Climagate

E-mails roubados por hackers revelam que cientistas não são santos 

A uma semana da conferência sobre mudança do clima em Copenhague, os "céticos" do aquecimento global marcaram um tento. Conseguiram meter uma cunha na credibilidade dos que defendem que ele é uma realidade e que a ação do homem ("antropogênica") é decisiva para agravar o efeito estufa.
O caso já ganhou apelido: "climagate". Hackers não identificados puseram na rede cerca de mil mensagens de e-mail e uns 3.000 documentos surrupiados de um servidor da Unidade de Pesquisa do Clima (CRU, em inglês) da Universidade de East Anglia, Reino Unido. Alguns deles realmente são, ou soam, comprometedores.
Os documentos que vieram à tona, até agora, não parecem comprovar nenhuma conspiração para passar por verdadeiros dados falsos sobre o aquecimento global antropogênico. Mas mostram que alguns adversários dos céticos não são santos.
A suspeita inicial mais grave era de manipulação de dados. Concentrava-se numa frase de Phil Jones, do CRU: "Acabei de finalizar o truque de Mike [Michael Mann] na [revista] "Nature" de acrescentar as temperaturas reais a cada série para os últimos 20 anos (isto é, de 1981 em diante) e desde 1961 para as de Keith [Briffa] a fim de esconder o declínio".
Que soa como manipulação de dados, soa. Mas as explicações sobre o contexto da frase também soam plausíveis. O blog de climatologistas pró-aquecimento RealClimate diz que se trata de compatibilizar dados de diferentes fontes (geleiras, densidade de anéis de crescimento de árvores, medidas reais etc.).
As estimativas de temperatura obtidas indiretamente por Briffa a partir das árvores divergem do registro de temperaturas reais medidas nas décadas recentes, e por isso o próprio autor recomenda que não sejam usadas. O "truque" seria só um ajuste, alegam seus defensores no RealClimate, embora sua composição com o verbo "esconder" seja para lá de suspeita.
É preciso ser ingênuo, ou ignorante de como a pesquisa científica de fato funciona, para enxergar aí um pecado mortal. Em todas as áreas de investigação pesquisadores escolhem e apresentam os dados mais favoráveis para sua tese. Criminoso seria só se escondessem medidas e informações capazes de contradizer sua conclusão (e os dados de Briffa foram publicados).
Outras mensagens indicam que os adversários dos céticos se organizavam para fechar-lhes as portas dos periódicos científicos, ao mesmo tempo em que acusavam o inimigo de não conseguir publicar artigos nas revistas reconhecidas. Feio, não é?
Ninguém consegue enganar todo mundo o tempo todo, porém. Bons estudos sempre acabam editados, mesmo que contrários ao paradigma dominante. Em especial se vierem lastreados em medidas e explicações sólidas. E está aí a internet para não deixar ninguém órfão.
De todo modo, é bom seguir o conselho da economista Megan McArdle em seu blog no sítio da revista "The Atlantic": tomar com um grão a mais de sal, de ora em diante, o argumento "ausência de publicações". Bem mais grave é outra suposta mensagem de Jones pedindo a Mann que apagasse e-mails objeto de um pedido formal de divulgação dos céticos, por meio da legislação britânica de acesso a informação. Não está claro ainda se as mensagens foram de fato deletadas, o que seria crime.
O simples fato de alguém se sentir à vontade para fazer um pedido desses por escrito sugere que os envolvidos de fato têm algo a esconder. Como, de resto, todos aqueles que acreditamos em sigilo de correspondência.

Por Marcelo Leite

[Folha de São Paulo, 29/11/2009]

Um passeio pelos labirintos de Borges

Visita guiada revela os vestígios da Buenos Aires dos anos 20, uma cidade onde a sofisticação dos cafés convivia com os personagens marginais descritos na obra do escritor que captou a alma da Argentina.

Leia a reportagem da revista História Viva. Clique aqui...

As caras de um país

Coletânea revisita pensadores-chave para a interpretação do Brasil, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda

Tal como aqueles pais atônitos com os descaminhos de um filho com constantes problemas para tocar sua vida, os estudiosos que se dedicam a pensar o passado e o presente da sociedade brasileira, não raro, se perguntam: onde será que erramos?
Indaga-se o passado -os decisivos tempos de formação-, esquadrinha-se o presente -que não se cansa de reproduzir o passado- e eis que, depois de uma vida quebrando a cabeça com o problema, um punhado desses angustiados pensadores consegue elaborar uma resposta razoavelmente plausível e articulada para a questão.
Para aqueles leitores igualmente angustiados que querem conhecer mais de perto uma amostragem substantiva dessas respostas -sempre parciais e provisórias-, é imprescindível a leitura de "Um Enigma Chamado Brasil". Trata-se de uma coletânea de ensaios organizada por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz, que acaba de ser editada pela Companhia das Letras [448 págs.., R$ 53]. "Um Enigma..." reúne 29 ensaios sobre 29 "intérpretes do Brasil", de Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, ao crítico literário Roberto Schwarz, passando pelos incontornáveis Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. e por duas dezenas de outros nomes de destaque da intelectualidade brasileira dos séculos 19 e 20.

Introdução ao Brasil
A seleção dos tais "intérpretes", que em livros dessa natureza nunca agradam a gregos e a troianos, tem uma perceptível marca sociológica, o que, no entanto, não compromete minimamente sua abrangência e seu interesse.
Em linhas gerais, trata-se de um livro concebido de maneira inteligente e coesa, redigido com clareza e simplicidade, que cumpre inteiramente o objetivo a que é destinado pelos organizadores: funcionar "como uma introdução ao pensamento social brasileiro". É evidente que, num universo de 29 ensaios, há escritos de qualidade variada. Uns poucos colaboradores, muito poucos, pecam ligeiramente pelo carregado da linguagem, carregado tanto mais problemático num livro que se quer acessível e "avesso ao hermetismo conceitual", como esclarecem os organizadores.
Outros, também poucos, empolgam-se em demasia ao apresentar as ideias dos seus analisados e exageram na atualidade do seu pensamento, esquecendo-se por vezes de que, gostemos ou não, todo modo de pensar tem seu tempo. Há ainda aqueles cuja análise oscila, não se decidindo ao certo se a apresentação deve incidir sobre a obra mestra ou sobre a totalidade das obras de um determinado autor.
A maioria dos ensaios, porém, cumpre com competência a missão de colocar à disposição do leitor interessado uma breve, mas informativa, visada sobre nomes e obras cruciais para a formação do pensamento brasileiro, muitas das quais pouco conhecidas do público.

