Sem a força estilística de "Raízes do Brasil" ou "Casa-Grande & Senzala", "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado, ainda é um dos livros-chave para entender o país
A ciência econômica produzida nas nações industrializadas penetrou no Brasil por meio da universidade e, transformada em doutrina, passou a ser aceita sem nenhuma tentativa de confronto com a realidade.
A denúncia desse esforço de mimetismo, formulada por Celso Furtado (1920-2004) há meio século, é ainda atual. A inibição mental a que ele se referia, responsável pela importação de fórmulas, continua presente no debate sobre protecionismo, neoliberalismo ou globalização.
Se a lição não foi totalmente assimilada, a culpa não é de Furtado. Ele fez sua parte. Em "Formação Econômica do Brasil", agora reeditado [Cia. das Letras, 352 págs., R$ 39,50], buscou uma interpretação original do país.
Com o aparato teórico do keynesianismo (que defende a intervenção do Estado para corrigir as imperfeições do mercado) e a experiência obtida na Cepal (que propugnava um programa de desenvolvimento para a América Latina), propôs uma ambiciosa releitura da história econômica do Brasil, dos primórdios da colonização à industrialização do século passado.
O país que emerge das páginas de Furtado não é mais o dos ciclos econômicos estanques. Sem nunca deixar de ocupar uma posição secundária no cenário internacional, ele é mais complexo.
A cana-de-açúcar, o ouro, a borracha, o café, os ciclos estão todos lá, mas não mais como realidades regionais isoladas: eles se inter-relacionam, respondem à conjuntura mundial e, sobretudo, projetam uma perspectiva que chega ao século 21.
A economia de subsistência que se seguiu ao fim da empresa açucareira, por exemplo, ainda está na base de problemas econômicos e sociais do Nordeste.
A história econômica do Brasil poderia ter sido bem diferente.
Se o país esteve sempre a reboque das nações mais ricas, isso se deveu não apenas a características geográficas, históricas ou demográficas mas a opções em momentos decisivos. É ilustrativa a comparação que Furtado faz entre Brasil e Estados Unidos.
Na segunda metade do século 18, ambos os países receberam a influência do liberalismo de Adam Smith, que em 1776, mesmo ano da independência americana, publicou "A Riqueza das Nações". Mas a digeriram de forma diferente.
Nos EUA, onde além dos pequenos agricultores havia os grandes comerciantes, as idéias de Smith foram defendidas por Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro do país.
No Brasil, onde a elite era formada por grandes agricultores escravistas, tal tarefa coube a José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que influenciava a monarquia em assuntos econômicos. "Enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização [...], Cairu crê supersticiosamente na mão invisível [do mercado]", afirma Furtado.
Diferença de atitude
A comparação acentua uma diferença de atitude que ajudaria a determinar as trajetórias distintas do Brasil e dos EUA. De um lado, a interpretação de uma doutrina ao pé da letra; de outro, sua relativização.
Na pátria da livre iniciativa, o liberalismo foi bom quando conveniente para o desenvolvimento. Caso contrário, foi temperado por medidas protecionistas e estímulos à indústria.
Na história de Celso Furtado, nem sempre o Brasil fez o papel de ingênuo. Nos anos 30, superou a crise iniciada em 1929 mais rapidamente que os países ricos, ao decidir financiar a queima dos estoques de café, então o principal motor da economia.
"O valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava", escreve Furtado, identificando aí um embrionário esquema keynesiano.
O economista, no entanto, não tinha a menor ilusão. Não perdia de vista que tal política era apenas um subproduto da defesa dos interesses cafeeiros. Além disso, utilizando-se de ferramentas marxistas, Furtado, que não era marxista, introduziu o conceito de socialização dos prejuízos.
"O problema consistia menos em saber o que fazer com o café do que em decidir quem pagaria pela conta." Com a desvalorização da moeda em decorrência da crise, o grosso das perdas foi transferido para a coletividade, por meio da alta dos preços das importações.
Ainda assim, o saldo foi positivo. "A política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional.
Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados."
O leitor com alguma familiaridade com a história econômica do Brasil terá a impressão de já ter lido em outro lugar as grandes sínteses de "Formação Econômica do Brasil".
E provavelmente leu mesmo, porque elas estão espalhadas em livros, acadêmicos e de divulgação, e incorporadas ao repertório contemporâneo.
Escrito com intenção introdutória, o livro foi muito além da proposta inicial, mas manteve certa vocação didática.
A análise, apresentada em capítulos curtos, é acessível ao leigo, embora pressuponha o conhecimento dos fatos históricos e, na parte sobre a industrialização, o domínio de alguns conceitos-chave.
Comparado às grandes obras de formação do pensamento brasileiro, o clássico de Celso Furtado não tem a mesma força estilística de "Casa-Grande Senzala", de Gilberto Freyre, ou de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda. O que prende o leitor é o poder da argumentação.
OSCAR PILAGALLO é jornalista, autor de A História do Brasil no Século 20 (em cinco volumes, pela Publifolha).
