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Obama e o capitalismo corsário

Clóvis Rossi

O setor púbico salva sempre o privado, que "agradece" atacando cofres públicos e, no percurso, destruindo países

HÁ ALGO de profundamente errado na governança global e na maneira como está funcionando o capitalismo quando os cofres públicos se abrem regularmente para salvar o setor privado, mas o setor privado conspira abertamente para arrombar ainda mais os cofres públicos -e, no percurso, destruir países.
Refiro-me às ajudas públicas para evitar o colapso de empresas privadas e, por extensão, da economia, durante a crise ainda em curso.
Mas me refiro também ao recente caos aéreo na Europa. Há indícios de que os governos sairão mais cedo do que tarde em ajuda das empresas aéreas. O argumento para tanto foi dado por Giovanni Bisignani, diretor-geral da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo):
"É uma situação extraordinária à que chegamos não por conduzir mal nossos negócios mas por coisas que escapam a nosso controle".
De acordo: erupção de vulcões escapam de fato ao controle das companhias aéreas. Mas o argumento deveria ser usado também no caso dos governos agora sob ataque continuado dos corsários do sistema financeiro. Antes que alguém se queixe da expressão "corsários", passo a palavra a um certo Barack Obama, em seu discurso da quinta-feira:
"Acredito no poder do livre mercado. Acredito em um setor financeiro forte que ajude as pessoas a levantar capital e conseguir empréstimos e investir suas poupanças. Mas um mercado livre jamais deveria ser uma licença para tomar o que quer que possa, de qualquer maneira que possa. Foi isso o que aconteceu com excessiva frequência nos anos que levaram a esta crise".
Não é a descrição de um "modus operandi" de piratas? Volto ao fio da meada: nem todos os governos que se endividaram geriram mal seus negócios. Foram forçados pela dimensão da crise ou das tais "coisas que escapam a nosso controle", para usar o argumento da Iata.
Mas o setor privado, em vez de ajudar a apagar o fogo, vai ao ataque, derruba a Grécia, volta a mira para Portugal agora e, amanhã, sabe-se lá para que país.
É verdade que o governo grego anterior exagerou nos gastos e ainda por cima falsificou os dados sobre o deficit. Mas é igualmente verdade que foi auxiliado na maquiagem por firmas financeiras, que, no entanto, detêm o poder de vida ou morte sobre as finanças públicas.
E foram elas que "conduziram mal os seus negócios", de que dão prova ao menos dois fatos recentes:
1 - A Goldman Sachs está sendo investigada por manobras com instrumentos opacos de investimento. George Soros, que atua às vezes como corsário, mas tem agudo senso autocrítico, comenta no "Financial Times": "Seja a Goldman culpada ou não, a transação em questão claramente não tem benefício social".
2 - Uma investigação do Senado americano mostrou que as duas principais agências de avaliação de risco, a Standard&Poor's e a Moody's, foram indevidamente influenciadas por banqueiros de investimento que pagam suas taxas. Ignoraram propositadamente sinais de fraude na indústria de empréstimos na caminhada rumo à crise.
Não obstante, são avaliadoras como essas que determinam ou influenciam no preço que o Tesouro grego tem que pagar a quem compra seus papéis. Não seria mais correto e justo que os governos é que cobrassem da indústria financeira uma taxa para tapar os rombos que elas ajudaram a criar, sem qualquer "benefício social"?

[Folha de São Paulo, 24/04/2010]

Nova lei do Arizona reacende batalha pela reforma da imigração

Randal C. Archibold, em Phoenix, Arizona (EUA)
A governadora do Arizona, Jan Brewer, sancionou em lei na sexta-feira o projeto mais duro do país sobre imigração ilegal; sua meta é identificar, processar e deportar os imigrantes ilegais.

A medida provocou protestos imediatos e reacendeu a batalha divisora em todo o país em torno da reforma da imigração.

Mesmo antes da governadora sancionar a lei em uma coletiva de imprensa ocorrida à tarde aqui, o presidente Barack Obama a criticou fortemente.

Falando em uma cerimônia de naturalização para 24 militares do serviço ativo no Jardim das Rosas da Casa Branca, ele pediu por uma reforma federal das leis de imigração, que os líderes do Congresso disseram estar preparando para tratar em breve, para evitar “a irresponsabilidade dos outros”.

A lei do Arizona, ele acrescentou, ameaça “minar as noções básicas de justiça que prezamos como americanos, assim como a confiança entre a polícia e nossas comunidades, o que é crucial para a manutenção de nossa segurança”.

A lei, que defensores e críticos dizem ser a medida de imigração mais ampla e mais rígida em gerações, tornaria o não porte de documentos de imigração em crime e daria à polícia amplo poder para deter qualquer um suspeito de estar no país ilegalmente. Os oponentes a chamam de um convite aberto ao molestamento e discriminação contra latinos, independente de seu status de cidadania.

O debate político que levou à decisão de Brewer e as críticas de Obama à lei –presidentes muito raramente discutem uma legislação estadual– ressaltam o poder do debate da imigração nos Estados ao longo da fronteira mexicana. Ele pressagia as discussões polarizadas que aguardam o presidente e o Congresso quando tratarem da questão nacionalmente.

O Ministério das Relações Exteriores do México disse em uma declaração que teme a respeito dos direitos de seus cidadãos e das relações com o Arizona. O arcebispo católico de Los Angeles chamou de nazismo o poder das autoridades de exigir documentos.

Enquanto centenas de manifestantes se reuniam, em grande parte pacificamente, na praça do Capitólio, a governadora, falando em um prédio do governo a poucos quilômetros de distância, disse que a lei “representa outra ferramenta para nosso Estado usar para resolvermos uma crise que não criamos e que o governo federal se recusa a consertar”.

A lei entrará em vigor 90 dias após o término do ano legislativo –o que significa em agosto. A lei provavelmente será contestada na Justiça.

Os latinos, em particular, que foram há não muito tempo cortejados pelo Partido Republicano como um bloco eleitoral indefinido, se mobilizaram contra a lei como sendo uma receita para discriminação étnica e racial. “A governadora Brewer cedeu à margem radical”, disse uma declaração do Fundo Mexicano-Americano de Defesa Legal e Educação, prevendo que a lei criaria “uma espiral de medo, desconfiança na comunidade, maior criminalidade e processos legais caros, com repercussões nacionais”.

Apesar de ser comum a polícia exigir documentos em metrôs, estradas e em lugares públicos em alguns países, como a França, o Arizona é o primeiro Estado a exigir que os imigrantes cumpram a exigência federal de portar documentos de identidade legitimando sua presença em solo americano.

Brewer reconheceu as preocupações dos críticos, dizendo que trabalhará para assegurar que a polícia tenha treinamento apropriado para executar a lei. Mas ela apoia os argumentos dos autores da lei, de que ela fornece uma ferramenta indispensável para a polícia em um Estado de fronteira que é um dos principais ímãs de imigração ilegal. Ela disse que a discriminação racial não será tolerada, acrescentando: “Nós temos que confiar em nossa polícia”.

A governadora e outros líderes eleitos estão sob intensa pressão política aqui, exacerbada pela morte de um fazendeiro no sul do Arizona, supostamente por um contrabandista, duas semanas antes da votação do projeto de lei pelo Legislativo estadual. Sua morte foi mencionada na quinta-feira por Brewer, enquanto ela anunciava um plano que pede ao governo federal para que posicione tropas da Guarda Nacional na fronteira.

O presidente George W. Bush tentou realizar uma reforma abrangente, mas fracassou quando seu próprio partido ficou dividido em torno do assunto. Novamente, os republicanos que estão enfrentando concorrência da direita nas primárias, incluindo Brewer e o senador John McCain, estão sob tremenda pressão para apoiar a lei do Arizona, conhecida como SB 1070.

McCain, que está enfrentando nas primárias um adversário que tem a imigração como tema de campanha, só demonstrou apoio à lei horas antes do Senado estadual aprová-la, na tarde de segunda-feira. Brewer, mesmo após a aprovação do projeto de lei pelo Senado, se manteve em silêncio sobre se o sancionaria. Apesar da expectativa de que ela o faria, dado sua disputa nas primárias, ela se recusou a declarar sua posição até mesmo em um jantar na quinta-feira, para uma organização latina de serviço social, Chicanos Por La Causa, onde vários membros presentes pediram pelo veto.

Entre outras coisas, a medida do Arizona é uma rejeição extraordinária a Janet Napolitano, que vetou repetidamente uma legislação semelhante como governadora democrata do Estado, antes de ser nomeada secretária de Segurança Interna por Obama.

A lei abre um profundo racha no Arizona, com a maioria de milhares de eleitores que telefonaram ao gabinete da governadora pedindo que ela a vetasse.

Nos dias que antecederam a decisão de Brewer, o deputado federal Raul M. Grijalva, um democrata, pediu por um boicote da convenção em seu Estado.

O projeto de lei, de autoria de Russell Pearce, um senador estadual e um agitador em questões de imigração, tem vários artigos.

Ele exige que os policiais, “quando viável”, detenham as pessoas que eles suspeitem, de forma razoável, que estejam no país ilegalmente e verifiquem seu status junto às autoridades federais, a menos que fazê-lo atrapalhe uma investigação ou um tratamento médico de emergência.

A lei também transforma em crime estadual –uma contravenção– não portar documentos de imigração. Além disso, ela permite que as pessoas processem as prefeituras ou agências caso acreditem que a lei estadual ou federal de imigração não esteja sendo cumprida.

Estados por todo o país propuseram ou aprovaram centenas de projetos de lei tratando da imigração desde 2007, a última vez em que um esforço federal para reforma da lei de imigração fracassou. No ano passado, houve um número recorde de leis aprovadas (222) e resoluções (131) em 48 Estados, segundo a Conferência Nacional dos Legislativos Estaduais.

A perspectiva de mergulho em um debate nacional de imigração está sendo cada vez mais discutida no Capitólio, promovida em parte pelas recentes declarações do senador Harry Reid, democrata de Nevada e líder da maioria, de que pretende apresentar uma legislação no plenário do Senado após o Memorial Day (dia em homenagem aos militares mortos no serviço ativo, celebrado na última segunda-feira de maio).

Mas apesar do debate da imigração poder ajudar a mobilizar os eleitores latinos e fornecer benefícios políticos para os democratas em dificuldades, que estão buscando a reeleição em novembro –como o próprio Reid– ele também poderia mobilizar os eleitores conservadores.

Também poderia desviar a atenção dos democratas de outras prioridades, como a medida de energia que a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, descreveu como sendo seu assunto principal.

Reid se recusou a dizer na quinta-feira que a lei de imigração é mais importante que a de energia. Mas ele a chamou de um imperativo: “O sistema está quebrado”, ele disse.