Panoramas instrutivos
Merecem destaque, entre outros, a excelente síntese que José Murilo de Carvalho traça do pensamento radical do Segundo Reinado [1840-89], a esclarecedora articulação entre as vidas e as obras de André Rebouças e Paulo Prado, que promovem, respectivamente, Maria Alice Rezende de Carvalho e Carlos Augusto Calil. Ou, ainda, os instrutivos panoramas das ideias mestras que amparam as interpretações do Brasil -de aspectos, melhor dizendo- de Nina Rodrigues (Lilia M. Schwarcz), Euclydes da Cunha (Nísia Trindade Lima), Mário de Andrade (Sérgio Miceli), Raymundo Faoro (Luiz Werneck Vianna), Costa Pinto (Marcos Chor Maio) e Fernando Henrique Cardoso (Leôncio Martins Rodrigues). Trata-se de um empreendimento oportuno e bem realizado, que certamente se tornará, ao menos no meio universitário, uma obra introdutória de consulta indispensável. Nele, os futuros historiadores, críticos, cientistas sociais -enfim, os futuros decifradores do Brasil- poderão tomar um contato inicial com muitas daquelas interpretações da sociedade brasileira. De tão poderosas, ganharam entre nós o estatuto de verdade e acabaram se incorporando profundamente no modo como nos produzimos a nós próprios e nos comportamos em relação aos nossos concidadãos.

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e organizador de "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (ed. José Olympio).

[Folha de São Paulo, 29/11/2009]

"E o mais tudo vá numa nuvem de poeira"

“E O MAIS TUDO VÁ NUMA NUVEM DE POEIRA”: notas sobre um movimento separatista na América portuguesa
O artigo de Jorge Victor de Araújo Souza fala de um movimento separatista que, na segunda metade do século XVII, sacudiu os alicerces da Congregação beneditina portuguesa. O direito de elegerem abades e demais cargos eclesiásticos eram as principais exigências dos monges envolvidos. Para além da esfera institucional, essa comunicação demonstrará como os principais personagens estavam posicionados e como teceram estratégias para alcançar seu intuito. Em nossa pesquisa procuramos recuperar as sociabilidades dos monges, suas ligações institucionais e, principalmente, suas parentelas.

Leia o o artigo e conheça a Revista Eletrônica de História do Brasil (REHB), criada em 1997 pelo professor Galba Di Mambro, junto ao Departamento de História e ao Arquivo Histórico da UFJF... Clique na imagem.

Mas afinal, o que era mesmo comunismo?

A SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA “COMUNISMO” ATRAVÉS DOS TEXTOS ANTICOMUNISTAS QUE CIRCULARAM NO PIAUÍ DA DÉCADA DE 1960
Marylu Alves de Oliveira

O objetivo deste artigo é analisar as principais significações dadas a palavra “comunismo” ao longo da década de 1960 através dos textos anticomunistas que foram produzidos e circularam no estado do Piauí. Permanências/rupturas é a melhor definição para essa significação, uma vez que algumas características atribuídas ao comunismo permanecerem durante toda a década de 1960, contudo, percebesse que, também, outros elementos foram se modificando na sua significação determinada pelos contextos e acontecimentos sociais daquele momento na política brasileira e piauiense.

Leia e conheça a Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. Clique na imagem.

Um estádio não é um campo de batalha, escreve Jacques Le Goff

A polêmica que não para de crescer desde a partida entre a França e a Irlanda em 18 de novembro me parece ser a oportunidade para abrir um debate sobre o lugar do futebol, e, mais amplamente, do esporte dentro da sociedade francesa, assim como em nosso mundo contemporâneo.

Comecemos pela partida em si. Está sendo vista como um ultraje, pois seu resultado, cuja importância é considerável de um ponto de vista esportivo - a qualificação para a fase final da Copa do Mundo de futebol a partir de 11 de junho de 2010 na África do Sul - , se deve ao erro de uma pessoa, o árbitro. Mas este só é entendido dentro de uma reconsideração da direção da equipe da França e da organização internacional do futebol mundial.

Mas também mais amplamente pela revisão minuciosa das relações entre o esporte a sociedade. O esporte existe desde a Antiguidade. Ainda que alguns digam que ele morreu, assim como outras instituições antigas, durante a Idade Média. Ele foi substituído ou por atividades guerreiras reais, ou por práticas lúdicas sob forma de torneios ou de jogos rurais, que eram condenados pela Igreja, pois o desaparecimento do esporte na Idade Média se deve à hostilidade do clero em relação a certas práticas do corpo.

Como mostrei, a Igreja fazia jogo duplo em relação ao corpo. Por um lado, ela o condenava como algo de diabólico - ele era, segundo o papa Gregório Magno, "a abominável vestimenta da alma" - ; por outro, ela o exaltava e glorificava, em especial através da ressurreição do corpo. Dentro dessa tensão que é bem ilustrada pelo quadro de Pieter Bruegel, "O Combate entre o Carnaval e a Quaresma" (1559), o esporte está do lado errado, e não há nem circo, nem estádio na Idade Média.

O esporte renasceu a partir do fim do século 18, e se reconstituiu a partir do século 19 sob formas que lembravam o esporte antigo, sendo que a mais espetacular foi a renovação dos Jogos Olímpicos em 1896. Mas ele também reapareceu sob formas que a Antiguidade havia ignorado. Ainda que alguns esportes tenham conservado o caráter individual que o carregava na Antiguidade, foram criados jogos coletivos cujo nascimento é contemporâneo da difusão da democracia no Ocidente.

Em seu período moderno e contemporâneo, o esporte se tornou um fenômeno planetário. Se na Antiguidade o esporte tinha um aspecto público e de espetáculo, este se tornou predominante e essencial.

Então um incidente como este que ocorreu durante a partida França-Irlanda se tornou um fenômeno quase global que questiona indivíduos, mas também as instituições e os valores que sustentam nossas sociedades. Lembremos que o futebol se tornou o esporte mais popular na Europa, em parte da África, na América do Sul, com o Brasil e a Argentina à frente. Ele já conquistou o México e se expande nos Estados Unidos. Muito praticado na Turquia, em Israel e nos Emirados Árabes, ele se insinua principalmente na Coreia e no Japão.

Em um domínio que adquiriu tamanha importância no plano esportivo, mas também social e político, este incidente vai muito além de uma simples notícia. Parece-me que deve ser a ocasião para importantes reformas. As primeiras são de ordem esportiva. A mão de Thierry Henry me parece ter uma importância secundária, se deixarmos de lado as consequências que ela causou.

O primeiro problema a ser resolvido é o da qualidade da arbitragem. O árbitro se tornou central na arte do futebol. Muitas vezes ele é questionado. E, segundo minha experiência de espectador, na maioria das vezes ele o é com razão.

Não podemos criticar o árbitro da partida França-Irlanda por não ter visto a mão de Thierry Henry. Mas ele deveria ter perguntado a seu juiz de linha e ao capitão dos Azuis. Ele não fez nem uma coisa, nem outra.

