Que França é esta?

Campanha para presidente escancara um país ansioso e difícil de enquadrar

Luiz Felipe de Alencastro

Quaisquer que sejam os resultados das presidenciais no primeiro e no segundo turno, as eleições de 2007 marcam o fim de uma época na história contemporânea da França. Diversos fatores explicam a singularidade da situação atual.
Pela primeira vez, desde 1965, quando ocorreu a primeira eleição presidencial direta, com a vitória do general De Gaulle, já presidente eleito pelo voto indireto, nenhum dos atuais candidatos ocupou ou ocupa o cargo de presidente ou de primeiro-ministro.
No regime semipresidencialista, o posto de primeiro-ministro funciona como uma rampa de lançamento de candidaturas à Presidência. Desse modo, o fato de que nenhum dos três ex-primeiros ministros partidários de Chirac (Juppé, Raffarin e Villepin) apareça - no final de dois mandatos do atual presidente - como candidato à sua sucessão ilustra o esgotamento do gaullismo. Na oposição, a passagem para o segundo plano de ex-primeiros-ministros (Fabius, Roccard e Jospin) e ex-ministros potencialmente presidenciáveis revela o colapso das alianças de esquerda que levaram o socialista François Mitterrand à presidência (1981 e 1988) e Jospin ao posto de primeiro-ministro (1997).
Reflexo da exaustão partidária, a campanha está sendo liderada por candidatos que obtiveram sua investidura contra as direções de seus respectivos partidos. Tanto Nicolas Sarkozy quanto Ségolène Royal tiveram que derrotar rivais poderosos e dobrar resistências no seu próprio campo antes de se afirmarem como presidenciáveis. As repercussões desses enfrentamentos espoucaram na campanha. Figurões do PS continuaram dando rasteiras em Ségolène, enquanto Chirac e Villepin apoiaram Sarkozy apenas com a ponta dos lábios. Mesmo François Bayrou, representante do campo centrista, fez uma campanha fora dos parâmetros de seu partido (a UDF), até então aliado tradicional da direita. Seu sucesso nas sondagens deve-se, justamente, ao abandono do alinhamento automático com os gaullistas e a seus apelos ao eleitorado de esquerda. Por esse motivo, o ex-presidente Giscard d'Estaing, fundador da UDF e aliado tradicional dos gaullistas, renegou a candidatura Bayrou e manifestou seu apoio a Sarkozy. Nessa ordem de idéias, o avanço de Bayrou nas pesquisas - um dos fatos mais importantes da campanha - configura-se como causa e efeito da indecisão dos eleitores e das incertezas que caracterizam a eleição.
Por certo, o país continua atravessado por correntes políticas e ideológicas bem enraizadas. Como em todas as sete presidenciais realizadas desde 1965, nenhum candidato presumiu que pudesse eleger-se logo no primeiro turno nessa campanha. Mas o fato é que o atual quadro partidário parece desconectado de boa parte das preocupações do eleitorado. Assim, as eleições também servirão para consolidar novas lideranças e definir outras correlações de forças na política francesa.
Alguns elementos podem ser alinhados para explicar o porquê da recomposição política e partidária que se anuncia. Há, evidentemente, uma alternância de gerações que projeta em primeiro plano três presidenciáveis beirando os 50 anos e joga para escanteio lideranças mais antigas e estreitamente incorporadas aos aparelhos partidários, como Villepin ou Jospin. Tal evolução constitui, em si mesma, um fator importante num país marcado pela longevidade de seus dirigentes e cujo presidente obteve seu primeiro cargo ministerial há 40 anos. Mais próximos da média de idade do eleitorado e sem experiência na chefia do governo, os presidenciáveis suscitam ataques mais impregnados de emotividade do que de ideologia. Daí as críticas renitentes feitas ao caráter supostamente “agitado” (“ansiógeno”, gerador de ansiedade) de Sarkozy, a cisma com o alegado jeito “gafento” de Ségolène e a “vacuidade” imputada às propostas de Bayrou.
Outro fator que pesa sobre o escrutínio é a mudança do campo de inserção da França no mundo. Nas últimas décadas, o país registrou uma série de recuos que reduziram sua influência internacional. A perda das colônias na Indochina e na África deixou seqüelas duráveis. Em particular, a guerra da Argélia (1954-1962) agravou o contencioso com os árabes e com a generalidade dos muçulmanos que constituem, atualmente, a segunda religião da França. Durante algum tempo, imaginou-se que as relações clientelísticas entre Paris e suas ex-colônias da África ocidental podiam manter o prestígio do país na região. Mas a recorrência de conflitos políticos e militares mostrou os limites da diplomacia francesa nessa parte do mundo.
Num movimento paralelo - mas de conseqüências mais graves porque concerne ao futuro e não ao passado da França -, Paris também começou a perder espaço na União Européia (UE). Fundadora e principal motor, junto com a Alemanha, da construção européia, a França conheceu, na virada do século, uma seqüência de desentendimentos com a UE. O ponto alto desses desencontros se sucedeu em 2005. Naquele ano, contra a orientação dos grandes partidos de direita e de esquerda, contra a opinião dos principais jornais do país, o eleitorado votou majoritariamente pelo “não” no referendo sobre o estabelecimento de uma Constituição européia.
Esse resultado negativo do referendo paralisou as instituições européias e, no plano interno, desarticulou as lideranças dos partidos políticos. No campo conservador, os dirigentes gaullistas, a começar pelo presidente Chirac, e centristas sentiram-se desautorizados pelos eleitores. Duramente atingido pela derrota de seu candidato, Lionel Jospin, no primeiro turno das presidenciais de 2002, o Partido Socialista (PS) sofreu outro trauma com a vitória do “não” e as divisões internas geradas pela campanha do referendo.
Até então, o PS seguira uma marcha ascendente no campo da esquerda francesa. No final dos anos 1970, tirando as lições de suas duas derrotas nas eleições presidenciais, François Mitterrand agregou setores de extrema-esquerda e da “nova esquerda” (ecologistas, feministas, etc.) no PS. Tal estratégia, que contava ainda com o suporte do eleitorado consistente do Partido Comunista, permitiu a vitória de Mitterrand em 1981 e 1988. Parte das idéias e das reivindicações formuladas pelo movimento de maio de 1968 chegou às reuniões governamentais nesse período.
No entanto, o declínio contínuo do PC francês começou a privar os socialistas de uma reserva importante de votos para os segundos turnos das eleições parlamentares e presidenciais. Depois de perder a presidencial de 1995, Jospin logrou formar uma aliança eleitoral viável, apoiando-se no Partido Verde e no que restava do PCF para vencer as eleições parlamentares de 1997.
Contudo, seu governo não conseguiu estancar o enfraquecimento da esquerda dita “de governo” (por oposição à esquerda dita “contestação”, formada pelos partidos e candidatos de extrema-esquerda). O PCF continuou perdendo força eleitoral - na atual campanha sua candidata obtém apenas cerca de 3% dos votos nas sondagens -, enquanto o Partido Verde estiolava-se em lutas internas. Desse ponto de vista, o PS ainda não saiu do impasse estratégico surgido na esquerda “de governo” com o declínio do PCF. No meio tempo surgiram novos problemas com os quais nem a esquerda, nem a direita conseguem lidar adequadamente. O crescimento relativamente medíocre da economia francesa nos últimos anos, somado ao aumento de desemprego e ao movimento de dessindicalização, gerou tensões sociais nas subúrbios da grandes cidades.
Como se sabe, existe na França, e mais precisamente em Paris, uma tradição de protestos de massa que às vezes tomam um caráter quase insurrecional. Tais eventos, cuja expressão mais recente foi a greve estudantil de maio de 2006, geralmente mobilizados por movimentos estudantis e organizações de extrema-esquerda, incorporam-se em seguida a práticas consensuais e absorvem-se nas instituições. Todavia, os levantes dos subúrbios (banlieues), em outubro e novembro de 2005, não corresponderam a esse tipo tradicional de protestos de massa. Desorganizadas, sem lideranças nem plataformas políticas, incendiando por vezes escolas e pondo em perigo vidas humanas, as manifestações de 2005 revelaram uma grave crise social que escapava ao enquadramento sindical e às referências politico-partidárias.
Diante dos desafios internos e externos que mergulham o país numa inédita perplexidade, duas candidaturas irão provavelmente enfrentar-se no segundo turno.
Articulada contra os dirigentes do PS, a candidatura de Ségolène tenta resolver o impasse estratégico da esquerda “de governo”, operando uma saída para o centro que combina as reivindicações tradicionais de esquerda (direitos trabalhistas, defesa dos serviços públicos e do Estado de Bem Estar Social) à temática mais centrista e conservadora (ênfase no sentimento patriótico, nos valores familiais e na paz social).
Nicolas Sarkozy propõe soluções que também são heterodoxas no seu próprio campo político. Rompendo com a tradição gaullista encarnada por Chirac, que desenvolve uma diplomacia independente e por vezes confrontativa com os Estados Unidos, Sarkozy retoma a política “atlantista” dos centristas e propõe-se a estabelecer uma aliança constante com Washington. No plano nacional, ele defende uma liberalização da economia e a diminuição do peso do Estado francês.
Ao fim e ao cabo, haverá um novo embate político na França. Do lado da esquerda, a primeira mulher com chance de chegar à presidência, a qual, em nome do realismo, afasta-se do militantismo herdado de maio de 1968 e orienta sua plataforma para o centro do espectro político. No campo conservador, surge pela primeira vez no pós-guerra um líder verdadeiramente de direita, decidido a abandonar o gaullismo social para chegar mais perto do neoliberalismo. Será mesmo o fim de uma época!