Pelosi e o deputado Steny H. Hoyer, democrata de Maryland e líder da maioria, disseram que a Câmara discutirá a política de imigração apenas se o Senado produzir um projeto de lei primeiro.

Tradução: George El Khouri Andolfato
[The New York Times News Service, 25/04/2010]

Quem manda na internet?

David Alandete

Quem manda na rede? As empresas de telefonia e cabo oferecem conexões pagas à internet. Os produtores de conteúdo, como Google ou Yahoo, contribuem com a informação, financiando-se com a venda de publicidade. Os usuários pagam pelo acesso à rede e com suas visitas geram tráfego, aumentando as receitas publicitárias. Nessa cadeia de serviços, quem administra o tráfego online? Quem tem o direito de dar mais ou menos velocidade às conexões? De quem é a internet?

Por enquanto, os que podem administrar fisicamente a rede são os provedores de internet. Na Espanha, são empresas como a Telefónica, que oferecem conexões e cobram por elas. Com a generalização da rede, esses provedores denunciam que lhes é negada uma oportunidade de negócio: os usuários usam a internet como desejam, os provedores de conteúdo enriquecem às suas custas, e apesar disso suas receitas se mantêm fixas.

Esse incômodo foi manifestado pelo presidente da Telefónica, César Alierta, em fevereiro passado. "É evidente que as máquinas de busca na internet utilizam nossa rede sem pagar nada, o que é uma sorte para eles e uma infelicidade para nós. Mas também é evidente que isto não pode continuar. As redes são implantadas por nós; os sistemas são feitos por nós; o serviço pós-venda é feito por nós. Isto vai mudar, estou convencido", ele disse.

O governo da França lançou uma pesquisa popular para saber a opinião dos cidadãos a respeito, e Bruxelas espera debater um modelo para a Europa antes do verão.

Alierta representa os interesses dos provedores de conexão, que não só pedem que se cobre das empresas de conteúdo, como também reclamam a capacidade de administrar suas redes, mesmo que isso represente certa discriminação contra alguns usuários. Já existe um pronunciamento judicial sobre o assunto nos EUA. Em 6 de abril um tribunal decidiu que o governo não tem o direito de obrigar as empresas de telefonia e cabo a serem neutras no tratamento dado a seus clientes. Isto é, um provedor (como a Telefónica ou, nos EUA, a Comcast) tem o direito de discriminar um usuário que utilize programas que ocupem muita largura de banda.

A Comcast, maior operadora de cabo dos EUA, começou em 2007 a desacelerar o tráfego de usuários que executam frequentemente programas de troca de arquivos P2P. Um deles, Raam Dev, de 28 anos, fez um teste com sua conexão. Era cliente da Comcast havia quatro anos. Começou a utilizar o programa de troca de arquivos BitTorrent e notou uma grande lentidão. Decidiu usar um programa para medir a velocidade dos downloads. Passaram 18.878 para 4.500 Kbps (kilobits por segundo), depois de baixar um arquivo legal através de um torrent (um programa de acesso a páginas de download).

"Repeti a experiência meia dúzia de vezes", ele explica. "Em cada ocasião minha conexão desacelerou de forma considerável, depois de passar 4 ou 5 minutos descarregando um torrent, e depois voltava à normalidade depois de 20 ou 25 minutos". Há anos ele deixou de ser cliente da Comcast, mas continua indignado por essa política. "É como se a companhia telefônica distorcesse as ligações quando seus clientes falam de assuntos de que a firma não gosta. É absurdo."

É a mesma opinião da agência do governo americano que regulamenta as comunicações, a Federal Communications Commission (FCC), que em 2008 advertiu verbalmente a Comcast por desacelerar conforme o tipo de tráfego. O então presidente da comissão, Kevin Martin, disse: "Alguém gostaria que o serviço de correio abrisse sua correspondência e decidisse que não quer ter o incômodo de entregá-la, devolvendo-a ao remetente com a desculpa de que não encontrou o destinatário?"

A Comcast se justificou dizendo que essas medidas correspondiam a uma mera "gestão da rede". "A grande maioria dos 9 bilhões de protocolos de controle de transmissão de redes P2P que ocorrem na rede da Comcast não são afetados por essa medida", explicou Sena Fitzmaurice, porta-voz da firma. "Só entre 6% e 7% de nossos clientes utilizam P2P semanalmente."

Ao longo dos anos, criaram-se dois campos na batalha pela neutralidade na internet. De um lado, as empresas provedoras de conteúdo online como Google, Amazon ou Skype, apoiadas pelo governo Obama. Por outro, a Comcast e outros grandes provedores, como Verizon ou AT&T, que consideram que a infraestrutura é sua e podem fazer o que quiserem.

Até os pais fundadores da internet se manifestaram, enviando em outubro uma carta aberta à FCC. "Acreditamos que as propostas de neutralidade na rede de não discriminação e transparência são componentes imprescindíveis de uma agenda de políticas públicas centrada na inovação de que este país precisa", disseram, entre outros, o vice-presidente da Google, Vint Cerf.

Durante meses a batalha parecia favorecer um lado. A neutralidade na rede se impunha. A tal ponto que em 22 de outubro passado a FCC apresentou seus princípios para conseguir a neutralidade total na internet. Entre suas propostas mais inovadoras, destacam-se três: que os provedores de internet não possam impedir que os usuários compartilhem informação legal na rede; que respeitem a livre concorrência entre provedores de conteúdo, sem favorecer uns ou outros, e que informem ao governo e a seus clientes como administram suas redes.

Obama disse, dias depois, que não poderia estar mais de acordo. "Esse é o papel do governo: investir para incentivar a inovação e impor normas de senso comum que assegurem que existe um campo de jogo nivelado."

A ascensão da neutralidade parecia inevitável, até que no último dia 6 um juiz de Washington sentenciou que o governo não tem o direito de ditar aos provedores de banda larga como devem administrar suas redes, e que a FCC havia se excedido em sua competência. Há um motivo principal para isso: segundo a lei de telecomunicações de 1996, a internet é um serviço de informação, e não de telecomunicações. A FCC só pode regulamentar serviços de telecomunicações (telefonia, emissão de rádio, satélite, cabo coaxial).

As firmas telefônicas e de cabo se felicitaram por essa vitória jurídica. Nem o governo nem a FCC reagiram ainda. Os líderes democratas no Congresso, sim. E anunciaram que tentarão reclassificar a internet e colocá-la na categoria da telefonia. Entre eles, o senador John F. Kerry, de Massachusetts: "A FCC deve ter autoridade legal sobre isso, e uma mudança semelhante seria coerente com a história das telecomunicações nos EUA".

"Pelo contrário", opina o pesquisador associado da faculdade de direito da Universidade de Stanford Larry Downes. "Se o governo ganhar a capacidade de regulamentar a internet, poderá impor tarifas e preços, lastreando o mercado. Esse tipo de regulamentação se aplicava no século passado, quando havia um monopólio legal na telefonia, algo que sucedeu até 1984. Além disso, implica que os governos estatais e locais também podem cobrar impostos e tarifas, fazendo que os serviços encareçam."

"Se uma coisa está funcionando, por que modificá-la?", explica Downes. "Apesar desses casos isolados, a internet funciona de forma imparcial. De nossas conexões, podemos ter acesso a qualquer site do mundo, desde que não haja censura. É anacrônico que o governo federal queira erigir-se como um policial da rede, tentando solucionar um problema antes que ele exista."

Por motivos comerciais, os provedores têm a mesma opinião. Em fevereiro, duas das grandes operadoras, AT&T e Verizon, redigiram uma carta aberta na qual diziam que reclassificar os serviços de internet seria uma medida "extremista". "Essa drástica mudança na normativa seria insustentável legalmente e no mínimo afundaria a indústria em anos de litígios e caos regulatório". Foi um aviso.

O caso da Comcast, no entanto, é isolado. Esse tipo de desaceleração ou bloqueio das conexões só ocorreu com outra empresa, a Madison River Communications, em 2005. "O risco de que uma companhia desacelere o tráfego de seus usuários está sendo exagerado", opina Robert Litan, economista e advogado do Instituto Brookings, em Washington. "O mercado de internet nos EUA é muito competitivo. As empresas oferecem serviços cada vez melhores por preços cada vez mais módicos. Só pela má publicidade que isso representa, é pouco provável que a Comcast volte a adotar uma medida semelhante."

Então, esse é um debate meramente teórico? É algo que só vai definir como os cidadãos navegam pela rede? Os provedores de conexão e muitos analistas opinam que não, e apontam para um setor específico que abriu o debate e se beneficiará de uma normativa como a proposta por Obama: as firmas que oferecem conteúdo, como Google, Microsoft, Yahoo ou Amazon. Pode ser que esse apoio angélico à neutralidade, à liberdade, à transparência na internet esconda interesses comerciais, dizem.

"As empresas que criam aplicativos, como Google, Amazon ou Ebay, são as grandes beneficiárias da neutralidade", explica Downes, de Stanford. "Com essas iniciativas, se garantem de forma preventiva que ganharão dos provedores de conexão. Na realidade, funcionam como um hobby: forçam um tipo de legislação para se beneficiar dela. Mas a verdade é que o controle governamental da rede só prejudicaria a competitividade no mercado. Que interesse terão as empresas de cabo e telefonia em melhorar as infraestruturas se não puderem obter um benefício adicional por isso?" Isto é, se Google e outras pagarem para usar a rede, a Comcast e a Telefónica terão mais incentivos para melhorar suas infraestruturas, beneficiando finalmente o usuário.

As organizações de cidadãos que defendem a imposição da neutralidade o fazem citando outras possíveis consequências. "Entendemos que as empresas querem fazer dinheiro", explica Liz Rose, porta-voz da Free Press, que processou a Comcast em 2007 pelo caso que agora foi decidido em Washington. "O que queremos é que os consumidores tenham direitos. Nenhuma empresa telefônica ou de cabo deveria censurar o que os internautas comunicam a seus amigos. Segundo estão as coisas hoje, podem fazê-lo. A Comcast não deveria poder censurar crenças políticas na rede, e o é. Não deveria poder espionar as comunicações de seus usuários e vender a informação para empresas publicitárias."

A menção à publicidade não é casual. E pode ser que eventualmente o debate da neutralidade na rede se concentre nas receitas de publicidade. A Comcast está em uma posição comprometida. Em dezembro, a General Electric anunciou sua intenção de lhe vender parte do conglomerado multimídia NBC. Isso significa que a maior operadora de cabo dos EUA também terá uma grande plataforma de conteúdos, que inclui redes de televisão como NBC, Bravo ou SyFy.

Com isto, se a Comcast decidir priorizar um tráfego em suas redes sobre outro, e se tiver o direito de fazê-lo, quem a impedirá de fazer que o conteúdo de seus canais e seus sites seja carregado mais rapidamente que os da concorrência, assim obtendo mais receitas de publicidade?