Então é preciso exigir mais rigor na formação dos árbitros e fortalecer suas capacidades de julgamento, seja recorrendo a um árbitro situado atrás do gol, seja através do vídeo, ou ainda por outros meios que os especialistas encontrarem. Mas não se pode ficar como está.

Faço uma observação indiretamente ligada ao problema levantado aqui, mas devo assinalar que, ainda que seja delicado julgar a natureza de uma mão voluntária, involuntária ou, o que me parece ser o caso da mão de Thierry Henry, um simples reflexo (pessoalmente, eu não puniria estes dois últimos casos), a apreciação deve ser deixada ao árbitro.

As reações na França e no mundo inteiro são compreensíveis porque o resultado ia contra o curso do jogo. A França não jogou bem, e sua vitória foi vista como ultrajante. Para além da possibilidade de disputar novamente a partida, ao que sou favorável - , conviria reforçar o critério de seleção do seletor das equipes nacionais, de forma que a consequência de um incidente como esse não possa ser agravada pela mediocridade do jogo da equipe que se beneficie com ele.

Também acredito que esse incidente deva ser a ocasião para tentar deter os excessos nas relações que os públicos mundiais mantêm com o esporte, particularmente com o futebol. A repressão policial de pequenos grupos de encrenqueiros é evidente, mas é essencial que as instâncias que pesam sobre o público - escolas, famílias, governos e especialmente as mídias - insistam sobre o fato de que o esporte não é uma guerra, e que uma partida não é uma batalha. É um divertimento que não deve ser poluído pela injustiça ou por um erro evitável.

Dizem que o esporte pode unir os povos. Eu acredito nisso. Mas constato que, com exceção de algumas modestas declarações, ele não está sujeito à formação necessária. O esporte se tornou uma instituição. Ele deve obedecer a valores de justiça e de competição pacífica. O que se vê muitas vezes é o contrário.

É hora de cada um de nós reagirmos contra essa deplorável evolução que está transformando um esporte nascido com a democracia, capaz de alimentar um patriotismo pacífico, em uma explosão de nacionalismo desonroso e de comportamentos deprimentes.

Se a reflexão sobre essa partida estimular reformas profundas e o restabelecimento dos valores na relação entre o esporte e a sociedade, esse infeliz incidente terá servido para alguma coisa.

Jacques Le Goff é historiador, autor de "Uma breve história da Europa", "Uma longa Idade Média" e "A bolsa e a vida", entre outros

Tradução: Lana Lim

[Le Monde, 28/11/2009] 

Brancos se afastam de Obama, e pastores oram por sua morte

O colunista do UOL Notícias em Washington, Sérgio Dávila, fala sobre novas pesquisas de opinião nos Estados Unidos.



Visite o blog do Sérgio Dávila.

Entrevista: Charles Darwin: o homem da evolução


O naturalista inglês Charles Darwin foi criado como um lorde, mas prefere a linguagem coloquial para comentar o impacto de suas ideias e relembrar suas aventuras a bordo do navio Beagle


Charles Robert Darwin nasceu em 12 de fevereiro de 1809, na Inglaterra. Seu pai queria que ele seguisse a profissão dos homens da família, a medicina. Mas o curioso estudante, que colecionara insetos e pedras quando criança, não suportou a primeira cirurgia a que assistiu. O pai sugeriu, então, que se tornasse clérigo. No entanto, logo viu o rapaz embarcar como naturalista do barco inglês Beagle, cuja missão era mapear a costa sul-americana.

Resignado, o pai acabou fazendo investimentos que permitiram ao jovem não ter que trabalhar. Assim, Darwin pôde dedicar-se a pesquisar e desenvolver teorias. E que teorias! Com a publicação de A Origem das Espécies, ele concluiu que os seres evoluem por meio da chamada "seleção natural" - em que os indivíduos que nascem mais aptos às condições do ambiente prevalecem sobre os outros e passam suas características adiante. A ideia sacudiu o pensamento da época, acostumado a ver homens e animais como fruto da criação divina.

Da série Entrevista com Gente Morta, da revista Aventuras na História. Clique na imagem para ler.

A origem das espécies em HQ

Marco da ciência moderna, livro de Charles Darwin é recriado pelo cartunista e biólogo Fernanzo Gonsales
















[Folha de São Paulo, 22/11/2009]

Duas imagens...


Venezuelanos fazem protesto em Caracas contra o acordo para instalar bases norte-americanas na Colômbia. [Foto: Juan Barreto/AFP]


Peregrinos muçulmanos tocam em pilar sagrado na Montanha da Misericórdia (Jabal al-Rahma), em Arafat, região da cidade santa de Meca. Cerca de 2,5 milhões de muçulmanos de mais de 160 países viajam anualmente para as cidades sagradas de Meca e Medina, no oeste da Arábia Saudita. Todo muçulmano tem que fazer a peregrinação ao menos uma vez na vida, segundo as regras do Islã [Foto: Mahmud Hams/AFP Photo]

Tchecoslováquia celebra uma revolução com raízes em um rumor

Jonathan Adams, em Praga (República Tcheca)
Vaclav Havel, o dissidente que liderou a Revolução de Veludo que derrubou o comunismo na Tchecoslováquia, já declarou que "verdade e amor devem triunfar sobre a mentira e o ódio". Mas a revolução - seu nome sendo uma referência ao punho cerrado em uma luva de veludo - foi provocada por um falso rumor que permanece um mistério 20 anos depois.

Nesta terça-feira, milhares de tchecos marcharam pelas ruas daqui, ao som de sirenes e rosnados dos cães da polícia, reproduzindo de forma impressionante a marcha estudantil não-violenta em 17 de novembro de 1989, na qual a polícia cercou os manifestantes e rumores se espalharam de que um estudante universitário de 19 anos, chamado Martin Smid, tinha sido morto brutalmente. Dezenas de outros tinham sido violentamente espancados. Mas, na verdade, ninguém morreu.

Jan Urban, um líder dissidente e jornalista que ajudou a disseminar a mentira que ele, como muitos outros, acreditava ser verdade na época, lembrou em uma entrevista que a notícia da suposta morte se espalhou rapidamente, ajudando a despertar uma nação de sua apatia coletiva e fornecendo a fagulha - oito dias após a queda do Muro de Berlim - para acender a rebelião pacífica que culminou com o fim do regime.

"Até aquele dia, havia um acordo entre o regime comunista e o povo: 'Vocês calam a boca e nós cuidaremos de vocês'", ele disse. "Mas no momento em que as pessoas tiveram a impressão de que seus filhos estavam sendo mortos, o acordo foi cancelado. Como jornalista, eu me envergonho da mentira porque foi um erro profissional. Mas não lamento, porque ajudou a provocar o fim de quatro décadas de comunismo."

