em sua boca para que ela se calasse". Nenhuma das duas estava ferida. Os corpos de seus vizinhos as haviam salvado. Pham Thi, cujo marido havia morrido dois anos antes em um ataque das tropas invasoras, recorda o caos e a gritaria que tomou conta da aldeia quando os helicópteros começaram a jogar potes de fumo e disparar. Pegou sua filha e se escondeu num buraco que havia escavado em sua cabana como esconderijo. Mas isso de pouco lhe serviu. Teve que obedecer as ordens para ir até o açude.
"Depois de jogar a todos nós lá dentro com coronhadas, houve uma primeira rajada de disparos. Quando as metralhadoras calaram, algumas pessoas se levantaram. Vi meu pai. Quis dizer para que ele ficasse deitado, para que não se movesse, mas tive medo e me calei. Vi ele cair na segunda rajada, e depois disso ainda teve uma terceira. Continuei ali dobrada, apertando minha filha, que temia estivesse afogada. Depois de algum tempo, quando não se ouvia mais nada, fui afastando os corpos para poder sair. Duas mulheres que também saíram da vala foram vistas por soldados que ainda estavam por lá. Eles as perseguiram e as mataram. Não vieram atrás de nós duas."
O exército norte-americano pensava que My Lai era a base de abastecimento do 48º Batalhão do Vietcong. No ano anterior haviam sofrido grandes baixas nos combates nessa região, e dois dias antes uma bomba havia matado um sargento e deixado um soldado cego. Na tarde de 15 de março, quando o capitão Medina reuniu as tropas que iam participar da operação de "aniquilação" de My Lai, primeiro fez um minuto de silêncio pelo companheiro morto.
Vingança, medo, inexperiência e a exigência por parte do comando militar de contar o número de inimigos mortos para valorizar as vitórias talvez tenham se somado à selvageria e humor negro reinante na Companhia Charlie, cujo tenente Calley havia sido visto naquela manhã em My Lai com as calças arriadas e apontando uma arma para a cabeça de uma jovem que tinha os joelhos à sua frente.
Os soldados entenderam que tinham ordens para ficarem calados, já que oficiais como o coronel Oran Henderson haviam sobrevoado a zona a baixa altitude e visto dos helicópteros os cadáveres dos civis. Pediram a Henderson nessa mesma tarde para investigar o que havia acontecido e ele se limitou a perguntar aos soldados se eles haviam participado de alguma matança indiscriminada. "Não, senhor", respondeu a maioria. Algum se atreveu a responder um "sem comentários". Dias depois, Henderson informou por escrito que uma centena de civis haviam sido mortos de forma "inadvertida".
O odor putrefato que se desprendia de My Lai chamou a atenção de um dos quase 500 jornalistas que reportavam ao mundo in loco sobre a guerra do Vietnã. Seymour Hersh, que trabalhava por conta própria, entrevistou vários soldados que chegaram a acusar o tenente Calley do assassinato de 109 civis. Hersh também entrevistou Calley e escreveu três artigos sobre My Lai que enviou à grande imprensa. Nenhum veículo se interessou.
Finalmente conseguiu vender os artigos à Dispatch, uma pequena agência que tinha 36 jornais como clientes. Em 13 de novembro, todos eles publicaram o primeiro artigo. O escândalo estava servido. Antes do final do mês as outras matérias e uma nova reportagem haviam sido publicadas. Além disso, a revista Life publicou as fotos de Haeberle.
Truong Thi Le, de 80 anos, ainda lamenta ter recomendado à sua filha de 17 anos que se escondesse entre os idosos reunidos próximo da torre de vigilância das quatro aldeias.
"Tive medo que quisessem estuprá-la. Pensei que estaria mais segura se passasse despercebida. Estávamos aterrorizados. Havíamos visto um soldado colocar um velho na boca do poço de minha casa e atirar nele para que caísse lá dentro. Nos escondemos debaixo da cozinha, mas os americanos nos viram e disseram para irmos à torre de vigilância. Eu agarrava meu filho de cinco anos. Quando se descuidaram, nos escondemos debaixo da palha de arroz, que estava amontoada lá perto porque havíamos acabado de fazer a colheita. Minha filha, entretanto, ficou entre o grupo, que foi todo morto por uma arma com um cano muito largo."
A estrutura da antiga casa de Truong Thi, que havia ficado viúva dois anos antes, foi reconstruída e faz parte, juntamente com o açude e os alicerces de outras dezenas de casas, do parque memorial que se juntou ao museu nos últimos anos. Muitos de seus atuais visitantes são norte-americanos. "Estou orgulhoso de representar os mortos", diz o diretor, que confessa que não gosta de ver os veteranos do exército inimigo.
Depois de 2.590.000 soldados dos EUA terem passado pelo Vietnã, o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, em 1999, levou muitos veteranos a visitarem em estado de paz o que eles viveram na guerra. Entre eles está o atual candidato republicano à presidência, John McCain, que voltou em 2000 para visitar a prisão de Hoa Lo. Nesse antigo cárcere construído pelos franceses ao final do século 19, e no qual foram presos muitos nacionalistas, estiveram encarcerados os 591 americanos capturados na guerra. A maioria era de pilotos, como McCain. A prisão, situada no centro de Hanoi, agora é um museu. Entre as fotos expostas, uma mostra o resgate de McCain por civis e soldados. Ele havia caído no lago Truc Bach, em 26 de outubro de 1967. Outra foto, colorida, mostra sua visita recente.
O primeiro trimestre de 1968 foi muito difícil para os Estados Unidos. Tão difícil que levou ao ponto de inversão da guerra. Para Washington, foram meses muito penosos. Primeiro, por causa do grande número de baixas; segundo, porque perdeu o apoio massivo de seus cidadãos à guerra, e terceiro, porque William Westmoreland, comandante em exercício das tropas americanas no Vietnã, disse em novembro de 1967, que o princípio do fim da guerra estava próximo. Não sabia que o inimigo havia começado a preparar a ofensiva Tet.
Em 31 de janeiro de 1968, durante a celebração do Tet - o ano novo lunar -, uma nova operação conjunta do exército norte-vietnamita e da Frente Nacional de Libertação (o Vietcong) atacou de surpresa mais de uma centena de cidades por todo o Vietnã do Sul. Foi uma ação perfeitamente sincronizada da qual participaram cerca de 80 mil homens. A ousadia dos atacantes foi tanta que penetraram no centro nevrálgico do inimigo: a embaixada dos Estados Unidos em Saigon. Sua fúria forçou combates corpo a corpo para defender o território conquistado, como na cidade de Hue, o que ocasionou numerosas baixas. Houve mais de 2 mil mortos entre os americanos e 4 mil do Exército do Sul, e os comunistas perderam quase 50 mil homens.
Hanói, contudo, não conseguiu o levante geral da população que esperava que sua ofensiva desencadeasse, e em poucos dias seus guerrilheiros foram expulsos novamente para a selva. A contra-ofensiva norte-americana desatou bombardeios massivos. Militarmente, o Tet foi uma batalha perdida pelos norte-vietnamitas, ainda que sua conseqüência final tenha sido a vitória da guerra por Hanói. A opinião pública norte-americana se opôs radicalmente à guerra mais cruel que haviam visto contra a população civil. Westmoreland não conseguiu os 200 mil soldados a mais que havia pedido para acabar a guerra e foi transferido para Washington. O presidente Lyndon Johnson não se candidatou à reeleição. Em maio, tiveram início as negociações de paz e o senador Robert Kennedy tornou-se o grande favorito para a candidatura democrata à presidência, com uma campanha contra a guerra, mas foi assassinado em 5 de junho de 1968 no hotel Ambassador de Los Angeles quando pronunciava o discurso de celebração de sua vitória nas cruciais primárias da Califórnia.
Enquanto isso, o segredo de My Lai atormentava tanto o soldado Ronald Ridenhour, que em março de 1969 ele escreveu uma carta ao presidente Richard Nixon, ao chefe do Pentágono, ao secretário de Estado, aos chefes do Estado Maior e a numerosos congressistas, em que delatou os acontecimentos. Apesar de não revelar o fato ao público, o Congresso iniciou uma investigação.
Pham Dat, de 80 anos, recorda que os helicópteros levaram o telhado de sua casa. A memória lhe falha às vezes, mas pouco a pouco dá alguma coesão ao relato de sua história. "Os soldados, que haviam matado minhas quatro vacas, entraram em casa disparando. Em um instante assassinaram os 11 membros de minha família: minha mulher e meu filho de sete meses que estava em seus braços, minha mãe, minha irmã, cunhadas e sobrinhos. Atiraram em meus pés. Meu filho de quatro anos e minhas duas filhas de sete e nove ficaram feridos nas pernas".
Quando os soldados se foram, Pham se escondeu com as três crianças atrás da porta e se cobriram com uma esteira. Depois entraram numa espécie de esconderijo subterrâneo que havia fora da casa. Pham diz que "pouco depois os soldados voltaram e usaram a palha de arroz para atear fogo em tudo".
A investigação do extermínio de My Lai promovida pelo Congresso teve como única conseqüência a detenção do tenente Calley, que foi acusado do assassinato premeditado de pelo menos 22 civis. O tribunal o condenou à prisão perpétua, mas logo sua pena foi reduzida, e por fim ele só cumpriu prisão domiciliar por três anos e meio.
Tradução: Eloise De Vylder
[El Pais, 09/05/2008]
"Ainda ouço com nitidez os gritos dos soldados que irromperam em minha casa naquela manhã. 'Tudi maus, tudi maus!' Não sei o que isso queria dizer. Nem sei se era inglês ou uma imitação de vietnamita, mas era o que gritavam enquanto apontavam para nós e faziam sinais para sairmos. 'Tudi maus, tudi maus!' Minha mãe me disse para fugir e me esconder. Minhas irmãs corriam atrás de mim seguidas pela minha mãe com meus dois irmãos pequenos; o menor, tinha dois anos. Quando íamos entrar no abrigo, nos metralharam. Seus corpos caíram sobre mim.
Estava aterrorizado e ferido. Não sabia se os corpos que se empilhavam sobre minhas costas estavam vivos ou mortos. Eu estava vivo e consciente. Não sei quanto tempo me mantive imóvel e calado. Desmaiei e acordei à tarde, quando os habitantes de outro povoado chegaram para ver o que havia acontecido e começaram a recolher os cadáveres."