Nesse delicado equilíbrio que é a arquitetura comercial da rede, o conceito de neutralidade é tão complexo quanto mutável. Diz servir ao cidadão, mas não é um assunto exclusivamente de liberdades civis. Baseia-se em interesses econômicos subjacentes. Em meio à polêmica, os EUA poderão se tornar um exemplo de intervenção governamental, coisa que não ocorre com muita frequência.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 25/04/2010]

Bagdá quer voltar a ser a capital cultural do mundo árabe

Ulrike Putz, em Bagdá (Iraque)

Durante décadas Bagdá foi a capital cultural do mundo árabe. A guerra mudou tudo isso e só agora a cena artística iraquiana está lentamente voltando a florescer. Enquanto os artistas lutam com as consequências do conflito e com a falta de patrocinadores, dizem que o estado da arte está intimamente ligado ao estado de seu país.

Sentado em seu jardim, Qasim Sabti fala veementemente sobre os terroristas “filhos da puta”, que repetidas vezes ameaçaram atacar sua galeria de arte no centro de Bagdá. Ele também reclama dos “pequenos homens cinza” no Ministério da Cultura, que colocam o pouco dinheiro que restou para as artes no Iraque diretamente em seus bolsos. Mas, sobretudo, ele reclama da “invasão das pessoas sem cultura”, que segundo Sabti é a pior tragédia do Iraque. “Primeiro, os americanos ocuparam nosso país. E a multidão veio logo atrás deles. Qualquer um que soubesse andar saiu do interior e veio para Bagdá. Essas pessoas destruíram tudo o que fazia de Bagdá a capital cultural do mundo árabe.”

Pode-se considerar o discurso de Sabti como nonsense e elitista: a maioria do povo iraquiano têm preocupações mais prementes do que o declínio da arte no país. A guerra, o terrorismo, a pobreza e o desemprego levaram milhões de pessoas para as cidades iraquianas onde elas esperam encontrar empregos e um pouco de segurança. Elas não estão muito preocupadas se sua presença nas cidades perturba os árbitros da cultura como Sabti.

Mas tampouco, Sabti não é qualquer um. O pintor e dono de galeria com excelentes conexões com o Ocidente, é uma espécie de autoridade não oficial para os artistas visuais do Iraque. Durante a tarde, ele se encontra com escultores, pintores, dramaturgos e poetas de Bagdá no jardim de sua galeria, a Hewar. Tomando chá e fumando um narguilé, eles falam sobre seus colegas e colecionadores que foram para o exílio, e sobre os problemas de dinheiro que afetam a maioria dos que permaneceram no Iraque.

Quer ver arte em Bagdá? Primeiro seu carro passará por uma vistoria antibombas
O exército iraquiano se certifica de que esses homens sejam capazes de se reunir em segurança. Como em muitos bairros da capital iraquiana, o bairro em que a galeria de Sabti está localizada é quase que hermeticamente fechado. Quem quiser ver arte em Bagdá precisa passar por vários postos de checagem e ter o carro vistoriado em busca de explosivos por soldados armados. No quintal de Sabti só dá para dizer que há uma guerra acontecendo por causa do barulho dos helicópteros militares norte-americanos voando acima e interrompendo as conversas por alguns segundos.

E sem compradores, não há comissões. Ser pago por seu trabalho sempre foi um problema para os artistas de todo o mundo. Mas para os artistas iraquianos, o conceito é relativamente recente – e é motivo de reclamações. Durante todo o século 20, o Iraque era visto como o centro cultural do mundo árabe. Durante o governo de Saddam Hussein, Bagdá era a Meca da criatividade árabe. O ditador gostava de ver a si mesmo homenageado em esculturas e pinturas e encorajava os artistas que tinham talento. Os cursos de arte eram gratuitos; até as telas e tintas importadas da França eram gratuitas. Se você fosse leal ao regime, tinha um meio de vida e recebia comissões regulares do governo ou um cargo de professor. Além disso, a rica classe média de Bagdá sentia que era chique colecionar a arte iraquiana.

Invasores internacionais se tornaram fãs de arte
Com a invasão das tropas norte-americanas em 2003, a cena de arte em Bagdá entrou em colapso. Os colecionadores fugiram do país e os pintores e escultores que tinham dinheiro para isso também fugiram. Entretanto, durante os primeiros anos da guerra, Sabti diz que muitos artistas locais ainda conseguiam sobreviver da arte. “Primeiro, os funcionários da ONU, jornalistas, e até soldados norte-americanos vinham à minha galeria para comprar arte”, explica. Com preços que variavam de US$ 800 a US$ 2.000 (entre R$ 1.400 e R$ 3.500) por uma pintura a óleo, muitos dos invasores encontraram um lugar em seus corações para a arte iraquiana.

Mas então veio o terrorismo e com ele uma queda nas vendas. “Em 2005, os estrangeiros não conseguiam mais se mover livremente. E desde então os negócios praticamente pararam”, diz Sabti. Culpar o povo iraquiano por isso, como faz Sabti, não é exatamente lógico. Mas a triste verdade permanece: a cultura de elite do Iraque diminuiu nos últimos anos.

“Bagdá pode se tornar uma cidade sem rosto”, diz o escultor e escritor Ahmed Abdullah Fadaam. As estátuas públicas e esculturas são sinais do caráter de uma nação, observa o artista. “Em Bagdá, os antigos trabalhos de arte estão sendo destruídos porque foram encomendados por Saddam. Mas, ao mesmo tempo, nada novo está sendo encomendado. O Iraque tornar-se-á uma sociedade sem face”, alerta ele.

Esculturas famosas retiradas por causa de mamilos à mostra
Com a ajuda de alguns colegas, Fadaam está tentando salvar o que pode. Durante anos a estátua do conhecido escultura Khalid Al-Rahal, chamada Virgem dos Banhados, ornamentou a praça central da Cidade Sadr, um subúrbio pobre de Bagdá. De acordo com Fadaam, quando os islamitas tomaram o poder, eles retiraram a figura feminina “porque seus mamilos podiam ser vistos vagamente”. Ele e outras pessoas que pensavam como ele tiveram dificuldades de convencer outros iraquianos a não derreter a escultura de bronze porque ela havia sido feita por um dos mais importantes artistas iraquianos do século 20. “Agora ela está juntando poeira no porão do Ministério da Cultura”, diz Fadaam.

Fadaam é um homem sensível e atento. Suas reflexões sobre a vida no Iraque, que foram encomendadas pela Universidade da Carolina do Norte, receberam vários prêmios internacionais. Atualmente, ele está transformando seus relatos, que foram originalmente concebidos como transmissões de rádio, num diário ilustrado para uma editora de quadrinhos.

A escultura oferece a Fadaam uma forma de mostrar tudo o que ele não quer expressar em sua escultura. “Logo que a guerra começou, parei de esculpir”, disse ele – porque não queria que ninguém tivesse de olhar para o terror da guerra numa peça de arte tamanho real. “Que bem faz eu traduzir meu horror, meu medo, em esculturas? Eu só levaria o observador ao mesmo tipo de desespero em que eu estava.”

A vida diária é tão deprimente que a criatividade é quase impossível
Fadaam diz que a arte contemporânea do Iraque é como o próprio povo do Iraque: uma vítima da guerra. A vida diária é tão deprimente que o trabalho criativo é quase impossível. “E aqueles que ainda conseguem pintar não conseguem vender nada, de qualquer forma. Quem quer pendurar um quadro de um corpo decapitado na sua sala de jantar?”, diz Fadaam.

Os pintores não podem senão recriar a realidade brutal, e os escultores preferem não trabalhar a espelhar o horror da guerra: Fadaam fala pelos melhores da comunidade artística iraquiana, ele fala por aqueles que têm necessidade de criar, pelos que são motivados. Entretanto, muitos dos artistas iraquianos pertencem a outra espécie: profissionais tecnicamente competentes mas sem inspiração, que foram educados nas artes durante a ditadura de Saddam. Seu trabalho, chamdo de Arte Jubileu, tampouco é requisitado. Esta é outra razão pela qual a cena artística do Iraque nunca voltará à sua condição anterior à guerra. “Mas essa redução é saudável”, explica Fadaam. “É amarga, mas também necessária.”

Fadaam tem grandes esperanças para a nova geração de iraquianos, os que estão hoje nas escolas de arte. “Há alguns talentos genuínos estudando”, diz ele. Em alguns anos iniciantes respirarão uma vida nova na cena artística iraquiana, transformando Bagdá novamente numa metrópole cultural. Faddam acredita que o estado da arte está intimamente ligado com o próprio futuro do país. “Se a situação melhorar, se os jovens forem capazes de expressar amor e felicidade em seus trabalhos, então não só a arte iraquiana terá um futuro, mas o próprio Iraque também o terá”, conclui.

Tradução: Eloise De Vylder
[Der Spiegel, 25/04/2010]

Brasília, 50 anos: um sonho no centro do Brasil

A “interiorização” da capital federal é um projeto do século XIX que o presidente Juscelino Kubitschek executou a partir de idéias que remetem ao período da Independência do nosso país
Da revista História Viva. Clique aqui para ler...

O curioso caso de James Cameron

Li e ri bastante a entrevista do diretor James Cameron às páginas amarelas da "Veja". Escrevi "diretor", mas estou a ser generoso. Cameron, de fato, dirigiu alguns filmes interessantes no século passado: os estimáveis "Aliens" ou mesmo "O Exterminador do Futuro". Bons tempos. Hoje, Cameron é o guru de uma igreja ambientalista que faz cinema para efeitos de propaganda. Um Michael Moore verde, em suma.
Cameron esteve no Brasil para participar no Fórum Internacional de Sustentabilidade, em Manaus. Diz a revista que sobrevoou a Floresta Amazônica, previsivelmente com reverência panteísta. E até pediu ao presidente Lula para não construir uma usina hidrelétrica no Xingu

Eu nunca sobrevoei a Amazônia. Eu nunca estive no Xingu. Eu não sei se o Brasil precisa de uma usina hidrelétrica. Mas sei que James Cameron precisa de tratamento urgente. Com uma pose ridícula de iluminado espiritual, Cameron começa por lamentar a alienação dos homens modernos, cada vez mais afastados da natureza e do contato com os outros seres humanos.

James Cameron tem da natureza a mesma idealização romântica que os românticos do século 19. Como se a natureza fosse lugar protetor da nossa existência terrena: uma fonte de bondade que revitaliza os nossos espíritos tresmalhados. Valerá a pena desmontar essa falácia? Valerá a pena dizer que a natureza é uma força indiferente e brutal, sem qualquer dimensão ética?

Cameron discorda. Não sei se os milhares de passageiros retidos nos aeroportos da Europa por causa da natureza "benigna" de um vulcão concordam com Cameron. Duvido.