Havel, o presidente Vaclav Klaus e o primeiro-ministro Jan Fischer se juntaram, nesta terça-feira, a centenas que colocavam velas no monumento que marca o confronto. "A manifestação, a marcha, colocou a história em movimento", disse Havel.

Mas duas décadas após uma mentira ter ajudado a provocar uma revolução, muitos tchecos permanecem sem saber ao certo sobre a verdade do que transcorreu naqueles dias de novembro de 1989, assim como as consequências de uma revolução que alguns sentem ter fracassado em cumprir suas promessas.

A República Tcheca, um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia, é em muitos aspectos a inveja de seus vizinhos. Ela conta com uma democracia vibrante e mais riqueza relativa do que muitos aqui poderiam imaginar. Em uma recente pesquisa feita pela Academia Tcheca de Ciências, 81% dos tchecos disseram que não desejam retornar ao velho regime, apesar de notáveis 14% dizerem que a vida era melhor antes de 1989.

Entre as queixas está uma frustração com a classe política, um ressentimento com as desigualdades sociais e um sentimento geral de apatia e alienação. Um senso de estagnação política tomou conta do país desde que o governo do primeiro-ministro Mirek Topolanek foi derrubado em um voto de não-confiança em março, embaraçando o país na metade de sua presidência da União Europeia.

Lukas Toth, 23 anos, um estudante de filosofia que tinha 3 anos durante a revolução, escreveu recentemente um manifesto expondo as queixas dos estudantes universitários com sua jovem democracia. Ele lamentou o país permanecer atolado na "ressaca comunista", que ele caracterizou como uma tendência de olhar para dentro, um cinismo a respeito da política e uma relutância geral em confrontar o passado. Ele disse que muitos de seus pares não tinham ideia do que estava sendo celebrado em 17 de novembro, porque a história recente foi maquiada nos livros de história tchecos.

"Durante a era comunista, as pessoas aprendiam a sentar sobre suas mãos e não fazer nada, algo que não mudou com a Revolução de Veludo", ele disse. "Uma reflexão histórica não ocorreu porque não podemos lidar com a dor de olhar com muita atenção para o que aconteceu."

Quando perguntados nesta terça-feira sobre o significado do 17 de Novembro, muitos tchecos disseram que era apenas outra desculpa para não trabalhar.

Mas outros, como Mirek Kodym, um ex-segurança de 56 anos com rabo-de-cavalo, que publicava tratados políticos e literários ilegais antes de 1989 e que marchou nesta terça-feira como fez há 20 anos, disse que a Revolução de Veludo foi um momento seminal, no qual uma nação sitiada finalmente provou a liberdade.

"Hoje, você pode ser o que quiser e fazer o que quiser, pois ninguém interferirá", disse. "A nostalgia pelo passado é uma coisa estúpida."

Talvez seja um sinal tanto do pluralismo político do país quanto de sua amnésia coletiva que, 20 anos após a revolução, o Partido Comunista tcheco, um partido marxista não reformado, ainda conquiste quase 15% dos votos aqui.

Na última sexta-feira, ele divulgou uma declaração incendiária para marcar o aniversário de 17 de Novembro, acusando os governos eleitos democraticamente que se seguiram à revolução há 20 anos de "promessas e mentiras".

Havel, que pressionou pela abertura dos arquivos da polícia secreta e ajudou a proibir ex-informantes comunistas de exercerem qualquer cargo público responsável, se recusou a proibir o Partido Comunista em si quando era presidente, por temer causar uma caça às bruxas. Ele argumentou recentemente que a nostalgia pelo antigo regime reflete a condição de um povo que ficou aprisionado por tanto tempo que não sabe o que fazer com sua liberdade recém encontrada.

"Eu sempre comparei a ser solto da prisão", afirmou. "Na prisão, tudo é feito para você; você não decide nada. Eles dizem quando acordar, o que vestir, tudo é decidido por outras pessoas para você. Se você viver assim por anos e então for solto repentinamente, a liberdade se transforma em um fardo."

A Revolução de Veludo ocorreu tarde, mas ainda assim foi um episódio épico de teatro político quando finalmente ocorreu. Em meados de 1989, os governos comunistas da Polônia e da Hungria já tinham sucumbido. Milhares de alemães orientais fugiram para Budapeste e Praga, tentando ir para a Alemanha Ocidental por intermédio de suas embaixadas. Os tchecoslovacos se sentiram ainda mais encorajados quando o Muro de Berlim caiu, enviando o sinal mais potente do que o poder do povo pode fazer.

Após a marcha estudantil de 17 de novembro terminar em sangue, a oposição inchou em uma massa dissidente. Liderados por Havel, que estava na prisão por oposição ao governo, eles iniciaram o Fórum Cívico, que exigia eleições livres. Uma semana após a Sexta-Feira Sangrenta, o Politburo renunciou.

Quando centenas de milhares de pessoas se reuniram na Praça Wenceslas, em Praga, e uma maioria se mobilizou em uma greve geral em 27 de novembro, ficou claro que Havel e seu movimento democrático tinham triunfado.

Tradução: George El Khouri Andolfato

[Herald Tribune, 19/11/2009]

Mais presente do que nunca

Sua morte foi decretada, mas o túmulo nunca foi fechado: a questão ideológica continua muito presente na educação (e também fora dela). E não é demais questionar: é possível haver educação sem ideologia, ou a simples expressão desse desejo já é reveladora de um lugar de onde se vê (e pensa ) o mundo?
Leia o artigo da Revista Educação. Clique na capa.

2012...



O duro é saber que tem gente (e muita) que acredita...

A idéia de república no Império do Brasil

Ao longo de todo o século XIX, o republicanismo conheceu os mais diferentes projetos, acomodando-se às necessidades de cada região onde era defendido
Leia o artigo de Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional.
Clique aqui para ler.

"O Google é uma tragédia para os jovens", afirma Umberto Eco

Susanne Beyer e Lothar Gorris
O escritor e semioticista italiano Umberto Eco, curador de uma nova exposição no Louvre em Paris, falou à "Spiegel" sobre o lugar que as listas ocupam na história da cultura, as formas pelas quais tentamos evitar pensar na morte e por que o Google é perigoso para os jovens.

Spiegel: Sr. Eco, o senhor é considerado um dos grandes acadêmicos do mundo, e agora está inaugurando uma exibição no Louvre, um dos museus mais importantes do mundo. Entretanto, os temas de sua mostra soam um pouco lugar-comum: a natureza essencial das listas, poetas que listam coisas em seus trabalhos e pintores que acumulam coisas em suas pinturas. Por que você escolheu esses temas?
Umberto Eco: A lista é a origem da cultura. Ela faz parte da história da arte e da literatura. O que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível. Ela também quer criar ordem - nem sempre, mas com frequência. E como, enquanto seres humanos, lidamos com a infinitude? Como é possível entender o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários. Há uma atração em enumerar com quantas mulheres Don Giovanni dormiu: foram 2.063 pelo menos, de acordo com o libretista de Mozart, Lorenzo da Ponte. Nós também temos listas totalmente práticas - listas de compras, testamentos, cardápios - que, a seu modo, também são conquistas culturais.