Cong Pham Thanh tinha então onze anos, e ainda hoje vive entre os fantasmas dessa manhã aterrorizante de 16 de março de 1968. Ele é diretor do museu que foi construído no local da tragédia para que "ninguém volte a repetir uma barbárie semelhante". Ele diz que, todavia, os fantasmas só atormentam seus sonhos quando ele fala sobre o que aconteceu, quando se lembra e escuta eles gritarem 'tudi maus, tudi maus!' Então, na quietude da noite, aqueles três soldados - dois negros e um branco -retornam com seus vozeirões e o despertam.
No Ocidente o episódio é conhecido como o massacre de My Lai, e no Vietnã, como Son My, o nome do povoado a que pertenciam as quatro aldeias, entre elas My Lai, que serviram de cenário para a orgia matinal de sangue, vingança, ódio e violência celebrada pelos homens da Companhia Charlie, 1º Batalhão da 20ª Divisão de Infantaria dos Estados Unidos, dirigida pelo capitão Ernest Medina. O tenente no comando da divisão que esteve mais envolvida na matança era William Calley. No total, 504 pessoas (segundo os vietnamitas), em sua grande maioria idosos, mulheres e crianças (cerca de 170), foram assassinadas a sangue frio em apenas quatro horas. Ron Haeberle, fotógrafo militar que acompanhava o pelotão, encarregou-se de imortalizar o horror.
Sobreviveram apenas umas vinte pessoas. As casas foram incendiadas, e as quatro aldeias, reduzidas a cinzas. Quando acabou a guerra, em 1975, alguns voltaram para recomeçar a vida na terra de seus ancestrais, situada a 13 quilômetros de Quang Ngai, capital da província de mesmo nome, no centro do país do sudeste asiático. Seis deles permanecem na comunidade rebatizada pela República Socialista do Vietnã como Tinh Khe.
Casado e com três filhos, Cong Pham diz que não sente mais raiva, apesar de ainda se perguntar: que dispositivo imoral e inumano acionou os soldados para agirem de forma tão selvagem contra crianças, bebês, mulheres e idosos? Os camponeses que o tiraram debaixo dos corpos de seus familiares o levaram a uma pequena clínica próxima e cuidaram dele durante os mais de três meses que suas feridas levaram para sarar. A raiva o consumia por dentro. "Eu queria matar os invasores porque eles tinham vindo me matar."
Aos 15 anos ele já havia se juntado aos Vietcongs, como os norte-americanos chamavam a guerrilha comunista com base no sul do país. O inimigo voltou a feri-lo em 1974. Seu pai, que na manhã da matança não estava em casa, enterrou a mulher e os filhos e o localizou somente semanas depois, quando ele já havia se juntado ao exército de libertação. "Os americanos mataram meu pai dois anos depois", disse, engolindo a amargura da solidão em que a guerra o lançou.
Obcecado com a expansão do comunismo na Ásia, e depois que a guerra da Coréia (1950-1953) terminou num empate, os Estados Unidos foram deslizando para o vespeiro do Vietnã até enredarem-se em sua mais vergonhosa aventura militar. Começaram no início dos anos 50 com o envio de militares e armas para apoiar as tropas francesas que lutavam para manter a colônia. Paris se retirou depois da derrota de Dien Bien Phu em 1954, e Washington foi ocupando o vazio de poder deixado pelos franceses, até que em 1965 aconteceu o primeiro desembarque de tropas de combate nas praias de Danang.
My Lai fica a cerca de 140 quilômetros ao sul dessa idílica praia de areias finas como o talco. Se em 1963, os Estados Unidos tinham 23 mil militares no Vietnã, três anos depois o número do efetivo havia crescido para 184 mil, e em 1968, no ano do massacre, tinham mais de meio milhão de soldados no país, que tem uma área parecida com a da Itália (326.797 quilômetros quadrados).
A única sobrevivente que voltou e reconstruiu sua antiga casa foi Ha Thi Quy, que hoje tem 83 anos. Apesar do trauma sofrido, as rugas profundas que sulcam seu rosto não conseguiram apagar um certo ar de inocência. Ela preparava o café da manhã quando sentiu os helicópteros se aproximarem. O marido e o filho mais velho fugiram imediatamente, mas foram vistos e feridos por balas vindas do alto. "Eram muitos soldados, aproximaram-se da casa atirando nas galinhas e os patos. Matavam tudo o que viam. Sentimos um medo atroz. Eles nunca haviam se comportado assim. Vinham com freqüência para o povoado. Pediam água do poço e nos davam comida em troca. Não tínhamos medo deles, mas naquela manhã eles eram outros. Na casa, estávamos minha mãe, minha filha de 16 anos, meu filho de seis e eu, que estava grávida. Apontaram suas armas para nós e pediram que saíssemos e fôssemos até o açude. A uma vizinha bem mais velha, que não conseguia se mover de tanto medo, mataram ali mesmo. Havia muita gente no açude. Empurraram-nos para dentro dele a coronhadas. Juntávamos as mãos e implorávamos para que não nos matassem, mas eles começaram a disparar", contou, com a voz trêmula e gesticulando com as mãos.
Ha Thi sentiu como se as balas lhe mordessem nas costas e na perna, viu como elas arrancaram metade do rosto de sua filha, e então desmaiou. "O frio me devolveu a consciência", relata. "Meu filho pequeno jazia a meu lado. Vi umas crianças procurando suas mães e pedi que elas me ajudassem a sair daquela confusão de cadáveres. Não conseguia andar. Arrastei-me para chegar à minha casa e beber água porque estava com uma sede terrível. No caminho encontrei os corpos nus de muitas jovens. Eles as haviam violado e assassinado. Eu tinha a intenção de cobri-las quando eles chegaram com o helicóptero e aterrisaram".
Depois de safar-se da morte nessa indescritível carnificina, Ha Thi pensou que eles vinham novamente para matá-la. Tratou de arrastar-se o mais rápido que pôde e de se esconder, mas dois soldados a carregaram, em vôo, por debaixo dos braços, colocaram-na no helicóptero e levaram-na a um hospital. O médico retirou várias balas de sua perna, mas, para tirar a que estava nas costas, precisava operá-la, o que não fez para não prejudicar sua gravidez. A bala continua incrustada em seu corpo. Ela não se importa, porque seu filho nasceu meses depois sem problemas.
Ela deu a luz no acampamento de Tra Khuc, um dos inumeráveis campos onde o exército norte-americano mantinha escondidos os camponeses das áreas consideradas zonas de fogo, que eram alvo militar dos bombardeios norte-americanos e sobre as quais eles disparavam contra tudo o que se movia, porque estavam supostamente "infectadas" com vietcongs. Os helicópteros lançavam panfletos em que advertiam os habitantes para abandonarem suas terras se não quisessem ser bombardeados. A maioria obedecia. Cidades e aldeias ficaram vazias e milhões de sul-vietnamitas foram forçados a se instalar em acampamentos, nos quais viveram até o fim da guerra.
Quarenta anos depois de My Lai, Ha Thi atravessa um doce momento em sua vida. Há alguns anos, um compatriota do sul lhe deu o dinheiro para construir uma casa nova e maior. A antiga - um cômodo pequeno separado por um pátio da nova - agora faz as vezes de depósito de grãos. Ao lado deste, o filho menor construiu uma casa minúscula, e, em conseqüência, a casa de Ha Thi está sempre cheia de netos e até de bisnetos, já que o filho mais velho vive lá perto com a família. Além disso, há dois anos ela arrendou o terreno de 750 metros quadrados que o governo comunista lhe deu em 1977 para cultivar arroz. "Na colheita passada [são duas por ano] fiquei com dez sacas. É muito para nós [ela vive com um neto de 15 anos desde que ele tinha 16 meses]. Vou vender uma parte agora porque o preço está muito alto", disse com um sorriso satisfeito.
As fotos de Haeberle cobrem as paredes do museu de My Lai. Ao sair do exército, 14 meses depois, o fotógrafo vendeu as 18 imagens do horror para a revista Life por 25 mil dólares. Sua publicação em novembro de 1969 teve um efeito devastador para a imagem dos Estados Unidos tanto dentro quanto fora do país. O governo norte-vietnamita pagou 11 mil dólares à Life por onze fotos em 1971, conforme explica a guia do museu, Tran Thi Thanh Huong.
Até então, a matança havia sido encoberta pelo Pentágono, cujas autoridades relataram, no informe oficial, que haviam ocorrido combates na área que resultaram na morte de "128 membros do Vietcong". Ninguém levou em consideração a denúncia apresentada por Hugh Thompson, piloto do helicóptero de reconhecimento que viu como o capitão Medina chutou e matou uma jovem vietnamita ferida, estendida no chão.
Thompson aterrissou seu helicóptero OH23 e enfrentou seus companheiros que ainda estavam em My Lai, evitando que eles continuassem a matança. O piloto e dois atiradores que o acompanhavam recolheram e levaram ao hospital do exército nove vietnamitas feridos, incluindo cinco crianças. Para isso tiveram de realizar várias viagens.
No magnífico livro "A Guerra do Vietnã", Christian G. Appy recolheu, entre muitas vozes de testemunhas, a de Larry Colbrun, um dos atiradores: "sobrevoamos uma vala em que haviam sido mortos mais de cem vietnamitas. [Glenn] Andreotta [o outro atirador, morto em combate uma semana depois] percebeu movimentos, então Thompson aterrissou novamente. Andreotta foi diretamente até a vala. Teve que caminhar entre cadáveres que chegavam à altura de sua cintura para resgatar um menino pequeno. Eu fiquei de pé, em campo aberto. Glenn se aproximou e me entregou o menino, mas a vala estava tão cheia de cadáveres e de sangue que ele não conseguia sair. Estendi o meu rifle para ele e o ajudei a sair".
Pham Thi Thuan, que então tinha 30 anos, também não conseguia sair do açude. Levava em seus braços sua filha de três anos - "quase asfixiada pelo peito que eu havia colocado em sua boca para que ela se calasse". Nenhuma das duas estava ferida. Os corpos de seus vizinhos as haviam salvado. Pham Thi, cujo marido havia morrido dois anos antes em um ataque das tropas invasoras, recorda o caos e a gritaria que tomou conta da aldeia quando os helicópteros começaram a jogar potes de fumo e disparar. Pegou sua filha e se escondeu num buraco que havia escavado em sua cabana como esconderijo. Mas isso de pouco lhe serviu. Teve que obedecer as ordens para ir até o açude.