SEXTA, 20 DE ABRIL: A dúvida de Ségolène
Na antevéspera da eleição presidencial, dois dos três principais jornais da França, Le Monde e Libération, se unem em editoriais a favor da candidata de esquerda Ségolène Royal, do Partido Socialista, que corre o risco de não chegar ao segundo turno no pleito.


Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Universidade de Paris Sorbonne

[O Estado de São Paulo, 22/04/2007]

O imperador do lápis vermelho

"D. Pedro 2º", de José Murilo de Carvalho, faz retrato sensível do chefe de Estado, que era um defensor árduo da "coisa pública"

MARCO ANTONIO VILLA

Com elegância, concisão e fino humor, José Murilo de Carvalho traça um amplo painel da vida de d. Pedro 2ø (1825-1891) e da história do Brasil do período. É um retrato simpático, algumas vezes emotivo, da vida do imperador.
Porém a maior impressão é a contraposição que o leitor poderá fazer entre os 50 anos de reinado de d. Pedro 2ø e a história da República, marcada, paradoxalmente, pelo descaso em relação à "coisa pública".
O Segundo Reinado foi caracterizado pela ampla liberdade de imprensa. Deste então, nunca se viu uma imprensa tão crítica ao governo e ao chefe de Estado. Este, especialmente, foi atacado por todos, escravistas, republicanos, abolicionistas.
Ora era o Rei Caju, o César caricato ou o Pedro Banana.
Sua família era a "estirpe sinistra". Os ataques eram de todas as ordens.
Um pasquim afirmou que o imperador era "doido por um caldinho de franga" (referência aos amores extraconjugais). Silva Jardim, propagandista da República, pregou o fuzilamento do seu genro, o Conde d"Eu.
Sua filha, Isabel -sucessora do trono-, era ridicularizada, considerada incapaz e acusada de abrigar escravos fugitivos.