E também duvido da dimensão humanista de Cameron. O "diretor" lamenta que os homens estejam afastados uns dos outros. E culpa a tecnologia, a internet, as "redes sociais" por oferecerem simulacros de realidade.

Em teoria, sou capaz de concordar com Cameron. É por isso que uso a internet esparsamente e não frequento "redes sociais". Mas levar a sério uma condenação da tecnologia feita pelo mais adolescente entusiasta dela é como ouvir um discurso feminista pela boca de Osama Bin Laden. Um paradoxo.
Aliás, tudo em Cameron é paradoxal. A começar pela justificação da sua derrota no Oscar desse ano. Para Cameron, "Avatar" é tão visualmente deslumbrante que os membros da Academia não deram grande crédito à história. Infelizmente, a "Veja" não formulou a questão fundamental: "Mas que história, Padre Cameron?"

"Avatar", em termos narrativos, não se distingue dos clichês habituais sobre a ganância do "homem branco" e a grandeza moral de qualquer tribo indígena que desconheça o papel higiênico. Até o momento em que o "homem branco" se converte ao nativismo, usando folhas de árvore para o serviço e olhando com repugnância para a sua própria cultura "imperialista" e ocidental.

Não sei quantas vezes assisti a esse sermão. Mas sei que o sabor do refogado não se altera com temperos tecnológicos. "Avatar" é um exercício moralista e pedestre construído por um milionário californiano que jamais abandonaria os confortos da civilização "branca" e "imperialista" para se entregar à pureza das florestas.

João Pereira Coutinho, 33 anos, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

Datas: Inconfidência Mineira

Da Revista de História da Biblioteca Nacional um conjunto de artigos enfocando o epidódio sob variados ângulos.

As outras Inconfidências Mineiras
Muito antes de Tiradentes, vários episódios em Minas mostraram a insatisfação popular com a monarquia, reproduzindo rixas locais
Leandro Pena Catão

Conjuração revisitada
A Revista de História conversa com um dos principais estudiosos da Inconfidência Mineira: Kenneth Maxwell

Joaquim José da Silva Xavier era um simples alferes sem posses?
André Figueiredo Rodrigues

É pejorativo chamar a conspiração de “inconfidência”?
Luciano Figueiredo

Inconfidência em círculos
Além de homens e mercadorias, idéias políticas que atiçavam as sublevações circulavam de um lado a outro do império português, como a notícia de uma rebelião na Índia
Anita Correia Lima de Almeida

Desonrados e banidos
Dos inconfidentes condenados ao degredo, uns padeceram mais que outros, e poucos, como Francisco de Paula Freire de Andrada, tiveram a chance de voltar ao Brasil

A outra face do alferes
Documento raro revela um Tiradentes demasiado humano
Paulo da Costa e Silva

Herói em pedaços
Único quadro que restou da série sobre a Inconfidência, “Tiradentes supliciado”, de Pedro Américo, despreza a visão triunfante de um “imprudente conspirador”
Maraliz de Castro Vieira Christo

Os inconfidentes podem ser divididos em grupos bem definidos: contratadores, advogados...
João Pinto Furtado

Os inconfidentes conheciam a situação da capitania que pretendiam sublevar?
Junia Ferreira Furtado

Tiradentes foi diretamente influenciado pelo Iluminismo?
Caio Boschi

Batinas incendiárias
A participação de membros do clero na Conjuração Mineira revela a íntima relação entre o mundo profano e o religioso no Brasil colonial
André Figueiredo Rodrigues

Liberdade ainda que tardia
Nas Minas setecentistas, o republicanismo seguia os passos da América inglesa, buscando o autogoverno
Heloisa Maria Murgel Starling

Homossexualidade não é a mesma coisa que pedofilia

Rhonda Swan, em West Palm Beach, Flórida (EUA

As igrejas são um ótimo esconderijo para pecadores. Especialmente, durante as últimas décadas, para a Igreja Católica Apostólica Romana.

Isso é o que deveria ter dito o cardeal Tarcisio Bertone, o secretário de Estado do Vaticano, nesta semana, no Chile. Mas, em vez disso, ele culpou os homossexuais pelo mais recente escândalo envolvendo a igreja. Bertone afirmou que o celibato não causa pedofilia, mas que a homossexualidade causa.

“Muitos psicólogos e psiquiatras demonstraram que não existe relação entre o celibato e a pedofilia”, disse o cardeal Bertone. “Mas muitos outros demonstraram, segundo me disseram recentemente, que existe uma relação entre a homossexualidade e a pedofilia. Isso é verdade. Esse é o problema”.

Mas isso não é verdade. E esse não é o problema.

Não existem dados científicos que indiquem que os homossexuais têm uma predisposição a praticar a pedofilia. Os homossexuais são apenas bodes expiatórios fáceis para uma denominação religiosa que se recusa a sequer discutir o fato de que poucos padres são voluntariamente capazes de praticar o celibato por toda a vida. No livro “Celibacy in Crisis” (“Celibato em Crise”), o padre e psicoterapeuta Richard Sipe estima que, qualquer que seja o período selecionado, apenas 2% dos clérigos praticam o celibato permanente.

Mesmo assim, não se pode também culpar mais o celibato do que a homossexualidade pelos inúmeros escândalos de abusos sexuais que sacodem o Vaticano. O problema é o sistema de sigilo do Vaticano e a forma desavergonhada como os seus líderes têm respondido aos pecados institucionais da igreja. Até o momento, eles têm culpado a mídia, os homossexuais e os judeus.

O Vaticano distanciou-se dos comentários do cardeal Bertone, e na última quinta-feira o papa pediu aos fiéis que fizessem “penitência” devido “aos ataques feitos pelo mundo, que fala conosco de nossos pecados”. No entanto, dizer que o mundo está atacando a igreja é mais um exemplo daquilo que anda errado em Roma.

Durante décadas o Vaticano tem ajudado e protegido molestadores sexuais contumazes de crianças, fornecendo a eles a sua proteção institucional e encobrindo as ações criminosas desses indivíduos. Essa política tem possibilitado que os pedófilos destruam e desestabilizem as vidas de incontáveis crianças, muitas das quais chegaram a cometer suicídio.

Uma carta de 1985 obtida na semana passada pela agência de notícias “The Associated Press” indica que quando o papa Bento 16 era o cardeal Joseph Ratzinger, o arcebispo de Munique, ele resistiu aos apelos para que exonerasse um padre com um histórico de assédio sexual de crianças, citando “o bem da igreja universal”.

E quanto ao bem das crianças do universo?

A carta contradiz a alegação feita pelo Vaticano de que o papa Bento 16 nada tinha a ver com o veto da remoção de padres pedófilos durante os anos em que chefiou o departamento de fiscalização doutrinária da igreja.

Desde 2002, quando o jornal “The Boston Globe” publicou uma matéria revelando que o arcebispo de Boston admitiu ter protegido um padre que eles sabiam ter abusado sexualmente de crianças novas, os relatos sobre padres pedófilos têm sido numerosos.

Isso porque os pedófilos vão até onde as crianças estão. Alguns tornam-se professores. Outros líderes de tropas de escoteiros. Muitos vão para a igreja porque aquele é o lugar perfeito. Lá eles têm acesso a centenas de filhos de pais confiantes, que acreditam na autoridade suprema dos padres que supostamente contam com o poder para absolvê-los dos seus pecados. Se os padres são pegos cometendo abusos, não há punição. A igreja paga uma indenização às vítimas e transfere os transgressores para uma outra paróquia, na qual eles poderão estuprar mais crianças.

E eles contam com total liberdade. A Igreja Católica Apostólica Romana é um potencial paraíso dos pedófilos na terra. E ela tem sido o inferno na terra para as crianças inocentes que são vítimas de padres.

Mas a igreja, que tenta reabilitar os padres que cometeram abusos sexuais, nada faz por essas vítimas – que chegam a milhares em todo o mundo –, a menos que estas entrem com processos na justiça e ganhem a causa.

Será que esse tipo de procedimento é cristão?

A igreja, na sua tentativa de proteger uma instituição, transformou-se em um refúgio para os piores indivíduos da sociedade, em vez de ser um santuário para os mais humildes dentre nós.

Tradução: UOL
[Cox News Service, 17/04/2010]

Os Beatles ainda reinam quatro décadas depois do fim do grupo

Diego A. Manrique, em Madri(Espanha)

Em 10 de abril de 1971, há 40 anos, era divulgado um comunicado taxativo de Paul McCartney: ele abandonava os Beatles - "por diferenças pessoais, musicais e de negócios" - e o grupo deixava de existir. O anúncio não provocou manifestações de histeria nem lamentos: havia a convicção de que aquilo era um rompante, algo que poderia ser acertado. Impossível imaginar um mundo sem os Beatles: eles haviam pilotado a emancipação dos anos 1960 e não poderiam nos abandonar quando começava uma década incerta. Mas era sério: no último dia de 1970, Paul apresentou uma queixa nos tribunais exigindo a dissolução da empresa comum.

Nas palavras de John Lennon, o sonho havia acabado. O sonho de uma geração inspirada por simpáticos rebeldes procedentes de uma cidade - e de um império - em declínio, o ideal da fraternidade criativa desenvolvida por quatro músicos (e o produtor George Martin, que conduziu sua vertiginosa evolução). Em termos artísticos, a ruptura representou um desastre maiúsculo: nunca se repetiria semelhante alquimia de talento em um grupo pop, tal sincronia de música e mudança social. Foi como o expressou Kurt Cobain vinte anos depois, justificando o enfoque do Nirvana: "Não podemos tocar pop, os Beatles já fizeram tudo".

Se seus dez anos de existência foram extraordinários, não o foram menos as quatro décadas posteriores. As impressionantes vendas dos anos 60 ficaram reduzidas pelo imenso negócio gerado posteriormente. Os Beatles sustentam uma indústria poderosa, reanimada periodicamente por reedições, remasterizações e - proximamente - sua disponibilidade em lojas digitais. Sua Liverpool natal se transformou em um parque temático para maior glória daqueles renegados que fugiram para Londres.

O final do grupo desperta os piores instintos: acelera fobias e filias, permite atacar as mulheres - Yoko Ono, Linda Eastman... - que entraram naquele clube masculino, justifica um maniqueísmo que opõe os artistas aos homens do dinheiro. Ainda dispara abundantes especulações: tudo seria diferente se houvessem retornado aos shows, em condições mais civilizadas do que as que obrigaram a suspender as turnês; talvez tivessem se apaziguado os confrontos se contassem com um árbitro, como foi Brian Epstein até sua morte em 1967.