"Depois de jogar a todos nós lá dentro com coronhadas, houve uma primeira rajada de disparos. Quando as metralhadoras calaram, algumas pessoas se levantaram. Vi meu pai. Quis dizer para que ele ficasse deitado, para que não se movesse, mas tive medo e me calei. Vi ele cair na segunda rajada, e depois disso ainda teve uma terceira. Continuei ali dobrada, apertando minha filha, que temia estivesse afogada. Depois de algum tempo, quando não se ouvia mais nada, fui afastando os corpos para poder sair. Duas mulheres que também saíram da vala foram vistas por soldados que ainda estavam por lá. Eles as perseguiram e as mataram. Não vieram atrás de nós duas."
O exército norte-americano pensava que My Lai era a base de abastecimento do 48º Batalhão do Vietcong. No ano anterior haviam sofrido grandes baixas nos combates nessa região, e dois dias antes uma bomba havia matado um sargento e deixado um soldado cego. Na tarde de 15 de março, quando o capitão Medina reuniu as tropas que iam participar da operação de "aniquilação" de My Lai, primeiro fez um minuto de silêncio pelo companheiro morto.
Vingança, medo, inexperiência e a exigência por parte do comando militar de contar o número de inimigos mortos para valorizar as vitórias talvez tenham se somado à selvageria e humor negro reinante na Companhia Charlie, cujo tenente Calley havia sido visto naquela manhã em My Lai com as calças arriadas e apontando uma arma para a cabeça de uma jovem que tinha os joelhos à sua frente.
Os soldados entenderam que tinham ordens para ficarem calados, já que oficiais como o coronel Oran Henderson haviam sobrevoado a zona a baixa altitude e visto dos helicópteros os cadáveres dos civis. Pediram a Henderson nessa mesma tarde para investigar o que havia acontecido e ele se limitou a perguntar aos soldados se eles haviam participado de alguma matança indiscriminada. "Não, senhor", respondeu a maioria. Algum se atreveu a responder um "sem comentários". Dias depois, Henderson informou por escrito que uma centena de civis haviam sido mortos de forma "inadvertida".
O odor putrefato que se desprendia de My Lai chamou a atenção de um dos quase 500 jornalistas que reportavam ao mundo in loco sobre a guerra do Vietnã. Seymour Hersh, que trabalhava por conta própria, entrevistou vários soldados que chegaram a acusar o tenente Calley do assassinato de 109 civis. Hersh também entrevistou Calley e escreveu três artigos sobre My Lai que enviou à grande imprensa. Nenhum veículo se interessou.
Finalmente conseguiu vender os artigos à Dispatch, uma pequena agência que tinha 36 jornais como clientes. Em 13 de novembro, todos eles publicaram o primeiro artigo. O escândalo estava servido. Antes do final do mês as outras matérias e uma nova reportagem haviam sido publicadas. Além disso, a revista Life publicou as fotos de Haeberle.
Truong Thi Le, de 80 anos, ainda lamenta ter recomendado à sua filha de 17 anos que se escondesse entre os idosos reunidos próximo da torre de vigilância das quatro aldeias.
"Tive medo que quisessem estuprá-la. Pensei que estaria mais segura se passasse despercebida. Estávamos aterrorizados. Havíamos visto um soldado colocar um velho na boca do poço de minha casa e atirar nele para que caísse lá dentro. Nos escondemos debaixo da cozinha, mas os americanos nos viram e disseram para irmos à torre de vigilância. Eu agarrava meu filho de cinco anos. Quando se descuidaram, nos escondemos debaixo da palha de arroz, que estava amontoada lá perto porque havíamos acabado de fazer a colheita. Minha filha, entretanto, ficou entre o grupo, que foi todo morto por uma arma com um cano muito largo."
A estrutura da antiga casa de Truong Thi, que havia ficado viúva dois anos antes, foi reconstruída e faz parte, juntamente com o açude e os alicerces de outras dezenas de casas, do parque memorial que se juntou ao museu nos últimos anos. Muitos de seus atuais visitantes são norte-americanos. "Estou orgulhoso de representar os mortos", diz o diretor, que confessa que não gosta de ver os veteranos do exército inimigo.
Depois de 2.590.000 soldados dos EUA terem passado pelo Vietnã, o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, em 1999, levou muitos veteranos a visitarem em estado de paz o que eles viveram na guerra. Entre eles está o atual candidato republicano à presidência, John McCain, que voltou em 2000 para visitar a prisão de Hoa Lo. Nesse antigo cárcere construído pelos franceses ao final do século 19, e no qual foram presos muitos nacionalistas, estiveram encarcerados os 591 americanos capturados na guerra. A maioria era de pilotos, como McCain. A prisão, situada no centro de Hanoi, agora é um museu. Entre as fotos expostas, uma mostra o resgate de McCain por civis e soldados. Ele havia caído no lago Truc Bach, em 26 de outubro de 1967. Outra foto, colorida, mostra sua visita recente.
O primeiro trimestre de 1968 foi muito difícil para os Estados Unidos. Tão difícil que levou ao ponto de inversão da guerra. Para Washington, foram meses muito penosos. Primeiro, por causa do grande número de baixas; segundo, porque perdeu o apoio massivo de seus cidadãos à guerra, e terceiro, porque William Westmoreland, comandante em exercício das tropas americanas no Vietnã, disse em novembro de 1967, que o princípio do fim da guerra estava próximo. Não sabia que o inimigo havia começado a preparar a ofensiva Tet.
Em 31 de janeiro de 1968, durante a celebração do Tet - o ano novo lunar -, uma nova operação conjunta do exército norte-vietnamita e da Frente Nacional de Libertação (o Vietcong) atacou de surpresa mais de uma centena de cidades por todo o Vietnã do Sul. Foi uma ação perfeitamente sincronizada da qual participaram cerca de 80 mil homens. A ousadia dos atacantes foi tanta que penetraram no centro nevrálgico do inimigo: a embaixada dos Estados Unidos em Saigon. Sua fúria forçou combates corpo a corpo para defender o território conquistado, como na cidade de Hue, o que ocasionou numerosas baixas. Houve mais de 2 mil mortos entre os americanos e 4 mil do Exército do Sul, e os comunistas perderam quase 50 mil homens.
Hanói, contudo, não conseguiu o levante geral da população que esperava que sua ofensiva desencadeasse, e em poucos dias seus guerrilheiros foram expulsos novamente para a selva. A contra-ofensiva norte-americana desatou bombardeios massivos. Militarmente, o Tet foi uma batalha perdida pelos norte-vietnamitas, ainda que sua conseqüência final tenha sido a vitória da guerra por Hanói. A opinião pública norte-americana se opôs radicalmente à guerra mais cruel que haviam visto contra a população civil. Westmoreland não conseguiu os 200 mil soldados a mais que havia pedido para acabar a guerra e foi transferido para Washington. O presidente Lyndon Johnson não se candidatou à reeleição. Em maio, tiveram início as negociações de paz e o senador Robert Kennedy tornou-se o grande favorito para a candidatura democrata à presidência, com uma campanha contra a guerra, mas foi assassinado em 5 de junho de 1968 no hotel Ambassador de Los Angeles quando pronunciava o discurso de celebração de sua vitória nas cruciais primárias da Califórnia.
Enquanto isso, o segredo de My Lai atormentava tanto o soldado Ronald Ridenhour, que em março de 1969 ele escreveu uma carta ao presidente Richard Nixon, ao chefe do Pentágono, ao secretário de Estado, aos chefes do Estado Maior e a numerosos congressistas, em que delatou os acontecimentos. Apesar de não revelar o fato ao público, o Congresso iniciou uma investigação.
Pham Dat, de 80 anos, recorda que os helicópteros levaram o telhado de sua casa. A memória lhe falha às vezes, mas pouco a pouco dá alguma coesão ao relato de sua história. "Os soldados, que haviam matado minhas quatro vacas, entraram em casa disparando. Em um instante assassinaram os 11 membros de minha família: minha mulher e meu filho de sete meses que estava em seus braços, minha mãe, minha irmã, cunhadas e sobrinhos. Atiraram em meus pés. Meu filho de quatro anos e minhas duas filhas de sete e nove ficaram feridos nas pernas".
Quando os soldados se foram, Pham se escondeu com as três crianças atrás da porta e se cobriram com uma esteira. Depois entraram numa espécie de esconderijo subterrâneo que havia fora da casa. Pham diz que "pouco depois os soldados voltaram e usaram a palha de arroz para atear fogo em tudo".
A investigação do extermínio de My Lai promovida pelo Congresso teve como única conseqüência a detenção do tenente Calley, que foi acusado do assassinato premeditado de pelo menos 22 civis. O tribunal o condenou à prisão perpétua, mas logo sua pena foi reduzida, e por fim ele só cumpriu prisão domiciliar por três anos e meio.
Tradução: Eloise De Vylder
[El Pais, 09/05/2008]
17:02
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by Prof. Almir Ribeiro
Ethan Bronner, em Jerusalém
Quando o Estado de Israel comemorar o seu 60° aniversário nas próximas semanas, com muita alegria devido ao renascimento nacional judaico e aos valores democráticos, os árabes, que são 20% do total de cidadãos do país, não estarão celebrando. Em melhor situação, mais bem integrados e mais livres do que a vasta maioria dos outros árabes, os 1,3 milhão de árabes de cidadania israelense ainda estão em uma situação bem pior do que a dos judeus israelenses e sentem-se cada vez mais indesejados.
Na próxima quinta-feira, que é o Dia da Independência, milhares de árabes irão se concentrar nas aldeias em que antigamente moravam para protestar contra aquilo que chamam de "nakba", ou catástrofe, termo que usam para referirem-se à criação de Israel. Para a maioria dos israelenses a identidade judaica é uma questão fundamental para a nação, a razão pela qual eles se orgulham de viver aqui e o vínculo com a História. Mas os árabes israelenses, incluindo aqueles que se integraram com mais sucesso, afirmam que uma nova identidade precisa ser encontrada para garantir a sobrevivência do país no longo prazo.
"Eu não sou judeu", protesta Eman Kassem-Sliman, um radiojornalista árabe que fala um hebraico impecável, e cujos filhos estudam em uma escola predominantemente judaica em Jerusalém. "Como posso pertencer a um Estado judeu? Se eles definirem isto como um Estado judeu, estarão negando a minha presença aqui".