Infância infeliz
Escravocratas diziam que havia um quilombo em Petrópolis, isso porque a sucessora do trono sempre se manifestou pelo fim da escravidão e seus filhos editavam um pequeno jornal abolicionista.
O imperador teve uma infância infeliz, sem mãe -que morreu quando tinha um ano-, sem pai -que partiu para a Europa em 1831 e morreu três anos depois-, sem parentes próximos, foi o "órfão da nação", criado por tutores nomeados pelo Parlamento.
Viveu solitário, só tendo a companhia das irmãs. Teve uma rígida educação -muito distinta de qualquer criança da época-, preparando-o para o exercício das funções constitucionais. É desse momento o seu amor pelos livros e pelas ciências.
Apaixonado pelas línguas, falava latim, alemão, inglês, italiano e espanhol. Lia grego (traduziu "Prometeu Acorrentado", de Ésquilo), árabe, hebraico, sânscrito, provençal e tupi.
Tinha três bibliotecas, com 60 mil volumes. Lia obsessivamente. E não escolhia hora ou lugar: sempre estava acompanhado de um livro.
Travou correspondência com importantes intelectuais e cientistas europeus. Nas três viagens que fez à Europa -a primeira, quando completou 50 anos- encontrou-se com reis, rainhas e principalmente com intelectuais. Fez parte da Academia de Ciências francesa.
Em 1876, na longa visita que fez aos Estados Unidos (três meses), foi o único chefe de Estado estrangeiro convidado para a inauguração da Exposição Industrial da Filadélfia, comemorativa do centenário da independência americana.
Foi o imperador de uma corte pobre, sem recursos financeiros (teve dificuldade, justamente por isso, de encontrar pretendentes para suas filhas).

Recursos próprios
As três viagens que fez ao exterior foram realizadas com seus próprios recursos. E mesmo assim teve de contrair empréstimos. Apesar dessas dificuldades, pagou pensões para jovens cientistas, poetas, pintores, músicos estudarem na Europa ou nos EUA.
Foi cioso na utilização de recursos públicos. Lia, inclusive, jornais provinciais para acompanhar os comentários sobre as administrações locais.
Anotava a lápis vermelho as acusações encontradas e encaminhava para que os ministros apurassem.
Quando viajou para a Europa, em 1871, recomendou à princesa Isabel que uma boa administração dependia, sobretudo, "da nomeação de empregados honestos e aptos para os empregos". Dividido entre os livros, o amor pela condessa de Barral (que foi preceptora das filhas Isabel e Leopoldina) e as funções de chefe de Estado, acabou derrubado pela sedição militar de 1889.

Vida difícil
Foi para o exílio. Viveu em meio a dificuldades financeiras. Teve de fazer vários empréstimos. Mas não deixava de pensar no Brasil.
Anotou no diário em 30 de janeiro de 1891: "Sonhei com o meu Rio, que me deixavam ir, e eu logo fui embora como de viagem. Que felicidade! Lá iria passar o inverno daqui, em Petrópolis, voltando na primavera que é, na Europa, lindíssima. Foi um sonho. Acenderam a lâmpada e vou ler".
Morreu aos 66 anos de idade, em Paris. O presidente Sadi Carnot determinou que o velório ocorresse com honras militares.
O governo brasileiro não mandou nenhum representante. Mas os franceses estiveram presentes: 200 mil parisienses acompanharam o corpo até a estação de Austerlitz. De lá seguiu de trem para Portugal.


D. PEDRO 2º - SER OU NÃO SER , José Murilo de Carvalho; Companhia das Letras

[Folha de São Paulo, 22/04/2007]

Tóquio esquece suas escravas sexuais

A China critica o último deslize do primeiro-ministro japonês e os EUA pedem correção. Tóquio insiste em negar seu envolvimento no sistema de prostituição forçosa na 2ª Guerra Mundial

Rafael Poch, em Pequim

Um comentarista do jornal "Asahi" de Tóquio tentou certa vez dar nota à trajetória de seu país desde a II Guerra Mundial. Deu-lhe Excelente como "bom perdedor" da guerra e como "ótimo reconstrutor" no pós-guerra. Sugeriu um Notável no conceito de "bom cidadão", mas em seguida propôs um rotundo Reprovado em outra categoria, a de "bom vizinho". Em 1º de março passado, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, confirmou esse Reprovado. Abe negou qualquer responsabilidade do governo japonês no sistema de escravidão sexual organizado na Ásia durante a guerra e a ocupação do continente, que envolveu entre 80 mil e 200 mil mulheres coreanas, chinesas, filipinas, indonésias e algumas européias, empregadas nos bordéis do exército imperial.

Além de infame, a declaração foi muito torpe. Primeiro de março é o dia em que os coreanos comemoram os protestos antijaponeses de 1919. Além disso, este ano é o 70º aniversário do massacre de dezenas de milhares de chineses em Nanquim e o início da guerra em que morreram 23 milhões de chineses em toda a Ásia, segundo a estimativa documentada de Chalmers Johnson.

Abe disse que "não há evidências que provem que houve coerção" no caso do exército de mulheres obrigadas a se prostituir, uma realidade historicamente documenta na memória da Ásia, e pelo trabalho do historiador japonês Yoshiaki Yoshimi, que demonstrou em 1992 a participação no fato do exército e do governo imperiais. Oito dias depois o Executivo insistia no mesmo tom em outra declaração em que desculpava a si e ao exército.

Em 1993 o governo japonês expressou seu "pesar e remorso" por aquele drama de guerra, e tanto essa declaração parlamentar como outra posterior de Abe afirmavam basear-se naquela declaração de 1993. O resultado foi a habitual ambigüidade japonesa em assuntos de responsabilidade de guerra: mantêm-se as desculpas, mas sugere-se que não se acredite em todo o assunto. Isso obriga os políticos japoneses a todo tipo de declarações que são imediatamente desmentidas por outras, ou por atitudes concretas e claras. Quando lhes perguntam sobre o tema, estranham a insistência.

Neste caso, os coreanos se enfureceram. Os chineses minimizaram a afronta do dia 1º de março e divulgaram amplamente em sua imprensa a declaração oficial posterior, que afirmava a vigência da posição de 1993. Mas a reação mais incisiva se registrou nos EUA, onde uma declaração do Congresso pediu que Tóquio mudasse de atitude.

A amnésia e recusa em aceitar responsabilidades históricas, tão freqüente entre as potências européias, é rara em países que foram derrotados de forma tão contundente como aconteceu com o Japão. Ainda mais estranho é que essa insensibilidade em relação às vítimas estrangeiras seja compatível com Abe e seu governo, que fizeram do caso dos 16 cidadãos japoneses seqüestrados nos anos 1970 e 80 pelos serviços secretos norte-coreanos, um de seus principais temas diplomáticos.