Spiegel: A pessoa aculturada deveria então ser vista como um zelador tentando impor a ordem em lugares onde o caos prevalece?
Eco: A lista não destrói a cultura; ela a cria. Para onde quer que você olhe na história da cultura, encontrará listas. Na verdade, há uma variedade atordoante: listas de santos, exércitos e plantas medicinais, ou de tesouros e títulos de livros. Pense nas coleções sobre a natureza do século 16. Meus livros, a propósito, são cheios de listas.

Spiegel: Contadores fazem listas, mas também podemos encontrá-las nas obras de Homero, James Joyce e Thomas Mann.
Eco: Sim. Mas eles, é claro, não são contadores. Em "Ulysses", James Joyce descreve como seu protagonista, Leopold Bloom, abre suas gavetas e tudo o que ele encontra dentro delas. Vejo isso como uma lista literária, e ela diz muito sobre Bloom. Ou veja Homero, por exemplo. Na "Ilíada", ele tenta transmitir uma impressão do tamanho do exército grego. Primeiro ele usa metáforas: "Assim como um grande fogo florestal investe contra o topo de uma montanha e sua luz é vista de longe, enquanto marchavam, o brilho de suas armaduras reluzia nas alturas do céu". Mas não fica satisfeito. Ele não consegue encontrar a metáfora certa, então implora às musas para que o ajudem. Então ele chega à ideia de listar os nomes de muitos, muitos generais e seus navios.

Spiegel: Mas, ao fazer isso, ele não se desvia da poesia?
Eco: A princípio, pensamos que uma lista é algo primitivo e típico das primeiras culturas, que não tinham um conceito exato do universo e que, portanto, eram limitadas a listar as características que podiam nomear. Mas, na história cultural, a lista prevaleceu ao longo do tempo. Ela não é, de forma alguma, uma mera expressão das culturas primitivas. Uma nova visão de mundo baseada na astronomia predominou durante o Renascimento e o período barroco. E havia listas. E a lista com certeza impera na era pós-moderna. Ela tem uma mágica irresistível.

Spiegel: Mas por que Homero lista todos aqueles guerreiros e seus navios, se sabe que nunca será capaz de citar todos eles?
Eco: O trabalho de Homero se depara constantemente com o tópos do inexpressível. As pessoas sempre farão isso. Sempre fomos fascinados pelo espaço infinito, pelas estrelas incontáveis e galáxias além das galáxias. Como uma pessoa se sente olhando para o céu? Ela acredita que sua língua não é suficiente para descrever o que vê. Os amantes estão na mesma posição. Eles experimentam uma deficiência de linguagem, uma falta de palavras para expressar seus sentimentos. Mas os amantes tentam parar de fazer isso? Eles criam listas: seus olhos são tão belos, assim como sua boca, e a sua clavícula... As pessoas podem entrar em grandes detalhes.

Spiegel: Por que nós perdemos tanto tempo tentando concluir coisas que não podem ser realisticamente concluídas?
Eco: Nós temos um limite, um limite muito desencorajador e humilhante: a morte. É por isso que gostamos de todas as coisas que acreditamos não ter limites, e que, portanto, não têm fim. É uma forma de fugir dos pensamentos sobre a morte. Gostamos de listas porque não queremos morrer.

Spiegel: Em sua mostra no Louvre, você também mostra obras das artes visuais, como naturezas-mortas. Mas essas pinturas têm molduras, ou limites, e elas não podem mostrar mais do que de fato mostram.
Eco: Pelo contrário, o motivo pelo qual gostamos tanto delas é que acreditamos que somos capazes de ver mais do que elas mostram. Uma pessoa contemplando uma pintura sente necessidade de abrir a moldura e ver que coisas estão à esquerda e à direita da tela. Esse tipo de pintura é verdadeiramente uma lista, um recorte da infinitude.

Spiegel: Por que as listas e as acumulações são particularmente importantes para você?
Eco: As pessoas do Louvre me procuraram e perguntaram se eu gostaria de ser o curador de uma exibição no museu, e pediram para que eu elaborasse uma programação de eventos. Só a ideia de trabalhar num museu já era sedutora para mim. Estive lá sozinho recentemente, e me senti como um personagem num livro de Dan Brown. Fiquei ao mesmo tempo assustado e maravilhado. Percebi imediatamente que a exibição teria como tema as listas. Por que me interesso tanto pelo assunto? Não sei dizer exatamente. Gosto das listas pela mesma razão que outras pessoas gostam de futebol ou pedofilia. As pessoas têm suas preferências.

Spiegel: Ainda assim, você é famoso por ser capaz de explicar suas paixões...
Eco: ? mas não por falar sobre mim mesmo. Veja, desde a época de Aristóteles tentamos definir as coisas baseadas em sua essência. A definição do homem? Um animal que age de forma deliberada. Agora, levou 80 anos para os naturalistas conseguirem elaborar a definição de um ornitorrinco. Eles acharam infinitamente difícil descrever a essência desse animal. Ele vive na água e na terra; bota ovos, e apesar disso é um mamífero. Então com que se parece essa definição? É uma lista, uma lista de características.

Spiegel: Uma definição certamente seria possível com um animal mais convencional.
Eco: Talvez, mas isso tornaria o animal interessante? Pense num tigre, que a ciência descreve como um predador. Como uma mãe descreveria um tigre para seu filho? Talvez usando uma lista de características: o tigre é um felino, grande, amarelo, com listras e forte. Só um químico se referiria à água como H2O. Mas eu digo que ela é líquida e transparente, que nós a bebemos e que podemos nos lavar com ela. Agora você pode finalmente ver sobre o que estou falando. A lista é o marco de uma sociedade altamente avançada, desenvolvida, porque ela nos permite questionar as definições essenciais. A definição essencial é primitiva comparada à lista.

Spiegel: Pode parecer que você está dizendo que deveríamos parar de definir as coisas e que o progresso seria, em vez disso, apenas contar e listar as coisas.
Eco: Isso pode ser libertador. O período barroco foi um período de listas. De repente, todas as definições escolásticas que foram feitas no período anterior não serviam mais. As pessoas tentaram ver o mundo de uma perspectiva diferente. Galileu descreveu novos detalhes sobre a Lua. E, na arte, definições estabelecidas foram literalmente destruídas, e a variedade de assuntos se expandiu tremendamente. Por exemplo, vejo as pinturas do barroco holandês como listas: as naturezas-mortas com todas aquelas frutas e as imagens de armários opulentos de curiosidades. As listas podem ser anárquicas.