O choque entre a estimada herança cultural da maioria e as esperanças da minoria é mais do que um atrito. E hoje em dia, até mais do que durante as grandes comemorações de meio século de criação do Estado judeu, uma década atrás, a esquerda e a direita enxergam cada vez mais os árabes israelenses como um dos desafios centrais para o futuro de Israel - um obstáculo intransponível para um acordo amplo entre judeus e árabes. O que os judeus mais temem é perder a batalha demográfica para os árabes, tanto dentro de Israel como no maior território controlado pela nação.
Muitos dizem que da mesma forma que um fim da identidade judaica do país significaria um fim do Estado, um fracasso da tarefa de instilar nos cidadãos árabes uma sensação de que pertencem a Israel seria perigoso, já que os árabes promovem a idéia de que, com 60 anos ou não, Israel é um fenômeno passageiro.
"Quero convencer o povo judeu de que ter um Estado judeu é algo de ruim para eles", afirma Abir Kopty, que defende os direitos dos árabes israelenses.
A questão da terra é especialmente delicada. Por todo o Estado de Israel, e especialmente no norte, há ruínas de dezenas de vilas palestinas desabitadas, cicatrizes na paisagem resultantes do conflito que deu a luz ao país em 1948.
Mas alguns habitantes originais e os seus descendentes, todos árabes israelenses, moram em vilas e aldeias super populosas, muitas vezes perto das suas antigas aldeias, e estão proibidos de reocupá-las enquanto as comunidades judaicas em torno deles são estimuladas a se expandir.
Em uma tarde morna recente, Jamal Abdulhadi Mahameed dirigiu por uma estrada de terra que corta campos de trigo e melancias em um kibbutz, ladeada de pinheiros e cactus. Ele galgou as ruínas de uma escada e declarou ao vento: "Esta é a minha casa. Foi aqui que eu nasci".
Ele diz que o que mais deseja hoje em dia, aos 69 anos de idade, é sair da cidade lotada ao lado, voltar ao seu terreno abandonado, no qual restaram romãzeiras plantadas pelo seu pai, e cultivar a terra, conforme fizeram várias gerações que viveram antes dele. Ele foi à justiça para reaver a terra.
Mahameed não é nenhum revolucionário e, sob quase todos os aspectos, é um cidadão pacato e bem-sucedido. Uma das suas filhas é médica. Dois filhos são advogados e um é engenheiro. Mas, por ser árabe, o seu pedido para retornar à sua terra vai de encontro a uma antiga política israelense.
"Estamos proibidos de usar a nossa própria terra", queixa-se Mahameed, de pé naquela que já foi a vila de Lajoun, e que hoje é uma mistura de mato e pinheiros rodeada pelos campos do kibbutz Megiddo. "Eles querem manter a minha terra disponível para os judeus. A minha filha não faz distinção entre pacientes judeus e árabes. Por que o Estado me trata de forma diferente?"
A resposta tem a ver com a própria essência do sionismo - o movimento para o renascimento judaico e o controle da terra na qual um Estado judeu prosperou pela primeira vez há mais de 2.000 anos.
"Terra é presença", opina Clinton Bailey, um acadêmico israelense que pesquisa a cultura beduína. "Se quisermos estar presentes aqui, precisamos ter terra. O país não é tão grande assim. Aquilo que é cedido aos árabes não pode mais ser usado para acomodar os judeus que ainda podem querer vir para cá".
Um Estado palestino é visto por muita gente como uma potencial solução para as tensões com os palestinos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, mas qualquer conflito profundo com os próprios cidadãos árabes de Israel poderá ser algo muito mais complexo.
O antagonismo existe dos dois lados. Muitos árabes israelenses expressam solidariedade aos palestinos que vivem sob a ocupação, enquanto outros elogiam o Hezbollah, o grupo anti-Israel no Líbano. E alguns parlamentares árabes acusam freqüentemente Israel de praticar nazismo.
Por outro lado, vários rabinos de direita emitiram ordens proibindo os judeus de alugarem apartamentos a árabes ou de empregá-los. E, segundo as pesquisas, a maioria dos judeus é favorável à proposta da retirada dos árabes de Israel como parte de uma solução baseada em dois Estados, uma idéia que era considerada muito radical uma década atrás.
Os árabes daqui rejeitam a idéia, em parte porque preferem a certeza de uma democracia israelense imperfeita do que se sabe lá que sistema possa ser criado em um frágil Estado palestino. Isto é parte do paradoxo dos árabes israelenses. A fúria deles aumentou, mas também a sensação de que pertencem ao país.
Na verdade, a retórica ansiosa e recriminatória de ambos os lados transmite uma falsa impressão de que há uma tensão constante. Em muitos lugares existe um nível real de coexistência árabe-judaica, e recentemente o governo comprometeu-se com ações afirmativas para os árabes nos setores de educação, infra-estrutura e empregos públicos.
"Sabemos que eles necessitam de mais terra, que os filhos deles precisam de um lugar para morar", diz Raanan Dinur, diretor-geral do gabinete do primeiro-ministro. "Estamos trabalhando no sentido de construir uma nova cidade árabe no norte. O nosso principal objetivo é pegar aquilo que atualmente são duas economias e integrá-las em uma economia única".
Porém, há o temor de que o tempo seja curto.
Mahameed e os seus amigos da vila chegarão ao supremo tribunal do país em julho com o objetivo de recuperar 20 hectares da terra que pertencia às suas famílias e que atualmente não é cultivada, a não ser pelos pinheiros plantados pelo Fundo Nacional Judeu.
A história deles é parte de uma história maior: depois que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) votou no final de 1947 a favor da criação de dois Estados na Palestina, um árabe e um judeu, milícias árabes locais e os seus apoiadores regionais atacaram os assentamentos judaicos, furiosos com o apoio da ONU a um Estado judeu. As forças sionistas contra-atacaram. Centenas de vilas palestinas, incluindo Lajoun, foram evacuadas e quase completamente destruídas.
Os árabes palestinos tornaram-se refugiados na Jordânia, no Líbano e na Faixa de Gaza, que à época era controlada pelo Egito. Mas alguns, como Mahameed, permaneceram em Israel. Eles receberam cidadania israelense e a promessa de igualdade, mas jamais a obtiveram.
Aqueles que partiram ou que foram expulsos das suas vilas não tiveram permissão para voltar, e, em muitos casos, passaram os últimos 60 anos a alguns quilômetros das suas antigas moradias, vendo as suas terras serem cultivadas por judeus recém-chegados, ou servirem de canteiros de obras para a construção de moradias para esses novos habitantes, muitos deles refugiados da opressão nazista ou do anti-semitismo soviético.
Em 1953, o parlamento israelense declarou que cerca de 121 mil hectares de terras das vilas capturadas passaram a ser propriedade do governo com o objetivo de abrigarem assentamentos ou por questões de segurança.
Mahameed e os outros 200 árabes israelenses que entraram com uma ação na justiça vivem aglomerados na aldeia de Um el-Fahm, perto das suas antigas terras.
"A nossa alegação é que, como a terra não foi usada durante todos esses anos, não havia necessidade de confiscá-la", diz Suhad Bishara, um advogado do Adalah, um grupo com sede em Haifa dedicado à defesa dos direitos dos árabes israelenses.
O argumento de Bishara foi rejeitado no fórum local, que concordou com a opinião do governo de que os pinheiros e uma estação de tratamento de água em Lajoun caracterizam um assentamento. Para Bishara, a determinação faz parte de uma longa tradição de trapaças dos sistemas legal e político de Israel, que quase sempre impedem o aumento do uso das terras pelos árabes.
Não é difícil perceber a lacuna entre árabes e judeus em quase todas as áreas - saúde, educação e emprego, bem como em investimentos do governo. O número de famílias árabes que vive abaixo da linha da pobreza é três vezes maior do que o de famílias judaicas, e um estudo governamental feito há cinco anos mencionou a necessidade de se remover "a nódoa da discriminação".
Dinur, do gabinete do primeiro-ministro, interessou-se pela questão e reuniu-se várias vezes com lideranças árabes. Ele diz que pode ser possível que um dia os árabes retornem às suas aldeias nativas, mas isso só aconteceria como parte de um processo maior de integração e reconciliação regional. Caso contrário, diz ele, os judeus israelenses teriam medo de que o objetivo dos árabes fosse recuperar todo o território perdido na guerra de 1948.
Para muitos israelenses, o desafio representado pelos árabes não pode ser separado daquilo que eles vêem como os riscos na região - a influência ascendente do Irã, o crescimento do radicalismo islâmico e o temor de que uma nova guerra no Líbano ou na Faixa de Gaza possa não estar muito distante.
Michael Oren, do Instituto Shalem, um grupo de pesquisas em Jerusalém, diz que quando o exército prepara-se para a guerra, ele inclui nos seus planos a forma de lidar com a possibilidade de os árabes israelenses insurgirem-se contra o Estado.
Muitos também acreditam - e nisto judeus e árabes parecem concordar - que sem uma solução para a questão palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, as tensões internas não diminuirão. E, tendo em vista o pessimismo quanto às negociações de paz com os palestinos, as previsões não são boas.
Para muitos judeus israelenses que há muito resistiam à idéia de um Estado palestino, foi a percepção de que estavam perdendo a batalha demográfica para os palestinos que os fez mudar de opinião. Mas é claro que o desafio populacional também diz respeito aos árabes de Israel.
Os árabes israelenses têm plena consciência desta disputa. E alguns acreditam que o tempo está do lado deles.
"Israel está vivendo dentro do círculo árabe-islâmico", afirmou em uma entrevista Raed Salah, diretor do Movimento Islâmico de Israel. "É importante enxergar a porcentagem judaica nesse contexto mais amplo no longo prazo".
Abdulwahab Darawshe, um ex-membro do parlamento israelense e atual presidente do Partido Democrático Árabe, disse recentemente, sentado no seu escritório em Nazaré: "Não importa o que aconteça, não sairemos daqui novamente. Isso foi um grande erro cometido em 1948. Mas a nossa identidade está tornando-se cada vez mais palestina. É impossível nos podar da árvore árabe".
Ao ser indagado a respeito dos seus planos para o Dia da Independência de Israel, ele afirmou: "Pegarei uma pá e vou trabalhar na terra em volta das minhas oliveiras".