Muitos na Ásia se perguntam sobre o motivo dessa atitude. O professor Lee Gi Ho, da Universidade de Sungkonghoe, na Coréia do Sul, diz que o Japão é "como uma criança que se nega a crescer e ser adulto", comparação que o general americano Douglas MacArthur, vice-rei do Japão no pós-guerra, já empregou em 1951. Outros opinam que o problema de desculpas convincentes para o Japão é que o país não acredita sinceramente ter feito nada de mal na guerra. Mas existe outro Japão, composto por cidadãos, juristas, historiadores e ativistas, com uma longa história de intervenções no tema da memória histórica da nação.


La Vanguardia, 14/04/2007
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Apologia de um nazista morto

Os elogios ao ex-primeiro-ministro de Baden e juiz da marinha hitlerista em seu funeral provocam polêmica na Alemanha

José Comas, em Berlim

A chanceler federal alemã, a democrata-cristã Angela Merkel (CDU), censurou neta sexta-feira (13/4) por telefone seu correligionário, o primeiro-ministro de Baden-Wurtemberg, Günther Oettinger, por sua apologia do ex-primeiro-ministro desse Estado alemão e ex-juiz da marinha hitlerista Hans Filbinger, que morreu aos 93 anos em 1º de abril passado. Até depois de morto o chamado "jurista terrível" provoca um escândalo.

Filbinger, como promotor em um conselho de guerra realizado na Noruega sete semanas antes da rendição da Alemanha na II Guerra Mundial, pediu a mudança da condenação do marinheiro Walter Gröger, de 22 anos, que havia desertado, de oito anos para pena de morte. Filbinger em pessoa comandou o pelotão que fuzilou o soldado e certificou sua morte. Quando isso foi descoberto, em 1978, Filbinger teve de se demitir do cargo de primeiro-ministro de Baden-Wurtemberg, sem uma palavra de arrependimento ou de admissão de culpa.

Agora, no funeral solene de Estado na catedral de Freiburg, seu sucessor na chefia do governo estadual, Oettinger (CDU), fez uma apologia de Filbinger em um discurso que supera todos os limites imagináveis da falta de vergonha.

Ele afirmou que Filbinger "não foi um nacional-socialista. Ao contrário, foi um inimigo do regime nazista", que não "pôde evitar as pressões do regime, como tantos milhões". Oettinger afirmou que Filbinger foi obrigado a ser juiz da marinha hitlerista, mas que ninguém morreu por uma condenação sua.

Ursula Gake, 78 anos, irmã do marinheiro executado, criticou o discurso fúnebre de Oettinger e disse que considera Filbinger "o assassino" de seu irmão. O elogio de Oettinger provocou uma onda de indignação na Alemanha. Charlotte Knobloch, presidente da Comunidade Judia, declarou: "Apresentar Filbinger como inimigo do regime nazista é uma perversão da realidade histórica perigosa e nociva aos sobreviventes".

Vários políticos pediram que Oettinger retire suas palavras e se desculpe, ou que se demita do cargo. Até os parceiros de coalizão do primeiro-ministro democrata-cristão, os liberais do FDP, o criticaram. Merkel, consciente do escândalo crescente, pegou o telefone e enfrentou um dos grandes barões da CDU. Disse-lhe que "desejaria que ao lado dos elogios à obra da vida do primeiro-ministro Hans Filbinger também tivessem sido colocadas algumas perguntas críticas relacionadas à época do nacional-socialismo". Merkel considera que isso teria sido necessário, "sobretudo em atenção aos sentimentos das vítimas e dos afetados" pelo nazismo.


El País, 14/04/2007
Tradução:
Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Nas fronteiras entre os reinos humano e animal

Valores humanos, dignidade humana, direitos humanos. Há muitos anos invocamos tais coisas como favas contadas de argumentos irrespondíveis, diante dos quais os diálogos se encerram e todos se calam. Enquanto isto, surgidas nas mal resolvidas fronteiras entre a ciência e a filosofia, inúmeras pesquisas vão silenciosamente detonando todos os nossos conceitos de 'humanidade' e teimando em nos puxar de volta para a consciência das continuidades que nos ligam ao resto da criação. Então Você Pensa Que É Humano? - Uma Breve História da Humanidade, do historiador de Oxford, Felipe Fernandez-Armesto é resumo lúcido e atualizado de todas essas novas pesquisas e suas implicações culturais e morais.

A evolução da espécie tomou a forma da iconografia de uma escada, que virou um lugar-comum: é uma seqüência linear de formas progressivas, geralmente dispostas da esquerda para a direita, quase sempre indo de um macaco encurvado para um homem empinado. Tal imagem se tornou tão execravelmente errada e preconceituosa, que deveria ser definitivamente abolida de todos os livros e manuais científicos. Sondagens e descobertas isoladas da última década pulverizaram todas as cronologias. A paleoantropologia até já desistiu de dar uma resposta conclusiva à pergunta: até que ponto remoto no passado evolutivo podemos distinguir os humanos de outros seres? O exemplo-chave é o dos neandertais: se encontrássemos um deles na rua, certamente experimentaríamos o mesmo senso de parentesco, de reconhecimento instantâneo - tirando, é claro, diferenças de aspecto e problemas de comunicação, típico de encontros corriqueiros ente humanos modernos esclarecidos de diferentes culturas.

A primatologia deste início de século, tem acumulado pesquisas com fortes exemplos de como nós, humanos, somos semelhantes a outros macacos, sobretudo bonobos e orangotangos. Impossível esperar de orangotangos qualquer destreza sintática, mas eles parecem ter sistemas de comunicação capazes de atingir o alcance da fala humana - ou seja, eles se comunicam para os seus próprios fins, usando com parcimônia, vocalizações dentro do âmbito permitido pelos seus órgãos de fala, suplementados por gestos e caretas. Já os chimpanzés têm se mostrado melhores, de modo geral, em aprender a linguagem humana do que os pesquisadores humanos em dominar a comunicação dos macacos - um resultado notavelmente antevisto por Montaigne, quando disse que 'os macacos bem podem nos considerar animais, assim como nós os consideramos'. Num grau modesto, a história do Dr. Doolittle bem que poderia se tornar realidade, mas, pelas pesquisas recentes, é muito mais provável que o próprio Dr. Doolittle seja um animal não humano.