[Folha de São Paulo, 01/04/2007]
A ciência econômica produzida nas nações industrializadas penetrou no Brasil por meio da universidade e, transformada em doutrina, passou a ser aceita sem nenhuma tentativa de confronto com a realidade.
A denúncia desse esforço de mimetismo, formulada por Celso Furtado (1920-2004) há meio século, é ainda atual. A inibição mental a que ele se referia, responsável pela importação de fórmulas, continua presente no debate sobre protecionismo, neoliberalismo ou globalização.
Se a lição não foi totalmente assimilada, a culpa não é de Furtado. Ele fez sua parte. Em "Formação Econômica do Brasil", agora reeditado [Cia. das Letras, 352 págs., R$ 39,50], buscou uma interpretação original do país.
Com o aparato teórico do keynesianismo (que defende a intervenção do Estado para corrigir as imperfeições do mercado) e a experiência obtida na Cepal (que propugnava um programa de desenvolvimento para a América Latina), propôs uma ambiciosa releitura da história econômica do Brasil, dos primórdios da colonização à industrialização do século passado.
O país que emerge das páginas de Furtado não é mais o dos ciclos econômicos estanques. Sem nunca deixar de ocupar uma posição secundária no cenário internacional, ele é mais complexo.
A cana-de-açúcar, o ouro, a borracha, o café, os ciclos estão todos lá, mas não mais como realidades regionais isoladas: eles se inter-relacionam, respondem à conjuntura mundial e, sobretudo, projetam uma perspectiva que chega ao século 21.
A economia de subsistência que se seguiu ao fim da empresa açucareira, por exemplo, ainda está na base de problemas econômicos e sociais do Nordeste.
A história econômica do Brasil poderia ter sido bem diferente.
Se o país esteve sempre a reboque das nações mais ricas, isso se deveu não apenas a características geográficas, históricas ou demográficas mas a opções em momentos decisivos. É ilustrativa a comparação que Furtado faz entre Brasil e Estados Unidos.
Na segunda metade do século 18, ambos os países receberam a influência do liberalismo de Adam Smith, que em 1776, mesmo ano da independência americana, publicou "A Riqueza das Nações". Mas a digeriram de forma diferente.
Nos EUA, onde além dos pequenos agricultores havia os grandes comerciantes, as idéias de Smith foram defendidas por Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro do país.
No Brasil, onde a elite era formada por grandes agricultores escravistas, tal tarefa coube a José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que influenciava a monarquia em assuntos econômicos. "Enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização [...], Cairu crê supersticiosamente na mão invisível [do mercado]", afirma Furtado.
Diferença de atitude
A comparação acentua uma diferença de atitude que ajudaria a determinar as trajetórias distintas do Brasil e dos EUA. De um lado, a interpretação de uma doutrina ao pé da letra; de outro, sua relativização.
Na pátria da livre iniciativa, o liberalismo foi bom quando conveniente para o desenvolvimento. Caso contrário, foi temperado por medidas protecionistas e estímulos à indústria.
Na história de Celso Furtado, nem sempre o Brasil fez o papel de ingênuo. Nos anos 30, superou a crise iniciada em 1929 mais rapidamente que os países ricos, ao decidir financiar a queima dos estoques de café, então o principal motor da economia.
"O valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava", escreve Furtado, identificando aí um embrionário esquema keynesiano.
O economista, no entanto, não tinha a menor ilusão. Não perdia de vista que tal política era apenas um subproduto da defesa dos interesses cafeeiros. Além disso, utilizando-se de ferramentas marxistas, Furtado, que não era marxista, introduziu o conceito de socialização dos prejuízos.
"O problema consistia menos em saber o que fazer com o café do que em decidir quem pagaria pela conta." Com a desvalorização da moeda em decorrência da crise, o grosso das perdas foi transferido para a coletividade, por meio da alta dos preços das importações.
Ainda assim, o saldo foi positivo. "A política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional.
Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados."
O leitor com alguma familiaridade com a história econômica do Brasil terá a impressão de já ter lido em outro lugar as grandes sínteses de "Formação Econômica do Brasil".
E provavelmente leu mesmo, porque elas estão espalhadas em livros, acadêmicos e de divulgação, e incorporadas ao repertório contemporâneo.
Escrito com intenção introdutória, o livro foi muito além da proposta inicial, mas manteve certa vocação didática.
A análise, apresentada em capítulos curtos, é acessível ao leigo, embora pressuponha o conhecimento dos fatos históricos e, na parte sobre a industrialização, o domínio de alguns conceitos-chave.
Comparado às grandes obras de formação do pensamento brasileiro, o clássico de Celso Furtado não tem a mesma força estilística de "Casa-Grande Senzala", de Gilberto Freyre, ou de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda. O que prende o leitor é o poder da argumentação.
OSCAR PILAGALLO é jornalista, autor de A História do Brasil no Século 20 (em cinco volumes, pela Publifolha).
[Folha de São Paulo, 01/04/2007]
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