Quando o Estado de Israel comemorar o seu 60° aniversário nas próximas semanas, com muita alegria devido ao renascimento nacional judaico e aos valores democráticos, os árabes, que são 20% do total de cidadãos do país, não estarão celebrando. Em melhor situação, mais bem integrados e mais livres do que a vasta maioria dos outros árabes, os 1,3 milhão de árabes de cidadania israelense ainda estão em uma situação bem pior do que a dos judeus israelenses e sentem-se cada vez mais indesejados.
Na próxima quinta-feira, que é o Dia da Independência, milhares de árabes irão se concentrar nas aldeias em que antigamente moravam para protestar contra aquilo que chamam de "nakba", ou catástrofe, termo que usam para referirem-se à criação de Israel. Para a maioria dos israelenses a identidade judaica é uma questão fundamental para a nação, a razão pela qual eles se orgulham de viver aqui e o vínculo com a História. Mas os árabes israelenses, incluindo aqueles que se integraram com mais sucesso, afirmam que uma nova identidade precisa ser encontrada para garantir a sobrevivência do país no longo prazo.
"Eu não sou judeu", protesta Eman Kassem-Sliman, um radiojornalista árabe que fala um hebraico impecável, e cujos filhos estudam em uma escola predominantemente judaica em Jerusalém. "Como posso pertencer a um Estado judeu? Se eles definirem isto como um Estado judeu, estarão negando a minha presença aqui".
O choque entre a estimada herança cultural da maioria e as esperanças da minoria é mais do que um atrito. E hoje em dia, até mais do que durante as grandes comemorações de meio século de criação do Estado judeu, uma década atrás, a esquerda e a direita enxergam cada vez mais os árabes israelenses como um dos desafios centrais para o futuro de Israel - um obstáculo intransponível para um acordo amplo entre judeus e árabes. O que os judeus mais temem é perder a batalha demográfica para os árabes, tanto dentro de Israel como no maior território controlado pela nação.
Muitos dizem que da mesma forma que um fim da identidade judaica do país significaria um fim do Estado, um fracasso da tarefa de instilar nos cidadãos árabes uma sensação de que pertencem a Israel seria perigoso, já que os árabes promovem a idéia de que, com 60 anos ou não, Israel é um fenômeno passageiro.
"Quero convencer o povo judeu de que ter um Estado judeu é algo de ruim para eles", afirma Abir Kopty, que defende os direitos dos árabes israelenses.
A questão da terra é especialmente delicada. Por todo o Estado de Israel, e especialmente no norte, há ruínas de dezenas de vilas palestinas desabitadas, cicatrizes na paisagem resultantes do conflito que deu a luz ao país em 1948.
Mas alguns habitantes originais e os seus descendentes, todos árabes israelenses, moram em vilas e aldeias super populosas, muitas vezes perto das suas antigas aldeias, e estão proibidos de reocupá-las enquanto as comunidades judaicas em torno deles são estimuladas a se expandir.
Em uma tarde morna recente, Jamal Abdulhadi Mahameed dirigiu por uma estrada de terra que corta campos de trigo e melancias em um kibbutz, ladeada de pinheiros e cactus. Ele galgou as ruínas de uma escada e declarou ao vento: "Esta é a minha casa. Foi aqui que eu nasci".
Ele diz que o que mais deseja hoje em dia, aos 69 anos de idade, é sair da cidade lotada ao lado, voltar ao seu terreno abandonado, no qual restaram romãzeiras plantadas pelo seu pai, e cultivar a terra, conforme fizeram várias gerações que viveram antes dele. Ele foi à justiça para reaver a terra.
Mahameed não é nenhum revolucionário e, sob quase todos os aspectos, é um cidadão pacato e bem-sucedido. Uma das suas filhas é médica. Dois filhos são advogados e um é engenheiro. Mas, por ser árabe, o seu pedido para retornar à sua terra vai de encontro a uma antiga política israelense.
"Estamos proibidos de usar a nossa própria terra", queixa-se Mahameed, de pé naquela que já foi a vila de Lajoun, e que hoje é uma mistura de mato e pinheiros rodeada pelos campos do kibbutz Megiddo. "Eles querem manter a minha terra disponível para os judeus. A minha filha não faz distinção entre pacientes judeus e árabes. Por que o Estado me trata de forma diferente?"
A resposta tem a ver com a própria essência do sionismo - o movimento para o renascimento judaico e o controle da terra na qual um Estado judeu prosperou pela primeira vez há mais de 2.000 anos.
"Terra é presença", opina Clinton Bailey, um acadêmico israelense que pesquisa a cultura beduína. "Se quisermos estar presentes aqui, precisamos ter terra. O país não é tão grande assim. Aquilo que é cedido aos árabes não pode mais ser usado para acomodar os judeus que ainda podem querer vir para cá".
Um Estado palestino é visto por muita gente como uma potencial solução para as tensões com os palestinos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, mas qualquer conflito profundo com os próprios cidadãos árabes de Israel poderá ser algo muito mais complexo.
O antagonismo existe dos dois lados. Muitos árabes israelenses expressam solidariedade aos palestinos que vivem sob a ocupação, enquanto outros elogiam o Hezbollah, o grupo anti-Israel no Líbano. E alguns parlamentares árabes acusam freqüentemente Israel de praticar nazismo.
Por outro lado, vários rabinos de direita emitiram ordens proibindo os judeus de alugarem apartamentos a árabes ou de empregá-los. E, segundo as pesquisas, a maioria dos judeus é favorável à proposta da retirada dos árabes de Israel como parte de uma solução baseada em dois Estados, uma idéia que era considerada muito radical uma década atrás.
Os árabes daqui rejeitam a idéia, em parte porque preferem a certeza de uma democracia israelense imperfeita do que se sabe lá que sistema possa ser criado em um frágil Estado palestino. Isto é parte do paradoxo dos árabes israelenses. A fúria deles aumentou, mas também a sensação de que pertencem ao país.
Na verdade, a retórica ansiosa e recriminatória de ambos os lados transmite uma falsa impressão de que há uma tensão constante. Em muitos lugares existe um nível real de coexistência árabe-judaica, e recentemente o governo comprometeu-se com ações afirmativas para os árabes nos setores de educação, infra-estrutura e empregos públicos.
"Sabemos que eles necessitam de mais terra, que os filhos deles precisam de um lugar para morar", diz Raanan Dinur, diretor-geral do gabinete do primeiro-ministro. "Estamos trabalhando no sentido de construir uma nova cidade árabe no norte. O nosso principal objetivo é pegar aquilo que atualmente são duas economias e integrá-las em uma economia única".
Porém, há o temor de que o tempo seja curto.
Mahameed e os seus amigos da vila chegarão ao supremo tribunal do país em julho com o objetivo de recuperar 20 hectares da terra que pertencia às suas famílias e que atualmente não é cultivada, a não ser pelos pinheiros plantados pelo Fundo Nacional Judeu.
A história deles é parte de uma história maior: depois que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) votou no final de 1947 a favor da criação de dois Estados na Palestina, um árabe e um judeu, milícias árabes locais e os seus apoiadores regionais atacaram os assentamentos judaicos, furiosos com o apoio da ONU a um Estado judeu. As forças sionistas contra-atacaram. Centenas de vilas palestinas, incluindo Lajoun, foram evacuadas e quase completamente destruídas.
Os árabes palestinos tornaram-se refugiados na Jordânia, no Líbano e na Faixa de Gaza, que à época era controlada pelo Egito. Mas alguns, como Mahameed, permaneceram em Israel. Eles receberam cidadania israelense e a promessa de igualdade, mas jamais a obtiveram.
Aqueles que partiram ou que foram expulsos das suas vilas não tiveram permissão para voltar, e, em muitos casos, passaram os últimos 60 anos a alguns quilômetros das suas antigas moradias, vendo as suas terras serem cultivadas por judeus recém-chegados, ou servirem de canteiros de obras para a construção de moradias para esses novos habitantes, muitos deles refugiados da opressão nazista ou do anti-semitismo soviético.
Em 1953, o parlamento israelense declarou que cerca de 121 mil hectares de terras das vilas capturadas passaram a ser propriedade do governo com o objetivo de abrigarem assentamentos ou por questões de segurança.
Mahameed e os outros 200 árabes israelenses que entraram com uma ação na justiça vivem aglomerados na aldeia de Um el-Fahm, perto das suas antigas terras.
"A nossa alegação é que, como a terra não foi usada durante todos esses anos, não havia necessidade de confiscá-la", diz Suhad Bishara, um advogado do Adalah, um grupo com sede em Haifa dedicado à defesa dos direitos dos árabes israelenses.
O argumento de Bishara foi rejeitado no fórum local, que concordou com a opinião do governo de que os pinheiros e uma estação de tratamento de água em Lajoun caracterizam um assentamento. Para Bishara, a determinação faz parte de uma longa tradição de trapaças dos sistemas legal e político de Israel, que quase sempre impedem o aumento do uso das terras pelos árabes.
Não é difícil perceber a lacuna entre árabes e judeus em quase todas as áreas - saúde, educação e emprego, bem como em investimentos do governo. O número de famílias árabes que vive abaixo da linha da pobreza é três vezes maior do que o de famílias judaicas, e um estudo governamental feito há cinco anos mencionou a necessidade de se remover "a nódoa da discriminação".
Dinur, do gabinete do primeiro-ministro, interessou-se pela questão e reuniu-se várias vezes com lideranças árabes. Ele diz que pode ser possível que um dia os árabes retornem às suas aldeias nativas, mas isso só aconteceria como parte de um processo maior de integração e reconciliação regional. Caso contrário, diz ele, os judeus israelenses teriam medo de que o objetivo dos árabes fosse recuperar todo o território perdido na guerra de 1948.
Para muitos israelenses, o desafio representado pelos árabes não pode ser separado daquilo que eles vêem como os riscos na região - a influência ascendente do Irã, o crescimento do radicalismo islâmico e o temor de que uma nova guerra no Líbano ou na Faixa de Gaza possa não estar muito distante.
Michael Oren, do Instituto Shalem, um grupo de pesquisas em Jerusalém, diz que quando o exército prepara-se para a guerra, ele inclui nos seus planos a forma de lidar com a possibilidade de os árabes israelenses insurgirem-se contra o Estado.
Muitos também acreditam - e nisto judeus e árabes parecem concordar - que sem uma solução para a questão palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, as tensões internas não diminuirão. E, tendo em vista o pessimismo quanto às negociações de paz com os palestinos, as previsões não são boas.