Spiegel: Mas você disse que as listas podem estabelecer a ordem. Então, tanto a ordem quanto a anarquia se aplicam? Isso tornaria a internet, e as listas criadas pelo mecanismo de busca Google, perfeitas para você.
Eco: Sim, no caso do Google, ambas as coisas convergem. O Google faz uma lista, mas, no minuto em que eu olho para minha lista gerada pelo Google, ela já mudou. Essas listas podem ser perigosas - não para pessoas mais velhas como eu, que adquiriram o conhecimento de outra forma, mas para os jovens, para quem o Google é uma tragédia. As escolas precisam ensinar a fina arte de discriminar.

Spiegel: Você está dizendo que os professores deveriam instruir seus alunos sobre a diferença entre o que é bom e o que é ruim? Se sim, como eles deveriam fazer isso?
Eco: A educação deveria voltar à forma que era nas oficinas do Renascimento. Lá, os mestres não eram necessariamente capazes de explicar aos alunos porque uma pintura era boa em termos teóricos, mas eles faziam isso de forma mais prática. Veja, o seu dedo pode se parecer com isso, mas ele é de fato assim. Veja, esta é uma boa mistura de cores. A mesma abordagem deveria ser usada nas escolas ao lidar com a internet. O professor deveria dizer: "Escolha qualquer assunto, quer seja a história alemã ou a vida das formigas. Busque 25 páginas diferentes na internet e, ao compará-las, tente descobrir qual oferece uma boa informação". Se dez páginas descreverem a mesma coisa, pode ser um sinal de que a informação publicada está correta. Mas também pode ser um sinal de que alguns sites copiaram os erros dos outros.

Spiegel: Você tem uma tendência maior a trabalhar com livros, e tem uma biblioteca de 30 mil volumes. Ela provavelmente não funciona sem uma lista ou catálogo.
Eco: Acredito que, agora, ela tenha na verdade 50 mil livros. Quando minha secretária quis catalogá-la, pedi que ela não o fizesse. Meu interesse muda constantemente, assim como minha biblioteca. A propósito, se você muda constantemente de interesses, sua biblioteca constantemente dirá algo diferente sobre você. Além disso, mesmo sem um catálogo, sou obrigado a me lembrar dos meus livros. Tenho um corredor para literatura com 70 metros de comprimento. Ando por ele várias vezes por dia, e me sinto bem ao fazer isso. A cultura não é saber quando Napoleão morreu. Cultura significa saber como posso descobrir isso em dois minutos. É claro, hoje em dia posso encontrar esse tipo de informação na internet em menos tempo. Mas, como eu disse, nunca se pode ter certeza com a internet.

Spiegel: Você inclui uma lista simpática feita pelo filósofo francês Roland Barthes em seu novo livro, "A Vertigem das Listas". Ele lista as coisas de que mais gosta e as coisas de que não gosta. Ele adora salada, canela, queijo e especiarias. Ele não gosta de motoqueiros, mulheres com calças compridas, gerânios, morangos e cravo [instrumento musical]. E você?
Eco: Eu seria um tolo se respondesse a isso; estaria me fechando numa definição. Eu era fascinado por Stendhal aos 13 e por Thomas Mann aos 15 e, aos 16, eu adorava Chopin. Então passei a minha vida inteira tentando conhecer o resto. Agora, Chopin está no topo novamente. Se você interage com as coisas em sua vida, tudo muda constantemente. E se nada muda, você é um idiota.

Tradução: Eloise De Vylder

Der Spiegel 15/11/2009

Minaretes provocam uma guerra de propaganda na Suíça

Agathe Duparc, em Genebra (Suíça)
David Luyet, viticultor de profissão, faz parte dos cidadãos suíços que se pronunciarão pela proibição da construção de minaretes na Suíça, durante um plebiscito no dia 29 de novembro. Segundo pesquisas, 35% dos eleitores poderão dizer "sim" a essa iniciativa lançada pela União Democrática do Centro (UDC, direita populista) e pela direita evangélica, em nome de uma "recusa inequívoca" de uma "islamização da Suíça".
Luyet, ex-piloto de corridas e católico praticante, próximo dos integristas de Êcone, entrou pessoalmente na batalha. À frente do minúsculo Comitê Questão Islã, esse morador de Valais de 42 anos luta para superar a propaganda da UDC.
Em um país onde se vota várias vezes por ano, e onde a arte dos cartazes políticos provocadores é uma tradição, ele não hesitou em distorcer a foto oficial do Conselho Federal (governo). Nessa fotomontagem, os quatro conselheiros federais (ministros) homens posam de terno e gravata, enquanto as três colegas mulheres usam uma burca azul. "Paremos de esconder o rosto", diz o slogan. O cartaz que provocou protesto geral deveria ser afixado nas dez principais cidades do país. Mas em 6 de novembro a chancelaria federal em Berna o vetou, julgando que a imagem dos "sete sábios" não podia ser explorada com fins políticos. Uma nova versão foi elaborada: as três mulheres de burca azul continuam a aparecer, com uma citação apresentada como um hadith (fala) do profeta Maomé: "Uma nação que confia seus problemas a uma mulher nunca poderá ter sucesso".
A quem observar ao viticultor de Valais que a Suíça abriga hoje somente 4 minaretes em 200 locais de culto e de prece para muçulmanos, ele responde que quer agir "de maneira mais preventiva do que curativa". "Primeiro são exigências para construir minaretes, depois para fazer chamadas às orações, e finalmente para impor os princípios do islamismo em nosso país", ele se angustia, enquanto "as igrejas estão vazias".
No início de outubro, foi um dos cartazes do Comitê de Iniciativa administrado pela UDC, ainda afixado nos quatro cantos da Suíça, que criou a polêmica. Ali se vê a bandeira suíça sob minaretes e uma mulher coberta por um véu, com olhar ameaçador. Algumas cidades, entre as quais Basileia, Lausanne, Friburgo e Neuchâtel, o proibiram, julgando a mensagem discriminatória e hostil, e temendo pela paz social. Zurique e Genebra, pelo contrário, consideraram crucial preservar a liberdade de opinião pública.
A menos de três semanas da votação, o nervosismo é palpável entre os adversários da iniciativa que reúne o Conselho Federal, bem como quase todos os círculos políticos e econômicos. Na terça-feira (10), Eveline Widmer-Schlumpf, ministra da Justiça, declarou que a iniciativa anti-minaretes violava os princípios de liberdade religiosa e de não-discriminação inscritos na Constituição suíça. E que não existia problema de integração para os cerca de 400 mil muçulmanos, entre os quais 50 mil praticantes, que vivem no país. Mas há alguns dias, ela acabou por dar mais argumentos para aqueles que querem proibir os minaretes, ao se declarar pessoalmente contra o uso da burca.