Seu desaparecimento empurrou McCartney para o timão. Ele morava no centro de Londres, enquanto os outros andavam dispersos por mansões na periferia, sem se sentir especialmente felizes. Ele era o mais social dos Beatles, alguém muito envolvido na contracultura do momento: foi o primeiro a reconhecer que tomava LSD e maconha.

Em julho de 1967, Paul e John, com suas respectivas companheiras, viajaram ao mar Egeu, em nome de um plano eminentemente juvenil: comprar uma ilha na qual os quatro pudessem viver e trabalhar. Nem sequer estavam conscientes de que a Grécia sofria então uma cruel ditadura militar que dificilmente teria tolerado suas peculiaridades. Falamos do mesmo grupo que no início de 1968 iniciou a Apple Corps como uma experiência de capitalismo hippie, com vários negócios que, fora a Apple Records, rapidamente se mostraram ruinosos.

Também foi Paul, apoiado por John, quem decidiu convidar em 1969 uma equipe de filmagem durante a gravação do LP finalmente conhecido como "Let It Be". Hoje sabemos que a experiência foi desastrosa, mas o plano combinava substância e audácia: além de conseguir um filme rentável, esperavam uma catarse regeneradora, ao obrigar-se a criar música diante das câmeras. Anos depois, os membros do Metallica se submeteriam a uma terapia semelhante, da qual saíram fortalecidos e com um documentário memorável, "Some Kind of Monster".

Foi nessas sessões infelizes que George Harrison explodiu. De idade inferior à dos outros, sentia-se menosprezado na hora de dividir o jogo. E também havia embarcado em uma busca espiritual, pela mão do Maharishi Manesh Yoghi, mas só ele persistiu depois da estada na Índia (um retiro paradoxalmente produtivo em termos musicais). George abandonou a gravação, gesto que logo seria repetido por Ringo Starr.

Em seu papel de catalisador do quarteto, Paul McCartney também dava pisões em seu sócio principal. E Lennon estava extremamente sensível: depois de separar-se de sua esposa Cynthia, desejava reinventar-se como criador vanguardista e politicamente ativo ao lado de Yoko. O novo John não tinha paciência para os compromissos necessários em um grupo; considerava os Beatles uma aventura superada, um tempo de pactos e mentiras. Pouco preparado para enfrentar a realidade, deixou-se iludir por um sujeito duro, Allen Klein. Sua insistência em tê-lo como empresário o levaria a uma colisão fatal com Paul McCartney.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 14/04/2010]

Eldorado dos Carajás: chacinas são um bom negócio no Brasil

Leonardo Sakamoto, para o UOL Notícias
O Massacre de Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, que matou 19 sem-terra e deixou mais de 60 feridos após uma ação violenta da Polícia Militar para desbloquear a rodovia PA-150, completa 14 anos hoje. A estrada estava ocupada por uma marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que se dirigia à Marabá a fim de exigir a desapropriação de uma fazenda, área improdutiva que hoje abriga o assentamento 17 de Abril. A Polícia recebeu ordens de retirá-los e deu no que deu. O Massacre é considerado o maior caso contemporâneo de violência no campo, tanto que esta data passou a ser lembrada como o Dia Mundial de Luta pela Reforma Agrária.

Desde então, a realidade pouco mudou na região. O Pará, sob forte influência de proprietários rurais e de mineradoras, é o estado com maior número de casos comprovados de trabalho escravo e um dos lideres no desmatamento ilegal. É também campeão no número de assassinatos de trabalhadores rurais em conflitos agrários e de lideranças sociais e religiosas que, marcadas para morrer, já têm uma bala batizada com seu nome. Isso sem contar o descaso com a infância, que toma forma de meninas nos bordéis e de meninos em serviços insalubres no campo. Garotas com idade de “vaca velha”, como dizem garimpeiros e peões, ou seja, com 10, 12 anos, trocam a sua alegria pela dos clientes.

O que é justiça? É punir apenas aqueles que apertaram o gatilho ou inclui os que, através de sua ação ou inação, também garantiram que uma tragédia acontecesse? Em 1992, 111 detentos foram mortos na já desativada Penitenciária do Carandiru após uma ação bizarra da Polícia Militar. Mais de 153 pessoas ficaram feridas, das quais 23 policiais. O falecido Coronel Ubiratan Guimarães, que coordenou a invasão/banho de sangue para conter a rebelião, foi eleito posteriormente deputado estadual, tripudiando a memória dos mortos – candidatava-se com o número 14.111. Luiz Antônio Fleury Filho, governador na época do massacre, aprovou a conduta da polícia. Hoje é deputado federal.

E por aí vai: Quem foi responsável pela Chacina da Castelinho, quando um comboio de supostos criminosos foi parado próximo a um pedágio na rodovia Castelinho, em Sorocaba (SP), e 12 pessoas executadas em 2002? E pelo Massacre de Corumbiara (RR), no qual 200 policiais realizaram uma ação armada para retirar cerca de 500 posseiros que ocupavam uma fazenda no município, resultando na morte de dois PMs e nove camponeses, entre eles uma menina de 7 anos em 1995? Ou ainda Vigário Geral, em que 50 policiais militares, que estavam fora de seu horário de serviço, entraram atirando na favela e mataram 21 inocentes em 1993 como uma “prestação de contas”?
No caso de Eldorados dos Carajás, as autoridades políticas na época, o governador Almir Gabriel e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara, não foram nem indiciados.

Todos esses massacres e chacinas têm em comum o fato de vitimarem pessoas excluídas socialmente: camponeses, trabalhadores rurais, pobres da periferia, presos. Enquanto isso, o envolvimento de policiais militares tem sido uma constante. Se, hoje, massacres como os de 10, 20 anos atrás são mais raros, o mesmo não se pode dizer da violência policial. Comportamento que, muitas vezes, é aplaudido pela classe média, pois isso lhes garante o sono diante das hordas bárbaras. Muitas chacinas passaram a ocorrer em conta-gotas, no varejo, de forma silenciosa que não chame a atenção da mídia daí e aqui de fora.

O Poder Judiciário tem sua grande parcela de responsabilidade no clima de impunidade que alimenta a violência. A Justiça, que normalmente é ágil em conceder liminares de reintegração de posse e determinar despejos no caso de ocupações na cidade, é lenta para julgar e punir assassinatos e outras formas de violência contra trabalhadores.

Para que direitos humanos sejam efetivamente respeitados no país são necessárias mudanças reais, pois há impunidade também quando o governo não atua para acabar com a situação de desigualdade ou exploração que estava na origem do conflito. Seja ao permitir que garimpeiros continuem a explorar reservas indígenas, seja ao tolerar que crianças durmam na rua ou trabalhadores precisem perder a vida na luta pela reforma agrária.

Há uma relação carnal que se estabelece entre o patrimônio público e a propriedade privada não só na Amazônia, mas em outras partes do país. Muito similar ao que se enraizou com o coronelismo nordestino da Primeira República, o detentor da terra exerce o poder político, através de influência econômica e da coerção física. O já tênue limite entre as duas esferas se rompe. É freqüente, por exemplo, encontrar policiais que fazem bicos como jagunços de fazendas. O Massacre de Eldorado dos Carajás é um dos tristes episódios brasileiros em que o Estado usou de sua força contra os trabalhadores e a favor dos grandes proprietários de terra.

E, ao final, quem estava no topo da cadeia de responsabilidade pode continuar indo para sua casa tomar um uísque e coçar a barriga. Pois sabe que sua contribuição de violência é apenas mais uma, entre outras tantas que povoam a mídia ou, pior, passam despercebidos dela e da opinião pública.

Após Carajás, ao menos 180 morreram em conflitos no campo no PA; Estado é o mais violento do país
Guilherme Balza, do UOL Notícias, em São Paulo

O Pará é o campeão em assassinatos cometidos em conflitos no campo nos últimos 13 anos. Das 467 mortes ocorridas no Brasil no período, 180 (39%) aconteceram no Estado, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O Pará registrou o maior número de homicídios em todos os anos em que os números foram levantados.

Nos cinco anos posteriores ao massacre de Eldorado dos Carajás --no qual 19 sem-terra foram mortos e 79 mutilados ou feridos pela polícia em 17 de abril de 1996--, durante o mandato de Almir Gabriel (na época do PSDB), ocorreram 45 mortes, uma média de nove homicídios por ano.

Entre 2003 e 2006, quando o Estado foi governado por Simão Jatene (PSDB), foram 88 assassinatos, ou seja, em média, 22 por ano. Após a eleição de Ana Julia Carepa (PT), as mortes no campo voltaram a cair: 26 entre 2007 e 2009, uma média de aproximadamente nove homicídios anuais.

A petista foi eleita prometendo diálogo com os movimentos sociais e ações concretas para a realização da reforma agrária. Contudo, na avaliação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o atual governo reduziu a repressão aos sem-terra, mas tem uma atuação tímida na condução da reforma agrária.

“Nos governos anteriores a polícia reprimia as ocupações e manifestações públicas. Hoje existe a orientação de negociar com os trabalhadores”, afirma Ulisses Manaças, diretor estadual do MST no Pará e integrante da coordenação nacional do movimento. “Já na reforma agrária o Estado tem sido extremamente tímido”, acrescenta.

José Heder Benatti, presidente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), defende a atual gestão, que, segundo ele, já assentou mais de 5.000 famílias, e diz que para acabar com a violência no campo é necessário adotar “ações conjugadas”. “Temos que combinar a regularização fundiária, o reconhecimento de populações tradicionais e a mediação de interesses”, diz.

Já Eduardo Sizo, coordenador da Câmara Setorial de Defesa Social da Secretaria de Estado de Governo, órgão responsável pela mediação dos conflitos no campo, disse que os dados da CPT serão analisados antes de o governo tomar uma posição.

“Vamos analisar o relatório para saber efetivamente as razões das mortes. É o inquérito policial que trará elementos elucidativos para determinar se as mortes foram causadas pela disputa agrária. É conhecendo as causas da violência que temos condições de atacá-las”, disse.

Para Manaças, além da má-distribuição da terra, o agronegócio tem influência na violência no meio rural paraense. “A ocupação do território foi feita de forma violenta pelas elites. Desde a colonização o Pará foi visto como o exportador de matéria-prima. Hoje impera o modelo agromineral exportador, dominado pelas empresas transnacionais, e a pressão pelo lucro eleva os conflitos pela posse da terra. O agronegócio é um setor truculento, que oprime o movimento camponês”, diz.

Campeão da grilagem
O Pará também é detentor de outro recorde negativo, causador de um impacto direto na violência no campo: é o Estado brasileiro com a maior quantidade de terras griladas -- propriedades obtidas de modo irregular, por meio da falsificação de documentos cartoriais.

Se fossem considerados os registros em cartório, o território do Pará teria 490 milhões de hectares, o que representa mais de três vezes o tamanho real do Estado, segundo o Tribunal de Justiça. A discrepância é causada pela superposição de propriedades nos registros.