Para muitos judeus israelenses que há muito resistiam à idéia de um Estado palestino, foi a percepção de que estavam perdendo a batalha demográfica para os palestinos que os fez mudar de opinião. Mas é claro que o desafio populacional também diz respeito aos árabes de Israel.
Os árabes israelenses têm plena consciência desta disputa. E alguns acreditam que o tempo está do lado deles.
"Israel está vivendo dentro do círculo árabe-islâmico", afirmou em uma entrevista Raed Salah, diretor do Movimento Islâmico de Israel. "É importante enxergar a porcentagem judaica nesse contexto mais amplo no longo prazo".
Abdulwahab Darawshe, um ex-membro do parlamento israelense e atual presidente do Partido Democrático Árabe, disse recentemente, sentado no seu escritório em Nazaré: "Não importa o que aconteça, não sairemos daqui novamente. Isso foi um grande erro cometido em 1948. Mas a nossa identidade está tornando-se cada vez mais palestina. É impossível nos podar da árvore árabe".
Ao ser indagado a respeito dos seus planos para o Dia da Independência de Israel, ele afirmou: "Pegarei uma pá e vou trabalhar na terra em volta das minhas oliveiras".
Tradução: UOL
[The New York Times, 07/05/2008]
16:41
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by Prof. Almir Ribeiro
Sylvain Cypel e Philippe Pons , correspondentes em Nova York e Tóquio
São fotos que foram feitas no solo, do lado de dentro do desastre. Nada a ver com a visão abstrata e desencarnada do cogumelo nuclear. Essas imagens mostram o estado da cidade japonesa de Hiroshima nos primeiros dias que se seguiram ao arremesso, pela aviação americana, da primeira bomba atômica, em 6 de agosto de 1945, às 8h17.
Fotos atordoantes de corpos que flutuam nas águas. Imagens aterradoras de rostos distorcidos pelo sofrimento. Retratos de cadáveres amontoados em pirâmide, de corpos enrijecidos. São adultos empilhados junto com idosos e crianças, que foram apagados num instante. Não há mais nem homem nem mulher. Unicamente corpos calcinados, emaranhados debaixo dos escombros, ou deitados em fileiras que se estendem até onde a vista alcança. Eles foram alinhados pelas equipes de resgate e de militares japoneses que foram as primeiras a chegarem ao local, e cujos integrantes perambulam sem rumo, protegidos por máscaras, no meio das ruínas, neste cenário de absoluta desolação. Dá para reconhecer as crianças simplesmente por causa do seu tamanho menor.
Foi o "think tank" da Hoover Institution, na universidade Stanford, na Califórnia, que tornou públicas dez fotografias excepcionais, na segunda-feira, 5 de maio. Elas lhe foram entregues, em 1998, por Robert L. Capp, um soldado que havia participado das operações das forças americanas de ocupação do Japão depois do encerramento da Segunda Guerra Mundial. "Quando estava vasculhando num porão perto de Hiroshima", explica Sean Malloy, um historiador e pesquisador na Universidade da Califórnia, em Merced, "Capp se deparou com películas que nunca haviam sido reveladas: entre elas, havia essas fotos". O seu autor, um japonês, é desconhecido.
Quando estava trabalhando na elaboração de um livro que foi publicado neste ano, intitulado "Atomic Tragedy: Henry L. Stimson and the Decision to Use the Bomb Against Japan" (A tragédia nuclear: Henry Stimson e a decisão de arremessar a bomba sobre o Japão, Cornell University Press), Sean Malloy, um veterano da universidade Stanford, foi autorizado a ver essas fotos. Depois disso, ele conseguiu se reunir com a família Capp, que lhe permitiu divulgar três fotos inéditas no seu livro. Robert Capp, que faleceu nesse meio tempo, havia doado a sua coleção, em 1998, para o fundo de arquivos Hoover, exigindo que essas fotos não fossem mostradas antes de 2008.
Em razão da censura draconiana que foi imposta pelo ocupante americano em relação a tudo o que se referisse ao bombardeio de Hiroshima (e também ao de Nagasaki, que ocorreu três dias mais tarde), durante meses o mundo permaneceu na ignorância da amplidão da tragédia da qual foram vítimas populações essencialmente civis. As imagens que foram efetuadas pelos primeiros fotógrafos japoneses que se deslocaram até o local tiveram a sua divulgação proibida. As fotos que Robert Capp encontrou foram, sem dúvida, realizadas por um amador. Elas constituem um testemunho do horror dos primeiros dias que se seguiram aos bombardeios.
Neste dia 6 de agosto de 1945, Hiroshima (350.000 habitantes) se prepara para viver uma jornada de calor úmido, acachapante, tendo como trilha sonora os ruídos das cigarras, no tórrido verão japonês. A bomba arremessada pela fortaleza voadora Enola Gay, que havia levantado vôo na primeira hora do dia, na cidade de Tinan, no oceano Pacífico, explode a 580 metros de altitude. A cidade é demolida numa proporção de 90%, e 150.000 pessoas morrem instantaneamente ou depois de uma longa agonia. Aos efeitos fulminantes se acrescentará a morte lenta provocada pelas radiações. "Devolvam-nos a nossa humanidade", pedirá então o poeta Sankichi Toge, vítima das radiações.
Com a exceção da reportagem do jornalista australiano William Burchett, "No more Hiroshima" (Nunca mais Hiroshima), que foi publicada em setembro, não se sabe praticamente nada, seis meses mais tarde, daquilo que aconteceu em Hiroshima e em Nagasaki. O que também implica em conseqüências humanas trágicas: como tratar esses terríveis ferimentos, com os quais as equipes médicas lidam como se fossem simples queimaduras? Como debelar as hemorragias de corpos esfolados vivos? O único organismo a ser implantado pelo ocupante foi um centro de pesquisas sobre os efeitos da bomba: ele não fornece nenhuma assistência médica, mas solicita que os mortos lhe sejam entregues para autópsia...
O horror dessas fotos traz à tona novamente a seguinte pergunta: a bomba A era mesmo o único meio de pôr fim à guerra do Pacífico? Em 1945, o Japão estava completamente exausto. Em Potsdam, em 26 de julho, os Estados Unidos haviam exigido a sua capitulação incondicional, à qual Tóquio recusou se submeter. Mas a decisão de arremessar as suas bombas sobre o arquipélago já havia sido tomada, na véspera, em Washington. Nas suas Memórias, o general que se tornaria presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, escreve que em agosto de 1945, "o Japão já estava derrotado, e, portanto, era inútil recorrer à bomba atômica". E mais ainda, arremessar a segunda, sobre Nagasaki, que matou instantaneamente 70.000 pessoas. Contudo, mais do que obter a capitulação japonesa, tratava-se de demonstrar a supremacia americana para a URSS, que nesse meio tempo havia declarado a guerra ao Japão.
Desde a divulgação dessas fotos, blogueiros e internautas americanos vêm se digladiando em disputas em torno do assunto. Uma frase volta de maneira recorrente nos comentários: "Os japoneses só tiveram o que eles mereciam". No site MetaFilter, um internauta cujo codinome é "postroad" avalia que "uma vez que o Japão não tinha a menor intenção de capitular, conforme mostra o filme de Clint Eastwood ('Cartas de Iwo Jima', 2006), por mais horríveis que sejam (essas fotos), estes bombardeios salvaram um grande número de vidas americanas - e também japonesas". Inversamente, outros internautas avaliam que "a América dissimula os seus crimes vergonhosos".
Muitos são os internautas que se perguntam também por que essas fotos só estão sendo divulgadas agora. Poucos são os que confiam na versão oficial. Será possível acreditar realmente que Robert Capp tivesse esperado durante 53 anos antes de mostrar essas imagens para quem quer que seja? Por que teria ele exigido que elas continuassem sendo mantidas em segredo durante dez anos? Sean Malloy não tem nenhuma explicação: "É só uma suposição, mas Capp sabia que estava se aproximando do fim da sua vida. Ele não queria se ver envolvido nas polêmicas que essas fotos poderiam provocar".
Da mesma forma, por que Robert Capp teria fornecido esses documentos precisamente para a Hoover Institution? Pois esta é considerada como um centro de pesquisas neoconservador dos mais extremados. Alguns enxergam nisso uma vontade de "incentivar" uma intervenção americana contra o Irã antes que este país, uma vez que ele dispuser da bomba A, possa atacar Israel. Inversamente, outros sugerem a Hillary Clinton para "olhar com atenção para essas imagens antes de fazer certas declarações". A pré-candidata democrata ameaçou recentemente "apagar o Irã" do mapa caso ele atacasse o Estado judeu. O internauta que se faz chamar de "oneirodynia" insiste a respeito do "esforço maciço de censura, tanto por parte dos Estados Unidos quanto de Tóquio, depois que a bomba tivesse sido arremessada. No verão de 1946, a equipe americana encarregada da censura no Japão havia sido aumentada, a tal ponto que ela mobilizava 6.000 pessoas".
Referindo-se à "cultura do segredo" que eles acreditam detectar nos Estados Unidos, inúmeros comentários estabelecem uma relação entre Hiroshima, os bombardeios maciços com napalm das populações locais durante a guerra americana no Vietnã e... as prisões americanas de Guantánamo e de Abu Ghraib atualmente. De Hiroshima ao Iraque, um internauta anônimo escreve, no site do Yahoo!, que "o povo americano nunca se interessa por outra coisa senão pelos seus próprios mortos".
Enquanto o debate vai se desenvolvendo na Internet, a imprensa americana ainda não noticiou nem comentou a divulgação dessas novas fotografias da tragédia de Hiroshima. Nem a imprensa japonesa, aliás.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
[Le Monde, 10/05/2008]
São fotos que foram feitas no solo, do lado de dentro do desastre. Nada a ver com a visão abstrata e desencarnada do cogumelo nuclear. Essas imagens mostram o estado da cidade japonesa de Hiroshima nos primeiros dias que se seguiram ao arremesso, pela aviação americana, da primeira bomba atômica, em 6 de agosto de 1945, às 8h17.
Fotos atordoantes de corpos que flutuam nas águas. Imagens aterradoras de rostos distorcidos pelo sofrimento. Retratos de cadáveres amontoados em pirâmide, de corpos enrijecidos. São adultos empilhados junto com idosos e crianças, que foram apagados num instante. Não há mais nem homem nem mulher. Unicamente corpos calcinados, emaranhados debaixo dos escombros, ou deitados em fileiras que se estendem até onde a vista alcança. Eles foram alinhados pelas equipes de resgate e de militares japoneses que foram as primeiras a chegarem ao local, e cujos integrantes perambulam sem rumo, protegidos por máscaras, no meio das ruínas, neste cenário de absoluta desolação. Dá para reconhecer as crianças simplesmente por causa do seu tamanho menor.