Armesto mostra que os termos com os quais os modernos paleoantropólogos debatem a natureza dos neandertais são assustadoramente semelhantes aos dos debates do século 19 sobre os negros, quando povos pigmeus chegaram a ser definidos como formas degeneradas dos babuínos. Tudo conduziu a justificar racialmente a vitimização de vários grupos na história. Abandonamos o olhar racista do passado, mas resvalamos noutro tipo de sutil preconceito: o 'especieísmo' -, a idéia de que a espécie humana seria única e superior, arrogantemente colocada no pináculo da escala da vida. História de chimpanzés como Lucy ou Washoe mostram que tais criaturas escolhiam a quietude para preservar a liberdade e abstinham-se da fala para conservar a inocência. As experiências com as duas tornaram realidade a conhecida fábula chinesa dos macacos sábios, os quais, graças à sua prudência, não escutam, não vêem e, portanto, não verbalizam o mal. Emoções e moralidades especificamente humanas? Eis aí mais uma das muitas certezas atenuadas. Os últimos anos de vida de Washoe em cativeiro foram abalados pela tragédia da morte de seu bebê. E cada vez que alguém se aproximava da sua jaula, ela exclamava, através de sinais: 'Traga o bebê, traga o bebê!'

Sem resvalar no sectarismo, Armesto ilustra como o lobby dos direitos dos animais tem obtido um sucesso extraordinário em nos desafiar a identificar aquilo - se é que existe algo assim - que nos dá direito a um tratamento privilegiado em relação aos outros animais. O fato é que, para além da diversidade humana, existe uma fronteira indistinta entre os reinos humano e animal - que outrora se imaginava serem mutuamente excludentes. Afinal, o que diferencia a espécie humana das outras? A resposta é irônica, mas incisiva: a nossa espécie só é única no seu desejo de se diferenciar de todas as outras.

Num capítulo fascinante, Armesto ainda examina o conceito de humanidade nos cenários de futuros pós-humanos, desenhados pelas promessas (ou ameaças) da genética e da robótica. Para além de suas aplicações na medicina, a pesquisa genética tem nos oferecido, cada vez mais, um modo de medir os candidatos a membros de nossa espécie e, simultaneamente, de calibrar quanto temos em comum com todas as outras. E o estudo do genoma humano promete ou ameaça tornar realidade o projeto do Dr. Moreau: híbridos com qualidades humanas enxertados em receptores não-humanos. O problema não é só o de classificar tais criaturas, mas questionar: como é que o próprio fato de serem concebíveis afeta o conceito que temos de nós mesmos? Um livro brilhante e provocador, que deixa longe o debate entre criacionistas e darwinistas, conduzindo a polêmica a um novo e surpreendente patamar.

Enfim, ser humano nunca pareceu tão bestial. Em face dos últimos avanços, a idéia de que os humanos são os únicos seres racionais, intelectuais, espirituais, autoconscientes, criativos, morais ou divinos - virou mais um artigo de fé, um mito silencioso ao qual, contra todas as evidências, nos apegamos. Mas também sabemos quanto é impossível voltar ao zero de nossa condição. Armesto reconhece que ainda é possível buscar o potencial humano para transcender nossos fracassos e defeitos e resgatar aquela preciosa auto-insatisfação, que é um dos nossos bens mais preciosos. E afinal, já que não dá mais mesmo para descartar o mito da 'espécie humana', será que não podemos tentar viver à altura dele?

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor dos livros As Utopias Românticas e Raízes do Riso

Então Você Pensa Que É Humano?, Felipe Fernandez-Armesto, Companhia das Letras, 184 págs., R$ 37,50

[O Estado de São Paulo, 08/04/2007]

A eterna 'guerra santa'

O sacerdote ortodoxo italiano Dag Tessore, que analisou os discursos de Bento XVI, volta à carga com livro em que compara a Jihad Islâmica às Cruzadas
Antonio Gonçalves Filho

Dag Tessore é um sacerdote da Igreja Ortodoxa. Quem quiser conhecer melhor o papa, que visita o Brasil no próximo mês, deve ler seu livro Bento XVI - Questões de Fé, Ética e Pensamento na Obra de Joseph Ratzinger (Editora Claridade, 200 págs., R$ 32), que analisa os discursos do sumo pontífice sobre temas como aborto, feminismo, clonagem, celibato dos padres e terrorismo. Mas, quem quiser conhecer Tessore, o caminho mais curto é o livro A Mística da Guerra (200 págs., R$ 38), que a editora Nova Alexandria coloca nas livrarias no dia 16. Trata-se de um livro polêmico e politicamente incorreto (especialmente numa época como a da Páscoa). Nele, Tessore defende a “guerra santa” contra infiéis - tanto a Jihad Islâmica como a nova cruzada cristã contra os excessos do capitalismo liberal.

Em entrevista exclusiva ao Estado, da Grécia, Dag Tessore falou que sua intenção, ao escrever A Mística da Guerra, não foi a de colocar Osama bin Laden no mesmo barco de São Bernardo, um inspirador das Cruzadas, mas o de lançar nova luz sobre a “guerra santa”. O religioso ortodoxo, no entanto, recusa-se a julgar e condenar. Diz que não é sua tarefa como historiador e coloca-se do lado de santos e teólogos que justificaram a guerra contra “ímpios”, argumentando que a alma é mais importante que o corpo. Numa sociedade laica e hedonista como a ocidental, obcecada pelo último, a morte do corpo, segundo o autor, significa a “morte de tudo”, o que impede o homem contemporâneo de entender o significado do sacrifício de mártires.

Hoje, diz ele, estamos acostumados a ver a Igreja como promotora da paz e da não-violência, mas nem sempre foi assim. Tessore lembra que durante 1.500 anos a idéia de matar por Deus foi aprovada e praticada pela Igreja com a sutentação teológica de santos como Agostinho e Jerônimo, que traduziu parte das Sagradas Escrituras para o latim. Prescrever a morte para pagãos não é, portanto, prática comum apenas entre fundamentalistas islâmicos.