Dentre as irregularidades, estão documentos que não transferem domínio ou que não constam dados de título de origem, mais de mil registros de propriedades com área superior ao limite constitucional e ainda títulos emitidos pelo governo do Pará também em situações semelhantes, segundo o Iterpa.

O instituto diz que já foram bloqueados mais de 10 mil títulos de propriedade irregulares nos últimos três anos. “Precisamos deixar o Pará do tamanho que ele é, e declarar de forma segura os títulos que são podres e os títulos que tem validade”, disse Sizo.


Massacre de Eldorado dos Carajás completa 14 anos com responsáveis em liberdade
Guilherme Balza, do UOL Notícias,em São Paulo

A operação que resultou no massacre de Eldorado dos Carajás (PA), no qual 19 sem-terra foram mortos e 79 mutilados ou feridos pela polícia na rodovia PA-150, em 17 de abril de 1996, envolveu ao menos 155 policiais militares. Além deles, tiveram participação indireta no episódio o então governador, Almir Gabriel (ex-PSDB), e o secretário de Segurança, Paulo Sette Câmara --que não foram julgados pelos crimes.

De todos os envolvidos, 146 policiais foram indiciados criminalmente, e o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira foram condenados à pena máxima de detenção pelo Tribunal do Júri de Belém, em junho de 2002. Porém, 14 anos depois do massacre, tanto Pantoja, quanto Oliveira, permanecem em liberdade, já que em 2005 ambos conseguiram no STF (Supremo Tribunal Federal) o habeas corpus para aguardarem o fim do processo.

A concessão foi decidida pelo ministro Cezar Peluso --indicado pelo presidente Lula para o cargo--, que será empossado presidente do Supremo na próxima sexta-feira (23), em substituição a Gilmar Mendes. O último recurso da defesa dos condenados aguarda julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ), sem previsão de data para acontecer. “Esses nunca vão ser presos. Eles são o Estado, têm dinheiro, contratam os melhores advogados”, afirma Antonio Alves de Oliveira, 50, conhecido como “Índio”, um dos sobreviventes do massacre.

Duas das três balas que atingiram Índio permanecem alojadas no seu corpo: uma no joelho e outra no calcanhar. A terceira, que atingiu sua coxa, foi removida na época. “A gente vive em um estado de miséria e calamidade tão grande que não confio na saúde pública. Por isso não arrisquei tirar as balas. Elas continuam no mesmo lugar, provocando as mesmas dores, as mesmas infelicidades”, diz o sem-terra.

O promotor Marco Aurélio Nascimento, um dos representantes do Ministério Público Estadual que atuaram no caso, vê no processo de Carajás mais um exemplo de desprestígio dos órgãos de primeira instância da Justiça. “As decisões [em primeira instância] não são cumpridas, e as pessoas ficam recorrendo. No Brasil há uma infinidade de recursos. Os processos nunca se encerram”, afirma.

O massacre
Em 17 de abril de 1996, os sem-terra, liderados pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), bloqueavam a rodovia para protestar contra a demora do poder público em desapropriar terras na região. Os protestos já duravam uma semana. Do gabinete de Almir Gabriel partiu a ordem para “desobstruir” a via; Sette Câmara reforçou a orientação e autorizou o uso da força para tirar os manifestantes da rodovia.

Pantoja disse, em seu depoimento no Tribunal do Júri, que tentou argumentar com seus superiores para que a tropa de choque da PM fosse chamada para a operação, já que seus comandados não teriam condições para cumprir a ordem. Porém, orientado a seguir com a desobstrução, o coronel partiu de Marabá com policiais munidos de armamentos pesados. No lado oposto da PA-150, a partir de Parauapebas, vieram os comandados de Oliveira, também fortemente armados.

Na curva do S, onde a multidão se aglomerava, os PMs utilizaram bombas lacrimogêneo para liberar a rodovia. Os sem-terra revidaram atirando pedras, paus e foices em direção dos policiais. Acuados, alguns PMs atiraram em direção aos manifestantes. Apesar dos tiros, a maioria das mortes não ocorreram no momento do enfrentamento, e sim alguns instantes depois, quando os trabalhadores já estavam rendidos.

O laudo da perícia constatou que a maior parte dos crimes tiveram características de execução, algumas delas com requintes de crueldade. Além das mortes, dezenas de trabalhadores sofreram ferimentos graves resultantes do uso de armas brancas pelos policiais. “Depois que os sem-terra foram dispersos que as execuções começaram. As vítimas foram mortas sem condições de defesa”, afirma o promotor.

Indenizações
De acordo com Índio, as famílias das vítimas recebem mensalmente do Estado um salário mínimo (R$ 510, atualmente) de indenização - cerca de 10% do valor que o diretor de teatro José Celso Martinez Correa receberá de pensão vitalícia por ter sido perseguido pela ditadura, além da parcela fixa de R$ 596 mil que ele já recebeu.

No momento da entrevista ao UOL Notícias, Índio completava o 18º dia em Belém, onde ele e outros sobreviventes do massacre aguardavam o desfecho do trâmite na Justiça para a liberação de R$ 20 mil para cada sem-terra mutilado em Eldorado dos Carajás.

Segundo Índio, os sobreviventes compartilham de um mesmo sentimento a cada aniversário do massacre. “O que nós sentimos é um massacre psicológico. É uma coisa que nunca vai sair da mente das pessoas. Abalou, mudou várias histórias no país. A gente se sente como se fosse no dia”, diz.

A reportagem do UOL Notícias entrou em contato com o coronel Pantoja, mas o réu desligou o telefone quando questionado sobre o massacre. Já o major José Maria afirmou não querer se manifestar sobre o episódio. Almir Gabriel também foi procurado, mas a reportagem não conseguiu localizá-lo.

O Brasil real e o Afeganistão

Clóvis Rossi

SÃO PAULO - Informa a ONU: "Os indicadores do Brasil em saneamento básico são, na área urbana, inferiores aos de países como Jamaica, República Dominicana e Territórios Palestinos ocupados". Sim, é isso que você leu: pior do que na Palestina ocupada.
Acrescenta a ONU: "O Brasil rural amarga índices africanos. O acesso a saneamento básico adequado é inferior ao registrado entre camponeses de nações imersas em conflitos internos, como Sudão e Afeganistão". Sim, Afeganistão. É esse o Brasil que vai às urnas dentro de seis meses. O Brasil real, que não aparece nem no discurso do governismo nem apareceu no de José Serra, principal candidato oposicionista.

Serra fala, aliás, em avanços. Houve, como é óbvio. Mas não cabe um conformismo medíocre, mesmo em áreas como a redução da pobreza (que também houve). Vejamos a propósito o que diz o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, em entrevista para a revista do Ipea:
"A classe A e B são pessoas que ganham mais de R$ 4.000, e R$ 4.000 não é propriamente uma renda extraordinária. Agora imagine que os outros todos ganham menos de R$ 4.000. Então, a maioria está lá na classe C, D e E. São mais de 50% a 60% da população. É pouco importante saber se é 60% ou 70%, porque é um número tão grande..." Pulemos para educação e desigualdade. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios trabalhados pela Unicamp mostram que, no nível médio de ensino, estão na escola 75% dos jovens que pertencem ao grupo dos 20% mais ricos, contra apenas 25% dos garotos do andar de baixo.

É pedir demais que a campanha eleitoral se concentre em como reduzir (de preferência eliminar) a aberração que é o Brasil ser a oitava economia do planeta e o 75º país em desenvolvimento humano?

[Folha de São Paulo, 11/04/2010]

Caldeira fervente

Rafael Cariello

Em nova obra, historiador diz que esquerda brasileira se enganou na interpretação do Brasil e afirma que país não era refém da metrópole

Processos de revisão histórica exigem trabalho redobrado. Não basta chamar atenção para fatos que antes passavam despercebidos ou explicar, de maneira inédita, o passado.
Uma vez estabelecida a nova interpretação, é hora de perguntar: como foi possível que os pesquisadores de décadas passadas não vissem isso? O que levou historiadores, por tanto tempo, a se "enganar"?
Já faz mais de duas décadas que a visão sobre o passado colonial brasileiro tem mudado radicalmente. O novo livro de Jorge Caldeira, "História do Brasil com Empreendedores", cumpre o importante trabalho de sintetizar e divulgar boa parte dos trabalhos acadêmicos recentes que contribuíram para essa empreitada.
Mas vai além, ao buscar uma explicação para a vigência da interpretação anterior, que prevaleceu na maior parte do século passado.
Ficou para trás, como mostra Caldeira, a ideia de uma América portuguesa pobre e espoliada pelas metrópoles europeias. Passou a prevalecer a interpretação de uma economia mais dinâmica e uma sociedade muito mais complexa do que as explicações que colocavam ênfase na dependência colonial deixavam ver.
As razões do atraso do país são mais recentes e determinadas não pela transferência de recursos para Portugal, mas pelas escolhas que uma elite política e econômica, residente no Brasil, fez.
A contribuição inédita de Caldeira, autor da importante biografia de Irineu Evangelista de Sousa, "Mauá - Empresário do Império" (Cia. das Letras), está na segunda tarefa, para a qual é dedicada metade de seu novo livro.
Ele diz ter descoberto, de maneira fortuita, uma espécie de véu ideológico no trabalho de Caio Prado Jr. (1907-90), pai das explicações hegemônicas sobre o país entre os anos de 1930 e 1980.
Há mais de uma década, enquanto pesquisava para seu doutorado em ciência política, na USP, ele notou semelhanças impressionantes entre trechos das obras de Prado Jr. e do historiador conservador Oliveira Vianna (1883-1951).
A visão que Prado Jr. -autor marxista e referência para gerações de pesquisadores de esquerda- tinha do Brasil havia sido cunhada, em grande medida, por Vianna, pensador antiliberal e crítico da democracia representativa, diz.
Parte da esquerda brasileira, portanto, seria herdeira direta do pensamento conservador da virada do século 19 para o 20. Ambas, às vezes pelas mesmas razões, às vezes por motivos diversos, leram mais de quatro séculos de história como a narrativa de um país cronicamente inviável.
Foi Vianna, antes de Prado Jr., quem colocou o "latifúndio" no centro de seu modelo explicativo sobre as razões do atraso brasileiro. Para o conservador, as consequências da importância exacerbada da fazenda exportadora eram sobretudo políticas.
A sociedade brasileira se via reduzida à oposição entre senhores e escravos, e entre eles uma massa de homens dependentes dos proprietários, incapazes de se associar livremente e criar o substrato social necessário para a vigência, mais tarde, da democracia.
Daí por que o modelo liberal -incluindo o voto direto- era estranho ao país e não deveria ser importado, dizia Vianna. Prado Jr. foi diretamente influenciado por esse modelo.