Foi o "think tank" da Hoover Institution, na universidade Stanford, na Califórnia, que tornou públicas dez fotografias excepcionais, na segunda-feira, 5 de maio. Elas lhe foram entregues, em 1998, por Robert L. Capp, um soldado que havia participado das operações das forças americanas de ocupação do Japão depois do encerramento da Segunda Guerra Mundial. "Quando estava vasculhando num porão perto de Hiroshima", explica Sean Malloy, um historiador e pesquisador na Universidade da Califórnia, em Merced, "Capp se deparou com películas que nunca haviam sido reveladas: entre elas, havia essas fotos". O seu autor, um japonês, é desconhecido.
Quando estava trabalhando na elaboração de um livro que foi publicado neste ano, intitulado "Atomic Tragedy: Henry L. Stimson and the Decision to Use the Bomb Against Japan" (A tragédia nuclear: Henry Stimson e a decisão de arremessar a bomba sobre o Japão, Cornell University Press), Sean Malloy, um veterano da universidade Stanford, foi autorizado a ver essas fotos. Depois disso, ele conseguiu se reunir com a família Capp, que lhe permitiu divulgar três fotos inéditas no seu livro. Robert Capp, que faleceu nesse meio tempo, havia doado a sua coleção, em 1998, para o fundo de arquivos Hoover, exigindo que essas fotos não fossem mostradas antes de 2008.
Em razão da censura draconiana que foi imposta pelo ocupante americano em relação a tudo o que se referisse ao bombardeio de Hiroshima (e também ao de Nagasaki, que ocorreu três dias mais tarde), durante meses o mundo permaneceu na ignorância da amplidão da tragédia da qual foram vítimas populações essencialmente civis. As imagens que foram efetuadas pelos primeiros fotógrafos japoneses que se deslocaram até o local tiveram a sua divulgação proibida. As fotos que Robert Capp encontrou foram, sem dúvida, realizadas por um amador. Elas constituem um testemunho do horror dos primeiros dias que se seguiram aos bombardeios.
Neste dia 6 de agosto de 1945, Hiroshima (350.000 habitantes) se prepara para viver uma jornada de calor úmido, acachapante, tendo como trilha sonora os ruídos das cigarras, no tórrido verão japonês. A bomba arremessada pela fortaleza voadora Enola Gay, que havia levantado vôo na primeira hora do dia, na cidade de Tinan, no oceano Pacífico, explode a 580 metros de altitude. A cidade é demolida numa proporção de 90%, e 150.000 pessoas morrem instantaneamente ou depois de uma longa agonia. Aos efeitos fulminantes se acrescentará a morte lenta provocada pelas radiações. "Devolvam-nos a nossa humanidade", pedirá então o poeta Sankichi Toge, vítima das radiações.
Com a exceção da reportagem do jornalista australiano William Burchett, "No more Hiroshima" (Nunca mais Hiroshima), que foi publicada em setembro, não se sabe praticamente nada, seis meses mais tarde, daquilo que aconteceu em Hiroshima e em Nagasaki. O que também implica em conseqüências humanas trágicas: como tratar esses terríveis ferimentos, com os quais as equipes médicas lidam como se fossem simples queimaduras? Como debelar as hemorragias de corpos esfolados vivos? O único organismo a ser implantado pelo ocupante foi um centro de pesquisas sobre os efeitos da bomba: ele não fornece nenhuma assistência médica, mas solicita que os mortos lhe sejam entregues para autópsia...
O horror dessas fotos traz à tona novamente a seguinte pergunta: a bomba A era mesmo o único meio de pôr fim à guerra do Pacífico? Em 1945, o Japão estava completamente exausto. Em Potsdam, em 26 de julho, os Estados Unidos haviam exigido a sua capitulação incondicional, à qual Tóquio recusou se submeter. Mas a decisão de arremessar as suas bombas sobre o arquipélago já havia sido tomada, na véspera, em Washington. Nas suas Memórias, o general que se tornaria presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, escreve que em agosto de 1945, "o Japão já estava derrotado, e, portanto, era inútil recorrer à bomba atômica". E mais ainda, arremessar a segunda, sobre Nagasaki, que matou instantaneamente 70.000 pessoas. Contudo, mais do que obter a capitulação japonesa, tratava-se de demonstrar a supremacia americana para a URSS, que nesse meio tempo havia declarado a guerra ao Japão.
Desde a divulgação dessas fotos, blogueiros e internautas americanos vêm se digladiando em disputas em torno do assunto. Uma frase volta de maneira recorrente nos comentários: "Os japoneses só tiveram o que eles mereciam". No site MetaFilter, um internauta cujo codinome é "postroad" avalia que "uma vez que o Japão não tinha a menor intenção de capitular, conforme mostra o filme de Clint Eastwood ('Cartas de Iwo Jima', 2006), por mais horríveis que sejam (essas fotos), estes bombardeios salvaram um grande número de vidas americanas - e também japonesas". Inversamente, outros internautas avaliam que "a América dissimula os seus crimes vergonhosos".
Muitos são os internautas que se perguntam também por que essas fotos só estão sendo divulgadas agora. Poucos são os que confiam na versão oficial. Será possível acreditar realmente que Robert Capp tivesse esperado durante 53 anos antes de mostrar essas imagens para quem quer que seja? Por que teria ele exigido que elas continuassem sendo mantidas em segredo durante dez anos? Sean Malloy não tem nenhuma explicação: "É só uma suposição, mas Capp sabia que estava se aproximando do fim da sua vida. Ele não queria se ver envolvido nas polêmicas que essas fotos poderiam provocar".
Da mesma forma, por que Robert Capp teria fornecido esses documentos precisamente para a Hoover Institution? Pois esta é considerada como um centro de pesquisas neoconservador dos mais extremados. Alguns enxergam nisso uma vontade de "incentivar" uma intervenção americana contra o Irã antes que este país, uma vez que ele dispuser da bomba A, possa atacar Israel. Inversamente, outros sugerem a Hillary Clinton para "olhar com atenção para essas imagens antes de fazer certas declarações". A pré-candidata democrata ameaçou recentemente "apagar o Irã" do mapa caso ele atacasse o Estado judeu. O internauta que se faz chamar de "oneirodynia" insiste a respeito do "esforço maciço de censura, tanto por parte dos Estados Unidos quanto de Tóquio, depois que a bomba tivesse sido arremessada. No verão de 1946, a equipe americana encarregada da censura no Japão havia sido aumentada, a tal ponto que ela mobilizava 6.000 pessoas".
Referindo-se à "cultura do segredo" que eles acreditam detectar nos Estados Unidos, inúmeros comentários estabelecem uma relação entre Hiroshima, os bombardeios maciços com napalm das populações locais durante a guerra americana no Vietnã e... as prisões americanas de Guantánamo e de Abu Ghraib atualmente. De Hiroshima ao Iraque, um internauta anônimo escreve, no site do Yahoo!, que "o povo americano nunca se interessa por outra coisa senão pelos seus próprios mortos".
Enquanto o debate vai se desenvolvendo na Internet, a imprensa americana ainda não noticiou nem comentou a divulgação dessas novas fotografias da tragédia de Hiroshima. Nem a imprensa japonesa, aliás.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
[Le Monde, 10/05/2008]
15:59
|
by Prof. Almir Ribeiro
Em 68 - Paris, Praga e México
de Carlos Fuentes Ed. Rocco. Trad. Ebréia de Castro Alves. 160 págs., R$ 25
1968 - O Que Fizemos de Nós/
1968 - O Ano Que Não Terminou
de Zuenir Ventura Ed. Planeta. 224 págs. e 286 págs., R$ 75 (caixa com os dois volumes)
Maio de 68 Explicado a Nicolas Sarkozy
de André Glucksmann e Raphaël Glucksmann Ed. Record. Trad. André Telles, 256 págs., R$ 37
1968 - Eles Só Queriam Mudar o Mundo
de Regina Zappa e Ernesto Soto Ed. Zahar, 308 págs., R$ 44
Os Carbonários
de Alfredo Sirkis Ed. BestBolso/Record, 504 págs., R$ 19,90
Viagem à Luta Armada
de Carlos Eugênio Paz Ed. BestBolso/Record, 210 págs., R$ 17,90
Maio de 68
Sergio Cohn e Heyk Pimenta (orgs.)
Ed. Autêntica, 224 págs., R$ 19,90
de Carlos Fuentes Ed. Rocco. Trad. Ebréia de Castro Alves. 160 págs., R$ 25
1968 - O Que Fizemos de Nós/
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Maio de 68 Explicado a Nicolas Sarkozy
de André Glucksmann e Raphaël Glucksmann Ed. Record. Trad. André Telles, 256 págs., R$ 37
1968 - Eles Só Queriam Mudar o Mundo
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Os Carbonários
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Maio de 68
Sergio Cohn e Heyk Pimenta (orgs.)
Ed. Autêntica, 224 págs., R$ 19,90
15:52
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by Prof. Almir Ribeiro
General francês, que ensinou tortura a militares brasileiros, confirma atuação do país em golpe contra Salvador Allende
LENEIDE DUARTE-PLON, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
O GENERAL francês Paul Aussaresses, 89, é a memória viva dos atropelos aos direitos humanos praticados durante a ditadura brasileira (1964-1985). Ex-agente do serviço secreto da França, veterano das guerras do Vietnã e da Argélia, Aussaresses colaborou com o regime militar no Brasil, ensinando aos oficiais técnicas de tortura e também de combate à guerrilha.
"No curso, os estagiários representavam o papel dos torturadores e dos torturados", afirmou o militar reformado, no livro "Je N'ai Pas Tout Dit - Ultimes Révélations au Service de la France" (Eu não contei tudo - últimas revelações a serviço da França), que acaba de ser lançado em Paris.
A obra é uma série de entrevistas concedidas ao jornalista Jean-Charles Deniau. Em suas revelações, Aussaresses revelou que o governo Médici forneceu armas e aviões para o golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973. E vai além, ao relatar que o ex-presidente João Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações), o telefonou para dizer que seus homens haviam torturado e matado um "francês subversivo", em referência a Laurent Schwartz.