Tradução: Lana Lim

[Le Monde, 12/11/2009]

"A liberação das mulheres também é a libertação dos homens"

Josyane Savigneau
Le Monde: Seu livro "Manuel de guérilla à l'usage des femmes ["Manual de guerrilha para mulheres"] não se contenta em fazer um diagnóstico, ele oferece conselhos.
Brunel: É por essa razão que ele se intitula manual. Faço essa constatação de um fenômeno de sociedade que me parece preocupante: na meia-idade, muitos homens acham normal deixar suas famílias para "refazer suas vidas". O que me surpreende desde o lançamento do livro é o número de depoimentos que recebo da parte de mulheres que viveram essa ruptura na solidão.

Tenho a impressão de ter revelado uma realidade por muito tempo oculta. Muitas dentre elas, assim como eu, conheceram seus parceiros estudando, e construíram com ele uma família. E, de repente, é a anulação brutal de um percurso de vida, tão unilateral que ela só pode questionar. Acho que muitos homens têm medo da morte, medo de envelhecer: a crise do corpo não chega só para as mulheres! Mas sua forma de agir também demonstra uma certa irresponsabilidade, uma imaturidade. E uma falta de respeito por àquela cujo envelhecimento eles não aceitam, pois os remete ao seu próprio.

Le Monde: Tem-se a impressão, de repente, de que se viveu uma mentira?
Brunel: Primeiro se diz que não se pode desconstruir uma vida dessa forma. Esse momento de incredulidade é como uma aniquilação. Olhamos para esse homem que acreditávamos conhecer, e que de repente se tornou um estranho. A cumplicidade que a unia a ele evaporou. Frente a essa brutal ruptura, a sociedade pede às mulheres que sejam "elegantes"... ou seja, que se calem.

Ninguém tem compaixão por elas, como se elas tivessem responsabilidade pelo seu infortúnio. Muitas - não é meu caso - ainda se encontram em uma situação financeira difícil, pois por muito tempo abriram mão de suas carreiras por esse marido que as deixou. E que mostra uma espécie de glória radiante, como se finalmente estivesse renascendo.

As revistas exaltam essas novas famílias, a felicidade desses homens maduros - ou até mesmo velhos, na verdade - que se reavivam junto de uma jovem, sem se preocupar com as primeiras esposas.

Le Monde: A senhora as descreve como vítimas, mas elas não seriam cúmplices?
Brunel: Cúmplices? Mas a sociedade na qual vivemos glorifica a juventude, e até mesmo o culto à juventude! Então a pressão é terrível. As revistas femininas se recusam a abordar a questão da maturidade sem mascará-la. Seu discurso - "Você está melhor aos 50 do que aos 20, recuse a ação do tempo" - é falso.

Le Monde: Antigamente as mulheres eram velhas aos 30 anos; hoje elas estão em plena forma aos 50, mas velhas demais aos olhos dos homens.
Brunel: De alguns homens, felizmente! Construir uma relação sobre o culto desenfreado da juventude só pode levar a um impasse. A maturidade é inevitável... e é boa: estamos mais realizadas aos 50 do que aos 20.

Le Monde: A senhora diz que 50 anos é a idade com a qual as mulheres se tornam avós e os homens, novos pais.
Brunel: E é exatamente o que acontece, não? Todos esses homens grisalhos que se exibem com bebês, concorrendo com os filhos nascidos de seu primeiro casamento, têm algo de patético. Ainda mais que, nunca alguém se sente tão velho do que quando busca a todo preço andar com jovens... que na verdade o lembram constantemente de sua diferença de idade. Mas alguns homens não parecem ver assim. Sua primeira família se tornou um fardo. Muitos afirmam partir não por uma outra mulher, mas sim para "reviver".

Le Monde: Entretanto, raramente eles partem para ficar sozinhos...
Brunel: Nunca, você quer dizer! Uma mulher nova chega tão rápido, que torna claro que ela preparava uma emboscada. Meu ex-marido alega que encontrou sua nova companheira após nossa separação. Obviamente é mentira. Mas essa mentira o reconforta. A verdade é tão banal... A necessidade de carne fresca de uns encontra a estratégia de ascensão social de outras, que sabem que devem agir rápido porque somente seu físico lhes permitirá conseguir um lugar ao sol. Na África, dizem que os homens devem sua fortuna à sua primeira esposa, e sua segunda esposa à sua fortuna...

Le Monde: "O casamento é muitas vezes um álibi para a infidelidade", a senhora escreve...
Brunel: Eu nasci em 1960, após a geração 68. As mulheres que lutaram por causas feministas nos permitiram conseguir vitórias... mas a liberação das mulheres também foi a dos homens. Eles se julgam hoje livres de todas as pressões. São as mulheres que continuam a criar os filhos e devem conciliar tudo, o que é uma desigualdade fundamental. Sobretudo com a idade. Depois dos quarenta, muitas enfrentam isso. Aquelas que se recusam a entrar na corrida maluca contra o tempo porque acreditam ter lutas menos fúteis para se engajar, muitas vezes acabam sozinhas.

Le Monde: A senhora escreve que aceitar que a idade se inscreve no rosto e no corpo é considerado obsceno.
Brunel: Estão sempre dizendo que é preciso anular o tempo por todas as técnicas de rejuvenescimento possíveis para continuar a agradar. Toda uma indústria se apoia sobre essa ilusão. Os cremes destinados às mulheres maduras custam duas vezes mais caro do que os outros! E, ao mesmo tempo, o discurso mantido sobre as mulheres "esticadas" é muitas vezes de uma crueldade...

Le Monde: Como a menopausa, da qual a senhora fala no livro, ainda que seja um assunto tabu.
Brunel: Antigamente, a menopausa era o fim de tudo. Ainda hoje, mesmo entre elas, as mulheres mal querem falar disso, de medo de se verem desclassificadas. A menopausa continua sendo sinônimo de envelhecimento, de fim do desejo. Entretanto, não é uma doença e nem um defeito, somente uma etapa obrigatória - e necessária: felizmente a maternidade não resume a feminilidade! Mas muitas vezes, ao ver que o olhar de seu marido desvia dela, a esposa opta por desistir, dando razão, a contragosto, àqueles que pensam que a vida sexual termina com a função reprodutiva. Entretanto, uma mulher desejada continua tendo desejo por toda sua vida!