Tessore joga mais lenha na fogueira ao identificar o advento de uma religião no Ocidente, “fundada sobre dogmas da democracia laica, do progresso econômico e da permissividade”. O “eixo do mal” não seria bem o que Bush supõe. O sacerdote autor de A Mística Religiosa defende que islamismo e cristianismo estão irmanados em uma “comum tensão de guerra interior e de luta exterior contra um inimigo comum: o indiferentismo religioso, o consumismo, a secularização e a depreciação dos valores espirituais e humanos.

[O Estado de São Paulo, 08/04/2007]

Passado que condena

A ensaísta argentina Beatriz Sarlo fala como a sociedade hoje revisita a história construindo museus e parques, e parece sofrer de amnésia Antonio Gonçalves Filho Afirmar que o testemunho de uma vítima da ditadura militar argentina não é capaz de oferecer uma nova perspectiva sobre o passado pode parecer escandaloso, mas não quando quem afirma é a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, argumentando que a história de seu país precisa ser revista com base em outras fontes. A ensaísta, que vem a São Paulo em maio para um debate no Instituto Cervantes, é considerada por muitos como a mais séria candidata ao posto deixado por Susan Sontag. Como a falecida crítica americana, Beatriz Sarlo, aos 64 anos, tem estudos sobre as mais diversas áreas do conhecimento e ainda encontra tempo para editar a revista Punto de Vista. De Buenos Aires, Beatriz Sarlo falou com a reportagem do Estado sobre seu livro Tempo Passado, que a Companhia das Letras publica em co-edição com a Universidade Federal de Minas Gerais. A seguir, sua entrevista.

Você sustenta em Tempo Passado que o testemunho não é infalível, em particular numa sociedade pouco propensa à autocrítica, mas foram os depoimentos de militantes e familiares de desaparecidos peças fundamentais na transição democrática de países como a Argentina e o Brasil. Como mudar a forma de reconstrução do passado sem o testemunho de seus protagonistas?

A história se constrói com documentos. No caso de terrorismo de Estado ou de outras matanças, muitas vezes os responsáveis destroem todas as provas. Essa é uma preocupação presente desde a 2ª Guerra Mundial, quando os nazistas, ao abandonar os campos de concentração, destruíram as provas do que se passava lá dentro. Portanto, quando elas são destruídas, a única alternativa é o testemunho das vítimas, tanto para a reconstrução da história como para um possível processo judicial contra os criminosos. No caso argentino, foi possível reconstruir a disposição dos campos de concentração, como o de Córdoba, graças ao depoimento de alguns sobreviventes ali torturados. A pergunta que me faço é o que acontece quando o testemunho se contrapõe a outros documentos.

Ao privilegiar a memória, o mundo globalizado parece assegurar uma ordem dentro de sua fragmentação. A fixação por museus na sociedade pós-moderna não seria uma tentativa de transformar a memória em espetáculo?

Poderia dizer, como se diz na Europa, que vivemos num estado de memória, não apenas pelo auge dos museus como pela reconstrução de paisagens e aldeias supostamente originais. Ou seja, prevalece a idéia da teatralização da memória. No caso americano, formas materiais do passado são reconstruídas em parques temáticos como Williamsburg, em que empregados simulam ser cidadãos do século 18, ao vestir figurinos de época e trocar saudações como habitantes de uma cidadela colonial americana. Assim funciona o mercado e a reconstrução de certos conteúdos do passado, banalizados por ele.


Tempo Passado, Beatriz Sarlo, Companhia das Letras, 130 págs., R$ 33,50
[Estado de São Paulo, 01/04/2007]


A história interligada

Sem a força estilística de "Raízes do Brasil" ou "Casa-Grande & Senzala", "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado, ainda é um dos livros-chave para entender o país
A ciência econômica produzida nas nações industrializadas penetrou no Brasil por meio da universidade e, transformada em doutrina, passou a ser aceita sem nenhuma tentativa de confronto com a realidade.
A denúncia desse esforço de mimetismo, formulada por Celso Furtado (1920-2004) há meio século, é ainda atual. A inibição mental a que ele se referia, responsável pela importação de fórmulas, continua presente no debate sobre protecionismo, neoliberalismo ou globalização.
Se a lição não foi totalmente assimilada, a culpa não é de Furtado. Ele fez sua parte. Em "Formação Econômica do Brasil", agora reeditado [Cia. das Letras, 352 págs., R$ 39,50], buscou uma interpretação original do país.
Com o aparato teórico do keynesianismo (que defende a intervenção do Estado para corrigir as imperfeições do mercado) e a experiência obtida na Cepal (que propugnava um programa de desenvolvimento para a América Latina), propôs uma ambiciosa releitura da história econômica do Brasil, dos primórdios da colonização à industrialização do século passado.
O país que emerge das páginas de Furtado não é mais o dos ciclos econômicos estanques. Sem nunca deixar de ocupar uma posição secundária no cenário internacional, ele é mais complexo.
A cana-de-açúcar, o ouro, a borracha, o café, os ciclos estão todos lá, mas não mais como realidades regionais isoladas: eles se inter-relacionam, respondem à conjuntura mundial e, sobretudo, projetam uma perspectiva que chega ao século 21.
A economia de subsistência que se seguiu ao fim da empresa açucareira, por exemplo, ainda está na base de problemas econômicos e sociais do Nordeste.
A história econômica do Brasil poderia ter sido bem diferente.
Se o país esteve sempre a reboque das nações mais ricas, isso se deveu não apenas a características geográficas, históricas ou demográficas mas a opções em momentos decisivos. É ilustrativa a comparação que Furtado faz entre Brasil e Estados Unidos.
Na segunda metade do século 18, ambos os países receberam a influência do liberalismo de Adam Smith, que em 1776, mesmo ano da independência americana, publicou "A Riqueza das Nações". Mas a digeriram de forma diferente.
Nos EUA, onde além dos pequenos agricultores havia os grandes comerciantes, as idéias de Smith foram defendidas por Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro do país.
No Brasil, onde a elite era formada por grandes agricultores escravistas, tal tarefa coube a José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que influenciava a monarquia em assuntos econômicos. "Enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização [...], Cairu crê supersticiosamente na mão invisível [do mercado]", afirma Furtado.