O capital ficava aqui
Caldeira compara trechos extensos das obras dos dois autores para mostrar os empréstimos interpretativos do historiador marxista -que, no entanto, centrou esforços na explicação das consequências econômicas do "latifúndio agrário-exportador".
Por ser montada sobre uma base material de grandes fazendas voltadas para o comércio externo, a América portuguesa -segundo o modelo de Prado Jr. e da explicação hegemônica sobre o país depois dele- era pobre, dependente, desprovida de lógicas política e ideológica próprias tanto quanto de dinamismo econômico interno.
Versão falhada, mero simulacro, da sociedade europeia e, mais tarde, da americana. Pesquisas recentes, citadas por Caldeira, demonstram que a explicação estava errada. O país não só dispunha de um dinâmico mercado interno já no século 18 como boa parte da riqueza que sua elite acumulava não era transferida para Portugal -ao contrário, era reinvestida na própria colônia.
Do ponto de vista social, a maior parte da população não era composta por senhores ou escravos, mas por homens livres, mestiços, que estavam longe de ser meros agregados dos poderosos.
Muitos eram lavradores ou comerciantes, e a forma mais comum de propriedade não era o latifúndio, mas o sítio, o pequeno pedaço de terra trabalhado pela família. Apenas um décimo da população livre era proprietária de escravos.
Forçando bastante a analogia com os tempos atuais, é como se as pesquisas das últimas décadas tivessem descoberto uma enorme "classe C" no passado colonial do país -além de uma pujante elite financeira.
São esses os "empreendedores" da obra de Caldeira: não só os traficantes de escravos e "banqueiros" que se encontravam no topo da pirâmide econômica mas também os pequenos comerciantes e lavradores, bandeirantes e proprietários de pequenas manufaturas.
O comércio era intenso, a colônia enriqueceu e, ao final do século 18, o Brasil já era indubitavelmente mais rico que sua metrópole, Portugal. O caminho para a acumulação não estava na produção em grande escala de mercadorias, como viria a acontecer em todo o mundo depois da Revolução Industrial. Na América portuguesa, exatamente como nos países europeus do Antigo Regime, eram os grandes comerciantes que enriqueciam.
Acumulavam recursos e emprestavam dinheiro aos proprietários. Mas também havia comércio e investimento em menor escala, espalhados de forma capilar pela colônia. Eram esses canais que permitiam a acumulação de recursos, o reinvestimento na produção e o enriquecimento material -para falar em termos atuais, o "crescimento do PIB".
Não se trata ainda de capitalismo. Não havia relações contratuais ou de troca monetária em larga escala, como hoje. Para investir, e enriquecer, os "empreendedores" dependiam de relações de confiança, da teia de vínculos sociais que criavam. Ao casar, criar laços de compadrio ou de dependência, a sociedade colonial se reproduzia segundo uma lógica que não era "utilitarista", que não visava simplesmente o lucro, mas que não excluía o ganho material.

Fiado e dote
Esse modelo misto já foi flagrado por outros historiadores, e Caldeira tenta uma sistematização para o caso brasileiro. O adiantamento de bens ou recursos, a instituição do "fiado", o empréstimo e o dote criavam canais que levavam ao enriquecimento do credor ao mesmo tempo em que se baseavam em relações pessoais.
Sem esse "capital", não se poderia explicar de onde o interior da colônia tirava recursos para se reproduzir materialmente, para ampliar seus negócios -da criação de gado ao plantio de alimentos para a venda no mercado interno.
Como se vê, há analogias óbvias, da "classe C" à expansão do crédito, entre essa interpretação renovada do Brasil Colônia e certa euforia econômica atualmente vivida pelo país. Mas seria um erro fazer de uma o reflexo da outra. As pesquisas que mudaram a compreensão sobre o passado do país tiveram seu grande impulso em um momento completamente diferente, entre o final dos anos 80 e início dos 90, quando o ambiente político e econômico no Brasil era outro.
Não será surpresa, no entanto, se a atual atenuação do secular complexo de vira-latas dos brasileiros contribuir para uma maior difusão desses trabalhos.

[Folha de São Paulo, 11/04/2010]

Novo estudo revela planos soviéticos para a Terceira Guerra Mundial

Matthias Schulz

Os historiadores alemães estão divididos sobre a importância de um maciço "bunker" da era comunista na antiga Alemanha Oriental. Ele seria usado como posto de comando no caso de uma invasão soviética à Europa Ocidental? Hoje os pesquisadores acreditam que a Europa esteve mais perto do abismo nuclear do que se acreditava anteriormente.

Trafegando em caminhões totalmente fechados, uma equipe de construção militar sob o comando do Exército Nacional do Povo da Alemanha Oriental foi levada a uma remota área de floresta perto de Kossa, no estado da Saxônia, que na época fazia parte da Alemanha Oriental comunista. Eles não podiam ouvir nada, ver nada ou dizer nada - estavam ali só para trabalhar.

Primeiro os soldados montaram 6 km de cerca de aço e instalaram nela 6 mil volts de eletricidade. Os homens fizeram buracos profundos com escavadeiras e neles ergueram paredes de concreto. Depois a instalação subterrânea foi dotada de sistemas eletrônicos.

A fortaleza secreta foi concluída em 1979. Localizada no meio de um campo de arbustos, a instalação consistia em seis casamatas separadas que só podem ser vistas do ar, espalhadas por uma área de 75 hectares e construídas com portas de aço resistente a explosões e chuveiros de descontaminação.

Qualquer pessoa interessada em visitar as instalações hoje deveria usar botas de borracha. A estrada passa por espessas florestas de pinheiros e termina em um portão.

Olaf Strahlendorff, que é o diretor do Museu Militar de Kossa, sai de uma cabana pintada em camuflagem para cumprimentar os visitantes. "Olá", diz. "É daqui que os russos planejavam conduzir a Terceira Guerra Mundial."

Passando por câmaras de ar à prova de gás, o homem desce por uma escada estreita, onde se veem macacões protetores e dosímetros enferrujados. O ar está pesado, cheirando a madeira compensada mofada. Caminhões militares com antenas de satélite estão estacionados dentro de estruturas subterrâneas de 40 metros de comprimento, conhecidas como "tubos para veículos".

Até recentemente, a linha oficial era que essa instalação incomum serviu como abrigo para o comando territorial do Terceiro Distrito Militar do Exército Nacional do Povo, que teria cerca de 90 mil soldados sob seu comando em períodos de guerra.

Linha direta para Moscou
Mas diversos historiadores hoje suspeitam que ela tivesse outro objetivo. Por exemplo, Torsten Diedrich, do Instituto de Pesquisa Histórica Militar, sediado em Potsdam, atribui um papel muito maior à casamata - que as forças armadas alemãs, as Bundeswehr, talvez em uma medida míope, venderam para um taxidermista da África do Sul em 1993. "Kossa era um bunker de comando para o Pacto de Varsóvia", diz Diedrich.

No caso de hostilidades militares, 350 oficiais e oficiais subgraduados, juntamente com uma equipe completa de telecomunicações de 250 especialistas, poderiam ter-se servido nesse posto fortificado, semelhante a uma prisão, onde teriam comandado um exército de milhões rumando para a Europa Ocidental.

Ainda hoje há telefones empoeirados na casamata. Antenas subterrâneas se estendem sob o solo da floresta. O bunker tinha linhas diretas para Moscou. Usando estações de rádio troposféricas, eles poderiam enviar mensagens mesmo através de grandes clarões atômicos.

Mas isso teria sido suficiente para a batalha final? Alguns especialistas continuam céticos. "Eu acho um pouco pequeno demais para um centro de comando na linha de frente", diz o historiador do Bundeswehr Heiner Bröckermann.

Estruturas misteriosas
Por trás da controvérsia há um problema fundamental. Embora os filmes de Hollywood costumem retratar os rudes marechais soviéticos com os dedos prestes a apertar o botão vermelho, nenhum historiador contemporâneo pode dizer com qualquer grau de certeza onde se localizariam os postos de comando de uma guerra nuclear.

Quando os soviéticos se retiraram da antiga Alemanha Oriental, deixaram para trás um grande número de estruturas defensivas e campos de treinamento militar contaminados, mas ninguém sabe exatamente qual era o objetivo dessas instalações.

O que está claro, porém, é que no caso de uma guerra o líder alemão-oriental Erich Honecker teria se refugiado em Prenden, perto de Berlim, onde o Politburo tinha montado um vasto bunker fortificado, com uma cozinha completa e banheiro. Mas qual era o objetivo dos outros 1.200 bunkers da Alemanha Oriental?

Hoje em dia, caçadores de tesouros armados de detectores de metais ocasionalmente vasculham as câmaras subterrâneas mofadas. Algumas das estruturas desmoronaram ou estão cheias de água. Outras foram transformadas em museus.

Cogumelos já brotaram no posto de comando de Kreien. Enquanto isso, em Mosel, perto de Zwickau, um antigo quartel-general do Exército Nacional do Povo hoje abriga uma instalação para testes de motores da Volkswagen. "Os arquivos russos continuarão selados por mais 70 anos", diz Diedrich, "e por isso não sabemos o suficiente para decifrar o objetivo desses prédios."

No entanto, pode-se deduzir um bocado sobre o formato geral dos cenários russos para uma guerra mundial entre os blocos oriental e ocidental.

Quando diversos arquivos foram abertos depois do fim da Guerra Fria, o mundo ficou sabendo que o exército soviético estava preparado para pegar o Ocidente de surpresa com um ataque decisivo. A Europa esteve mais perto do abismo nuclear do que muitos imaginavam.

É verdade que os planejadores militares do bloco oriental sempre trabalharam com base na suposição de que uma "agressão" viria da Otan. No entanto, teria bastado para os soviéticos descobrir evidências seguras de um ataque iminente para que o comando geral ordenasse um ataque nuclear preventivo.

Esse ataque foi planejado para ser rápido e surpreendente. "Eles estavam determinados a conduzir a guerra no território do adversário", diz o historiador contemporâneo Harald Nielsen.

Para se preparar para a eventualidade de um conflito militar em plena escala, os mais graduados militares de Moscou dividiram o mundo em 14 "teatr voiny" ("teatros de guerra"), que se estendiam do Extremo Oriente ao oceano Ártico.

O Kremlin previu os combates mais pesados na Europa Central. A região tem "importância econômica destacada e particularmente grandes reservas de pessoas", notou o ex-comandante e chefe do Pacto de Varsóvia Andrei Grechko.

Isto levou a aliança comunista a manter cem maciças divisões (aproximadamente 2 milhões de soldados) de prontidão para o "teatro de guerra ocidental". Somente no território da Alemanha Oriental os russos tinham 7 mil tanques, 6.500 transportes de pessoal blindados, 700 aviões e 31 depósitos de ogivas nucleares.