Aussaresses recebeu a Folha para uma longa entrevista na casa que tem na Alsácia. Não se furtou a reiterar tudo o que disse no livro e acrescentou que não se arrepende de nada, mesmo que seu livro anterior o tenha levado a responder a um processo por "apologia de crimes de guerra". "Acho que Figueiredo apreciou minha conduta em relação aos brasileiros.
Minha colaboração foi frutuosa para eles e para nós", disse.
FOLHA - O senhor viveu no Brasil entre 1973 e 1975. Qual sua missão junto à embaixada francesa?
PAUL AUSSARESSES - Eu era adido militar.
FOLHA - O sr. fazia trabalho de informação?
AUSSARESSES - É isso que os adidos militares fazem. Todos eles se informam sobre o que pode interessar a seus países e sobretudo as necessidades do país no qual servem, do ponto de vista do que podemos vender a eles.
FOLHA - Naquela época, a França já vendia armas ao Brasil?
AUSSARESSES - Claro. Havia muito tempo existiam adidos militares no Brasil. O chefe era do Exército, mas havia um da Aeronáutica e um oficial de Marinha. O Brasil tinha se interessado pelos aviões franceses fabricados pela Société Dassault. O Mirage.
FOLHA - Em seu livro, há um capítulo em que o senhor narra os cursos de interrogatório e informação a oficiais no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Quais eram suas atribuições?
AUSSARESSES - Eu dava aulas nessa escola militar porque tinha sido instrutor das Forças Especiais do Exército Americano no Fort Bragg. Fui nomeado instrutor dos pára-quedistas da infantaria americana em Fort Benning, na Geórgia, e me pediram para ser também instrutor em Fort Bragg, na Carolina do Norte. Isso foi nos anos 60. Nessa escola, encontrei oficiais estagiários das forças especiais de vários países da América do Sul.
FOLHA - Inclusive do Brasil?
AUSSARESSES - Exatamente.
FOLHA - Quem eram esses oficiais?
AUSSARESSES - Não me lembro de seus nomes. Lembro de Umberto Gordon, que se tornou chefe das Forças Especiais do Chile, a DINA, o serviço secreto de Pinochet. Éramos muito amigos.
FOLHA - O senhor chegou ao Brasil em outubro de 1973, pouco depois do golpe militar do Chile. O Brasil participou ativamente no golpe contra Allende?
AUSSARESSES - Que pergunta! Você pensaria que sou um idiota se não estivesse a par. Claro que o Brasil participou!
FOLHA - O senhor conta no livro. Gostaria que repetisse. O Brasil enviou aviões e armas?
AUSSARESSES - Mas claro, armas e aviões.
FOLHA - E enviou oficiais também?
AUSSARESSES - Sim, claro. As armas não sei dizer exatamente quais. Mas os brasileiros enviaram aviões franceses com projéteis fabricados na França pela sociedade Thomson-Brandtà
FOLHA - Para a qual trabalhou depois, quando saiu do Exército.
AUSSARESSES - Exatamente.
FOLHA - O senhor foi muito amigo de João Baptista Figueiredo, chefe do SNI e último presidente militar. Ele e o delegado Sérgio Fleury eram os responsáveis pelos esquadrões da morte brasileiros, como o senhor escreveu?
AUSSARESSES - É uma maneira de falar. Nós não chamávamos assim. Sérgio Fleury era o responsável pelos esquadrões da morte e Figueiredo, pelo SNI. O embaixador Michel Legendre não podia ouvir falar de esquadrões da morte.
FOLHA - O sr. diz que o embaixador não suportava Sérgio Fleury. E de Figueiredo, tinha melhor impressão?
AUSSARESSES - Um dia o embaixador me disse: "Você tem amigos estranhos". Eu respondi: "São eles que me permitem manter o senhor bem informado". Ele não disse mais nada.
FOLHA - Como seu trabalho era importante para a França?
AUSSARESSES - Todas as informações são importantes. Mas era sobretudo para mostrar que a França era um país amigo. Os brasileiros tinham a necessidade de tal material, estávamos dispostos a vender. Tinham necessidade de fabricar.
FOLHA - De quais materiais?
AUSSARESSES - Materiais de aviação. Tínhamos conhecimentos técnicos, mas o que era importante é que podíamos ir aos nossos superiores pedir informação para os brasileiros.
FOLHA - No livro o sr. narra o episódio de tortura de uma mulher que veio ao Brasil para, segundo o general Figueiredo, espionar o senhor. Figueiredo o fez vir de Manaus às pressas para mostrar a moça, já irreconhecível depois das sessões. Ele depois o informou que ela morrera no hospital. Nunca questionou o método bárbaro usado para obter informações daquela mulher?
AUSSARESSES - De jeito algum! A morte dessa mulher era um ato de defesa.
FOLHA - Qual é sua impressão sobre os presidentes militares: Ernesto Geisel, João Figueiredo e Garrastazu Médici?
AUSSARESSES - Ernesto Geisel era um homem racional, de uma profunda moralidade. Era um homem que tinha uma fé religiosa e respeitava as regras da moral cristã que considera que os homens merecem viver numa atmosfera de ordem que lhes permite trabalhar, cuidar da família.
De Emilio Garrastazu Medici tenho boas lembranças. Conheci-o na embaixada da França, conversamos em português. João Figueiredo era adorável, sedutor. Era o chefe do SNI quando eu cheguei como adido. O representante francês dos serviços especiais no Brasil me disse: "Todo mundo sabe que você fez parte do serviço de inteligência francês, principalmente do "Action", logo, não deve esconder. Você vai encontrar Figueiredo, chefe do SNI, não esconda que você pertenceu ao serviço equivalente na França".
FOLHA - E vocês ficaram amigos?
AUSSARESSES - Muito amigos. Acho que Figueiredo apreciou minha conduta em relação aos brasileiros. Minha contribuição foi apreciada. Minha colaboração foi frutuosa para eles e para nós.
FOLHA - Quais são os fundamentos que justificam o uso da tortura numa guerra ou como no caso do Brasil, nos anos 60 e 70?
AUSSARESSES - Acho que, se podemos evitá-la, nada a justifica.
FOLHA - E quando é que não se pode evitá-la?
AUSSARESSES - Quando a ação terrorista adversa quer ter efeitos de propaganda e tem por vítimas sobretudo mulheres e crianças. Penso que, se a tortura pode evitar a morte de inocentes, ela se justifica. É meu ponto de vista. Não a aprecio, não a aprecio, não a aprecio.
FOLHA - Na Argélia, o sr. e o general Jacques Massu estavam de acordo com todos os métodos de informação, inclusive a tortura?
AUSSARESSES - Totalmente de acordo. Mas quando houve o ataque de Philipeville, Massu ainda não estava comandando os pára-quedistas. Descobri que ia haver um ataque porque havia compras diárias de uma enorme quantidade de farinha de cuscuz num armazém. E tudo era comprado em dinheiro. E as notas de dinheiro vinham da França, do salário dos operários argelinos. Foi meu serviço de informação que descobriu tudo.
FOLHA - Parece que foi por causa de compras em uma aldeia que Che Guevara e seu grupo de guerrilheiros foram descobertos na Bolívia.
AUSSARESSES - Penso que Che Guevara era um homem brilhante, muito inteligente mas ambicioso. Ele queria substituir Fidel Castro, mas Fidel não estava apressado em deixar o posto de chefe de Estado de seu país e enviou-o em missão à Bolívia com outro homem muito brilhante que ainda está vivo, Régis Debray. Então, Fidel Castro quis dar uma ocupação a esses homens brilhantes e enviou-os em missão à Bolívia.
FOLHA - O sr. pensa que Fidel Castro armou uma cilada?
AUSSARESSES - Eles eram brilhantes, mas bebiam muito e os espiões de Fidel Castro ouviam o que eles diziam. E eles escreviam também, escreviam demais e quando foram para a Bolívia as forças de segurança bolivianas sabiam de todos os detalhes dos deslocamentos deles. Debray foi capturado rapidamente e depois encontraram sua agenda, uma bela agenda Hermès, de couro.
FOLHA - E quem os denunciou?
AUSSARESSES - A tagarelice deles.
FOLHA - Mas a CIA [serviço de inteligência dos EUA] estava na Bolívia.
AUSSARESSES - Claro, que dúvida!
FOLHA - O senhor foi sempre anticomunista?
AUSSARESSES - Sempre. Não me vanglorio disso, mas também não nego.
FOLHA - Hoje, após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, qual seria o grande perigo para um país como a França?
AUSSARESSES - A organização terrorista maometana, árabe, os islâmicos.
FOLHA - A maioria dos militares pensa que o dever é manter o silêncio. Por que o sr. resolveu falar?
AUSSARESSES - Porque penso que era meu dever falar.
FOLHA - Mesmo arriscando a sua reputação?
AUSSARESSES - Há regras de vida e da carreira militar que tratam do dever. Eu fiz o que era meu dever.
FOLHA - No livro anterior, "Services Spéciaux - Algérie 1955-1957" (Serviços especiais - Argélia 1955-1957), o sr. contou a participação na guerra da Argélia, inclusive o uso da tortura. Em 2003, foi processado por apologia a crimes de guerra, mas não houve condenação. Os crimes estavam prescritos e anistiados. Por que agora esse livro de entrevistas?
AUSSARESSES - Fui levado à Justiça por apologia à tortura. Disse que não era verdade e que escreveria outros livros para me justificar de tudo o que tinha feito em missões fora da França. Escrevi um outro livro depois, que era uma resposta aos ataques injustos contra mim. O livro é "Pour la France, Services Spéciaux, 1942-1954" (Pela França, serviços especiais)
FOLHA - O senhor se arrepende de algo que fez?
AUSSARESSES - Não me arrependo de nada. E recusei uma proposta que me foi feita no tribunal, quando fui acusado de fazer a apologia da tortura, o que não é verdade. Meu advogado e meu editor me propuseram declarar que eu me arrependia do que fizera e do que escrevera.
Não posso, não me arrependo, eu seria desprezado por minha mulher. Minha falecida esposa era uma heroína da Resistência Francesa antinazista, foi ferida em combate. Fomos casados por mais de 50 anos. Ela morreu e depois me casei novamente. E, se eu escrever que me arrependo, merecerei o desprezo de minha atual esposa. Recusei o arrependimento que me propunham e fui condenado.
[Folha de São Paulo, 03/05/2008]
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