Diferença de atitude
A comparação acentua uma diferença de atitude que ajudaria a determinar as trajetórias distintas do Brasil e dos EUA. De um lado, a interpretação de uma doutrina ao pé da letra; de outro, sua relativização.
Na pátria da livre iniciativa, o liberalismo foi bom quando conveniente para o desenvolvimento. Caso contrário, foi temperado por medidas protecionistas e estímulos à indústria.
Na história de Celso Furtado, nem sempre o Brasil fez o papel de ingênuo. Nos anos 30, superou a crise iniciada em 1929 mais rapidamente que os países ricos, ao decidir financiar a queima dos estoques de café, então o principal motor da economia.
"O valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava", escreve Furtado, identificando aí um embrionário esquema keynesiano.
O economista, no entanto, não tinha a menor ilusão. Não perdia de vista que tal política era apenas um subproduto da defesa dos interesses cafeeiros. Além disso, utilizando-se de ferramentas marxistas, Furtado, que não era marxista, introduziu o conceito de socialização dos prejuízos.
"O problema consistia menos em saber o que fazer com o café do que em decidir quem pagaria pela conta." Com a desvalorização da moeda em decorrência da crise, o grosso das perdas foi transferido para a coletividade, por meio da alta dos preços das importações.
Ainda assim, o saldo foi positivo. "A política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional.
Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados."
O leitor com alguma familiaridade com a história econômica do Brasil terá a impressão de já ter lido em outro lugar as grandes sínteses de "Formação Econômica do Brasil".
E provavelmente leu mesmo, porque elas estão espalhadas em livros, acadêmicos e de divulgação, e incorporadas ao repertório contemporâneo.
Escrito com intenção introdutória, o livro foi muito além da proposta inicial, mas manteve certa vocação didática.
A análise, apresentada em capítulos curtos, é acessível ao leigo, embora pressuponha o conhecimento dos fatos históricos e, na parte sobre a industrialização, o domínio de alguns conceitos-chave.
Comparado às grandes obras de formação do pensamento brasileiro, o clássico de Celso Furtado não tem a mesma força estilística de "Casa-Grande Senzala", de Gilberto Freyre, ou de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda. O que prende o leitor é o poder da argumentação.


OSCAR PILAGALLO é jornalista, autor de A História do Brasil no Século 20 (em cinco volumes, pela Publifolha).
[Folha de São Paulo, 01/04/2007]

Coreanas expõem ferida que Japão deixou

Mulheres usadas como escravas sexuais durante a Segunda Guerra contam à Folha horrores vividos sob a ocupação japonesa

Premiê resiste a assumir responsabilidade do Japão e faz ressentimento histórico aflorar; "dama de conforto" espera "perdão de joelhos"

Jung Yeon-je -14.mar.2007

Gil (segunda a partir da esq.), e Lee (terceira) protestam contra
o Japão em Seul; uma foi capturada com 12 anos, a outra com 16



MARCELO NINIO, A REDAÇÃO

Cinco coreanas, todas com mais de 75 anos, dividem uma casa em Seul e terríveis lembranças da Segunda Guerra Mundial. Elas estão entre as cerca de 200 mil mulheres usadas como escravas sexuais em países asiáticos sob ocupação militar japonesa .
A casa simples, de dois andares, localizada numa vila tranqüila perto do centro da capital sul-coreana, é mantida pelo Conselho de Mulheres Recrutadas para Escravidão Militar pelo Japão, uma associação que cuida das sobreviventes e luta para que seu sofrimento seja denunciado e reconhecido.
Segundo seus registros, sobrevivem na Coréia 123 "damas de conforto" -o incômodo eufemismo japonês pelo qual as mulheres seqüestradas e estupradas ficaram conhecidas.
Delicados trabalhos manuais feitos por crianças enfeitam as paredes da associação. Uma das idosas, de 90 anos, desce lentamente a escada da casa, enquanto outras duas, dez anos mais jovens, recebem a reportagem da Folha com sorrisos e suco de gergelim de caixinha. O silêncio da vizinhança e um cheiro doce de chá verde dominam o ambiente.
O sorriso desaparece quando elas começam a contar suas histórias. Gil Won-ok tinha 12 anos quando foi levada por militares japoneses de sua casa, no vilarejo de Heechun, hoje na Coréia do Norte. O ano era 1940. Os militares disseram que ela seria levada para trabalhar em uma fábrica.
Gil foi parar em uma base militar em Harbin, no nordeste da China. Após meses de serviço sexual aos soldados japoneses, que incluiu rotineiros atos de violência, ela contraiu uma doença venérea e foi libertada. A doença, soube depois, a deixou estéril para sempre.
O pesadelo não tinha acabado. Em 1942 Gil voltou a ser capturada pelos japoneses e levada a outra base militar na China, onde continuou sofrendo abusos até 1945, quando a Coréia se tornou independente. "Ninguém imagina o medo e a dor que nós sentíamos diante dos soldados, muitos bêbados e violentos", conta Gil, hoje com 79 anos, em voz baixa. "Ainda tenho pesadelos."
A antiga ferida foi reaberta recentemente pelas polêmicas declarações do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe. Contrariando as evidências históricas, inclusive de arquivos militares do país, Abe disse não haver prova da existência dos bordéis de prisioneiras do Exército Imperial. O desmentido causou uma onda de indignação, dos antigos países ocupados até o principal aliado do Japão, os Estados Unidos.
A declaração de Abe esquentou o debate no Congresso americano em torno de uma resolução que exige um pedido completo de desculpas do Japão. Pressionado, Abe manifestou apoio a uma declaração oficial de 1993, na qual o governo japonês admitiu que os seqüestros ocorreram e manifestou remorso. Nesta semana o premiê voltou a pedir desculpas, mas se negou a assumir a responsabilidade do Estado.
O recrutamento forçado de mulheres asiáticas pelo Exército Imperial Japonês para prostituição -principalmente coreanas e chinesas- é um dos episódios mais dolorosos da expansão nipônica na região na primeira metade do século 20.
As declarações de Abe, primeiro líder japonês nascido após a Segunda Guerra, despertaram antigos ressentimentos nos vizinhos e chamaram a atenção para o ressurgimento do nacionalismo no país.
"Não queremos dinheiro nem monumentos", diz Lee Yong-soo, 80. Capturada aos 16 anos, ela ficou até os 18 numa base de camicases em Taiwan. Levada com quatro amigas, Lee custou a entender que partilhara o mesmo destino de milhares de outras mulheres.
"Mal sabia ler e não tinha idéia de que estávamos em guerra. Pensava que só eu e minhas amigas estávamos passando por aquilo. E me perguntava: "por que nós?'", conta Lee, que só no início da década de 90, com a divulgação dos relatos de outras "damas de conforto", decidiu contar sua história e se engajar.
Desde então, já deu diversos depoimentos, nos EUA e no Japão -em japonês fluente, que aprendeu durante a ocupação, quando o idioma coreano foi proibido no país.
Mais de 60 anos após o pesadelo, o que a levaria a dar sua luta por encerrada? "Só ficarei satisfeita quando o premiê japonês vier a Seul e pedir desculpas de joelhos", diz Lee, evocando o famoso gesto de arrependimento feito em Auschwitz, pelo então chanceler da Alemanha, Willy Brandt, em 1970.