Procedimento rápido
No momento em que a ordem fosse emitida, tudo aconteceria extremamente rápido:

 * No norte, o exército polonês deveria avançar e chegar à península da Jutlândia, perto da Dinamarca, em 6 dias;
 * A frente sudoeste (reforçada por unidades checas) deveria marchar para o estado da Baviera, no sul da Alemanha;
 * Caberia à "frente central", apoiada por divisões da Guarda Soviética, romper a fronteira em Helmstedt e avançar para a região do Ruhr e da Lorena na França.

Durante os primeiros 90 minutos, esse ataque por terra teria sido acompanhado de uma chuva de ogivas convencionais e nucleares destinadas a milhares de alvos predeterminados.

Instalações da Otan, aeroportos e centros de comunicações, gabinetes de governo, usinas de energia e cruzamentos de tráfego até o rio Reno seriam reduzidos a cinzas. Mapas de campanha do Pacto de Varsóvia hoje acessíveis têm círculos vermelhos sobre as cidades de Antuérpia, Amsterdã, Bremen, Cuxhaven, Emden e Munique.

"Rolo compressor"
Então os tanques seriam despachados. "Os soldados atacantes deveriam atingir as margens do Reno antes que qualquer um demonstrasse sintomas de radiação", diz o historiador polonês Pawel Piotrowski. O plano então era substituir essas tropas contaminadas por radiação por unidades do "Segundo Esquadrão Estratégico". As autoridades da Otan chamavam isto de "rolo compressor polonês-soviético".

Uma campanha tão colossal teria exigido uma sala de guerra - um centro nevrálgico para coordenar os vários exércitos, forças de ar e terra e brigadas de mísseis. Mas onde ele se localizava?

O que os historiadores sabem é que se uma grande guerra tivesse irrompido na década de 1970 o comandante em chefe das Forças Armadas Unidas do Pacto de Varsóvia, Leonid Brejnev, teria se deslocado para uma casamata perto de Moscou. É para lá que as linhas de comando teriam convergido.

Em Legnica, na Polônia, a 20 km a leste do rio Oder, que corre pela fronteira polonesa-alemã, foi localizado um posto avançado de comando que teria sido o quartel-general de coordenação de toda a Europa. Ao todo, 300 generais e 60 mil soldados estavam constantemente estacionados lá.

Esconderijo
Nesse posto de comando ficava longe demais, porém, para um ataque-relâmpago lutado na região entre os rios Elba e Reno. Além disso, documentos mostram que o comando operacional para esse grande assalto ao Ocidente ficaria nas mãos do alto comando das forças armadas soviéticas na Alemanha.

Os principais comandantes dessa unidade viviam em uma base militar em Wünsdorf, ao sul de Berlim, embora durante um estado de alerta reforçado eles teriam fugido imediatamente para outro local. O sigilo da base havia sido violado - a Otan a havia localizado.

Para onde teriam ido os principais oficiais? Que esconderijo teriam escolhido para uma guerra nuclear? Essa é a pergunta chave.

Hans-Albert Hoffmann, um ex-tenente-coronel do Exército Nacional do Povo, acha que sabe para onde eles teriam rumado. Ele supõe que o staff da frente, que incluía até mil oficiais, teria passado fugido discretamente durante a noite e rumado para "Möhlau ou Schwepnitz".

Os nomes representam duas instalações militares soviéticas que nunca foram usadas em tempo de paz e eram mantidas estritamente secretas. A instalação de Möhlau está fechada hoje, depois de ter sido demolida com explosivos. Schwepnitz - que nunca foi totalmente explorada - tem dois níveis subterrâneos e está inundada de água da chuva.

Falkenhagen, no estado alemão de Brandemburgo, é muitas vezes citado como o antigo centro de comando de guerra nuclear da Alemanha Oriental. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas construíram uma usina química dentro do bunker de concreto.

Ideal para atacar o Ocidente
Hoje outro local chamou a atenção das pessoas: Kossa. "Sua localização geográfica teria tornado o bunker ideal para o grande ataque contra a Europa Ocidental", diz Strahlendorff. Além disso, a Otan nunca descobriu a instalação.

Outro fato que sustenta essa teoria é o de que Kossa estava praticamente lotado de material eletrônico para comunicações. A instalação tinha até um computador "mainframe" AP3, feito pela fábrica alemã-oriental Robotron. Tecnologia de vídeo sofisticada teria possibilitado enviar planos de batalha diretamente para a frente.

Mas ainda há dúvidas. Alguns especialistas dizem que a casamata na Saxônia é simplesmente pequena e desconfortável demais. Os banheiros parecem demasiado espartanos. "Um general jamais teria se sentado em um destes", diz Bröckermann. A construção também não tinha uma cozinha adequada: em uma emergência, a elite militar de Moscou teria de comer bolachas e carne enlatada.

Por outro lado, eles certamente não pretendiam usar o posto de comando por muito tempo. Segundo seus planos, os soviéticos pretendiam atingir o Reno em sete dias - e o Atlântico em 12.

Milhares de vítimas
Também há acordo sobre o fato de que na antiga Alemanha Oriental a instalação esteve plenamente operacional a todo momento. Uma equipe de 48 técnicos recrutados mantinha o equipamento, todas as salas aquecidas e garantia que a cerca elétrica estivesse ligada - o que representou um consumo elétrico anual de 345 mil kWh.

Todos esses esforços foram - felizmente - inúteis. O inferno nuclear nunca foi lançado.

No entanto, o bunker foi responsável por um grande número de vítimas - animais silvestres. Como explica Strahlendorff, "milhares de coelhos e cervos morreram na cerca elétrica".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[Der Spiegel, 11/04/2010]

Shakespeare foi Shakespeare

Patricia Tubella, em Londres

O especialista James Shapiro desmonta as teorias que negam sua existência

Shakespeare escreveu as obras de Shakespeare? A verdadeira identidade do maior dramaturgo de todos os tempos, que legou obras repletas de símbolos universais como a paixão, a ambiguidade, a sátira ou o instinto político, continua dividindo os círculos culturais quase 400 anos depois da morte do bardo de Stratford-upon-Avon (1564-1616). Foi um impostor, uma fraude, a assinatura encobridora de um personagem mais ilustre? As teorias conspiratórias nunca deixaram de estar em voga, mas na era da internet dispõem inclusive de uma melhor tribuna.

Representantes da nata teatral britânica, como Derek Jacobi ou Vanessa Redgrave, aderiram a essa corrente de ceticismo. O diretor Mark Rylance afirma sem recato que a criação de Hamlet, Otelo ou Macbeth foi produto de uma "cabala literária", da qual fazia parte sir Francis Bacon. Antes deles, outras figuras de renome como Mark Twain, Henry James ou Sigmund Freud demonstraram preconceitos culturais semelhantes, apoiando-se em um certo esnobismo e em algumas pistas mais que precárias, na opinião do escritor americano James Shapiro, que desmontou todas essas teorias em seu livro "Contested Will: Who Wrote Shakespeare?" [Testamento contestado: quem escreveu Shakespeare?].

Como pôde o filho de um simples comerciante de lã, açougueiro e meeiro, um homem de estudos limitados que escrevia para pagar suas dívidas e que nunca viajou, entender o mundo de reis e cortesãos, tratar de assuntos de Estado, filosofia, leis, música ou a arte da falcoaria? Shapiro, professor da Universidade Columbia e especialista na obra do autor inglês (a quem já dedicou o livro "Um Ano na Vida de William Shakespeare: 1599"), propõe um percurso histórico por algumas das teorias negacionistas de maior repercussão para salientar, antes de tudo, seu anacronismo: as suspeitas sobre a pluma de Shakespeare só surgem 200 anos depois de sua morte. Ninguém antes encarou a leitura de suas obras levando em conta a biografia do criador.

Denso em histórias e argumentos, ao mesmo tempo que ameno, "Contested Will: Who Wrote Shakespeare?" relata como as teorias alternativas nascem no início do século 19, quando se fortalece a suposição de que os trabalhos artísticos são reflexo das chaves pessoais do autor e devem ser interpretados como uma autobiografia, inclusive espiritual, segundo os românticos.

A americana Delia Bacon, filha de um pregador visionário, afirmou em um estudo publicado em 1857 que Shakespeare era "um iletrado e ator de quarta categoria, simples demais" para ter concebido uma obra que manifesta "os últimos refinamentos da mais alta educação parisiense". Escolheu como alternativa o poeta, filósofo e cientista Francis Bacon (do qual não era parente), com o argumento de que seu ódio secreto ao despotismo monárquico o obrigava a recorrer a um pseudônimo.

Influenciada pelas ideias de Mark Twain - que também afirmava que Elisabeth 1ª era na verdade um homem -, Delia Bacon não trouxe mais que elucubrações para o debate, embora, ao morrer em um hospital psiquiátrico, uma nova geração tenha tomado seu lugar com uma vasta produção de artigos. Em 1920, o professor T. J. Looney atribuiu em um livro a autoria das obras a Edward de Vere, conde de Oxford, baseando-se em seus conhecimentos de falcoaria, na coincidência de que tinha três filhas - como o rei Lear - e outras generalidades. Looney passa por alto que o conde morreu em 1604, antes de ter sido escrito o grosso da obra shakespeariana. Isso não foi obstáculo para que Sigmund Freud abraçasse a teoria como alimento de suas próprias obsessões: relacionou o complexo de Édipo de Hamlet com o de Edward de Vere, impotente diante do casamento de sua mãe com outro homem depois de enviuvar.

Outra tese afirma que o dramaturgo e poeta inglês Christopher Marlowe - assassinado em 1593 - fingiu sua morte para continuar escrevendo sob o nome de William Shakespeare, de quem era contemporâneo. Essa teoria denota, segundo Shapiro, a resistência entre um vasto setor do mundo acadêmico a aceitar que William Shakespeare escreveu várias de suas obras em coautoria. Porque Marlowe foi um desses colaboradores, em uma prática habitual nos tempos do teatro elisabetano. Inclusive hoje, acrescenta Shapiro, os estudiosos estão muito longe de entender como o bardo e seus coautores dividiam tramas e personagens, revisavam seus respectivos trabalhos ou unificavam estilos.

A verdade é que apenas um punhado de documentos confirma a trajetória privada do escritor que deixou tal marca na literatura universal. Nem sequer existe absoluta certeza sobre seus verdadeiros traços físico, objeto de perene controvérsia entre historiadores e especialistas do mundo da arte. Mas o veredicto de Shapiro é uma defesa a toda regra do homem de Stratford. Seu retrato o apresenta como um homem de teatro, que lia, observava, escutava e colocava tudo em obras que refletem o gênio da imaginação. Sim, conclui Shapiro, Shakespeare escreveu Shakespeare.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 10/04/2010]