[Folha de São Paulo, 01/04/2007]

Argentina endurece no aniversário das Malvinas

Kirchner politiza os 25 anos da guerra, enquanto Londres mostra desinteresse

Nenhum membro da família real inglesa participará das celebrações pela vitória de 1982, que selou o destino da ditadura militar argentina

BRUNO LIMA, DE BUENOS AIRES / MARCO AURÉLIO CANÔNICO, DE LONDRES

"Máximas de hoje para todo o país: Ilhas Malvinas, 7ºC. Mínima: 5ºC." A informação é da TV Argentina e está lá todos os dias, várias vezes por dia. Não importa o canal -as ilhas estão em todos eles. Nos jornais, a mesma história. Só o que muda é a temperatura.
Um quarto de século após a Guerra das Malvinas e 174 anos depois de perder o domínio sobre as ilhas, a Argentina segue vivendo como se as Malvinas fossem ainda parte do país. "Elas são parte do país. Só que estão tomadas pelos ingleses", diz o ex-soldado e jornalista argentino Edgardo Esteban, autor de um livro sobre a guerra.
O que mudou, neste ano, foi a temperatura política. Com eleição para a Casa Rosada em outubro e com a efeméride dos 25 anos do combate (iniciado em 2 de abril de 1982 e finalizado, com a vitória inglesa, em 14 de junho daquele ano), o presidente argentino, Néstor Kirchner, endureceu sua posição e cancelou um acordo de cooperação com o Reino Unido.
Abandonando o furor argentino e atravessando o Atlântico, é possível descobrir, nas ruas de Londres, um rarefeito interesse pelo mesmo arquipélago.
Perdidas em meio a tantos territórios britânicos, as ilhas Falkland, como o Reino Unido as chama, nem mesmo são um ponto turístico badalado como é Bermudas ou Ilhas Virgens.
O desinteresse, porém, não tem resquício de culpa imperialista: a maioria da população não tem dúvidas de que a guerra foi necessária e de que o Reino Unido estava correto.
Na semana passada, em entrevista ao seu site oficial, o premiê Tony Blair afirmou que a decisão de Margaret Thatcher de enviar forças militares às ilhas, após sua tomada pelos argentinos em abril de 1982, exigiu "muita coragem política" e que ele teria feito o mesmo.
"Quando olho para trás, não tenho dúvida de que foi a coisa certa a fazer", disse Blair, o único premiê britânico a visitar a Argentina desde o conflito. A declaração, que irritou a Casa Rosada, não causaram tanta espécie em terras inglesas.

Conflito "tolo"
Um dos poucos britânicos críticos da guerra, o jornalista Max Hastings, autor de dois livros sobre o tema, afirma que, ainda que na época a ação tenha parecido sensata, ele diz ver hoje o conflito como algo "tolo".
"A única lição da guerra foi que o sucesso justifica tudo. Se Thatcher tivesse perdido, seu governo teria caído", disse Hastings no jornal britânico "The Guardian". "Se o Iraque fosse hoje pacífico, ninguém estaria ligando para a ausência das armas de destruição em massa."
Na Argentina, o ditador Leopoldo Galtieri (1926-2003) de fato deixou o poder com o fracasso na guerra. O objetivo era dar sobrevida à ditadura, mas a democracia veio em 1983.
"Foi um gesto egoísta, vil, da Junta Militar, que não considerou a questão das Malvinas em si, mas a possibilidade de perpetuar-se no poder", diz Ernesto Alonso, 44, que foi à guerra aos 18 anos e milita em um centro de ex-combatentes.
Para Thatcher, ao contrário, a guerra pôde de reverter uma crise de popularidade. O episódio vai virar filme, segundo anúncio das produtoras Pathé (que fez "A Rainha", de Stephen Frears) e BBC.
A Constituição argentina estabelece as Malvinas como "um objetivo permanente e irrenunciável do povo argentino".
A Argentina reclama que o Reino Unido ignora as recomendações da ONU e se recusa ao diálogo. O Reino Unido diz que não dialoga até que os moradores da ilha -a maioria descendente de britânicos- decidam seu futuro.
"É claro que eles não vão optar pela Argentina. São britânicos. Estão ali porque os ingleses expulsaram os argentinos", diz o deputado argentino Jorge Argüello, que preside o Observatório Parlamentar Questão Malvinas.
O deputado, governista, também critica os festejos planejados pelos britânicos para o 14 de junho. "A Grã-Bretanha está tentando tapar, com um sucesso de 25 anos atrás, um fracasso de agora no Iraque", declarou.
De acordo com Derek Twigg, representante dos veteranos no Ministério da Defesa inglês, as celebrações "não serão triunfantes". "Vamos reconhecer as perdas dos argentinos também", disse. Nenhum representante sênior da pasta ou da família real irá às ilhas, decisão que irritou os veteranos ingleses, sobretudo porque o príncipe Andrew, irmão de Charles, esteve na guerra.
A celebração oficial britânica -que coincide com a festa pelo aniversário oficial da rainha, em 16 de junho-, durará quatro dias, na Inglaterra e nas ilhas, com desfiles de veteranos e da cavalaria, e transmissões simultâneas de eventos entre Londres e as Falklands.

[Folha de São Paulo, 01/04/2007]