Le Monde: Seu ex-marido é Eric Besson, ministro da Imigração e da Identidade Nacional, mas a senhora não acerta as contas com ele, e parece até mesmo ter carinho por ele.
Brunel: É claro! Eu o conheci aos 18 anos, e compartilhamos tudo durante trinta anos. Mas eu o vi mudar radicalmente quando ele deixou o Partido Socialista, e depois seguiu os passos de Nicolas Sarkozy. Sua transgressão lhe valeu tanta reprovação da parte daqueles de quem ele se afastou - mas também elogios em outro campo! - que ela o mudou profundamente. De certa forma, ele queimou suas pontes.

Le Monde: Vê-lo sendo chamado de traidor a chocou?
Brunel: Sim, seus "amigos" do PS se enfureceram com ele quando ele quis se distanciar da campanha de Ségolène Royal, na qual ele não se reconhecia. E isso mesmo antes de se juntar a Sarkozy. Entretanto, ele não entrou no socialismo como se entra em uma religião. Essa lógica sectária e violenta feriu a mim e a meus filhos.

Le Monde: Considerar que ele a deixou para protegê-la não é lhe dar muito crédito?
Brunel: Quando você está na lógica de um combate que sua família não escolheu, ou até desaprova - eu trabalho com a África e sei que o seu ministério significa - , partir é libertar o outro, fazer com que ele não tenha de pagar por suas escolhas. Certamente tento encontrar circunstâncias atenuantes para ele... Mas observo que ele deixou tudo para trás, só levou uma mala consigo. Isso não é de uma generosidade rara?

Le Monde: O livro realmente a libertou?
Brunel: Um livro é sempre uma libertação. Sua última parte fala sobre a reconstrução... É a parte da pesquisa, pois eu ainda estou sofrendo, oscilo dependendo do dia entre a nostalgia do passado e a vertigem de minha nova liberdade. Como todas aquelas que viveram a mesma experiência, devo primeiro aceitar essa fase de luto.

Tradução: Lana Lim

[Le Monde 14/11/2009]

História (em Flash)


Clique aqui... para ver animação produzida pela Folha Online

Nas asas do tédio

Daniel Kalder

Berlim hoje é celebrada por sua posição de vanguarda na cultura e na música, pelo design e pela arte vibrantes, e também como um ponto de encontro brusco e atraente entre o oeste e o leste. Tudo isso se justifica, mas para mim Berlim também é fascinante como centro de algo mais: o tédio revolucionário.
Permitam-me explicar. Há 20 anos, em Berlim, o muro separava duas escolas distintas de tédio.
Do lado oriental existia a variedade comunista, definida por grandes labirintos de jaulas de concreto pré-fabricado para seres humanos, fábricas sujas despejando poluentes no ar e complexos monumentais de museus e teatros dedicados a uma visão sufocante da alta cultura.
Para os "ost-berliners", apenas o terror induzido pela Stasi e o consumo copioso de álcool eram capazes de animar as coisas.

Burguesia mimada
Já o lado ocidental, por sua vez, abrigava algo de diferente: o tédio do consumismo bovino do pós-guerra.
A melhor representação disso era a famosa Kaufhaus des Westens, a maior loja de departamentos da Europa [continental], que oferecia muitas e muitas... coisas. Sim, de fato: na KaDeWe havia queijo. E carne. E roupas. Etc.
Apenas um punhado de filhos mimados da burguesia, brincando de revolução, e a maior população de drogados da Europa serviam para animar um pouco as coisas.
Mas então o muro caiu e o tédio do leste foi libertado para que pudesse se fundir com o do oeste.
Isso também aconteceu em outras partes da Europa oriental, mas só em Berlim havia duas escolas em tão perfeito equilíbrio, interconectadas de forma tão íntima.
A apodrecida infraestrutura do comunismo se misturava aos chochos arranha-céus novos em estilo pseudoamericano, na Potsdamer Platz.
A nostalgia do comunismo e a globalização descontrolada se davam as mãos; e todos marcharam unidos para um admirável mundo novo de reciclagem, nudismo, música tecno minimalista e a pornografia mais vil do planeta.
Quem fica na cidade por tempo demais não demora a desconfiar que até a cena de arte "radical" é rigidamente conformista e "segura".
Mas não pensem que estou me queixando. Amo Berlim. É um vislumbre do progresso em vidro e concreto, no qual os cientistas estão criando uma visão utópica de um "tediofuturo" diversificado, mas ordeiro, que um dia poderá triunfar em toda a Europa.

DANIEL KALDER é escritor escocês, autor de "Lost Cosmonaut" (ed. Faber and Faber), em que apresenta o "Manifesto Antiturista" e relatos de visitas a ex-repúblicas soviéticas.
Tradução de Paulo Migliacci.

[Folha de São Paulo, 08/11/2009]

O muro interior


O historiador Eric Hobsbawm diz que a queda do Muro de Berlim desestabilizou a ordem mundial e criou um estado generalizado de insegurança

Marcos Flamínio Peres

Ícone da historiografia de esquerda, o britânico Eric Hobsbawm não perdoa: para ele, o principal efeito da queda do Muro de Berlim, em 1989, foi a desestabilização da geopolítica mundial em prol da única superpotência remanescente -os EUA.
Como consequência, o mundo se tornou mais perigoso.
Em "A Era dos Extremos" (Cia. das Letras), ele já defendera os desdobramentos da queda do muro como cruciais para o século 20. Mais do que isso: cruciais para encerrá-lo antes da hora. Daí o termo que cunhou, "breve século 20".
Já do ponto de vista econômico, Hobsbawm afirma que o pós-1989 levou a um recorde de desigualdade social nos países da antiga Cortina de Ferro -termo que designava, durante a Guerra Fria, os países comunistas europeus sob influência soviética.
Sobre Berlim, cidade que cristalizou a derrocada da velha ordem e o início da nova, o pensador se mostra decepcionado, na entrevista que concedeu por e-mail à Folha.
Apesar de haver se tornado a capital do Estado mais rico da União Europeia, Berlim não se tornou a virtual capital da Europa -como se esperava 20 anos atrás- nem ficou à altura de seu glorioso passado anterior à ascensão do Terceiro Reich (1933).
Coerente, Hobsbawm vê a crise financeira que assolou os mercados financeiros em 2008 como o "Muro de Berlim do neoliberalismo". Ele detecta nesse aparente revés capitalista a possibilidade de rearticulação do pensamento de esquerda -mas desta vez, alerta, em bases "mais realistas".

FOLHA - Passados 20 anos, qual é o legado político e econômico da queda do Muro de Berlim?

ERIC HOBSBAWM - O legado econômico é certamente menos dramático do que o político. Economicamente, significou a destruição do que restara de um sistema socialista planejado na União Soviética e na Europa do leste -que já estava em declínio- e a integração da antiga região socialista à economia capitalista global.
Isso levou a um colapso social e econômico na ex-União Soviética, embora, posteriormente, a Rússia e algumas ex-repúblicas soviéticas tenham visto alguma recuperação, baseada nos altos preços da energia e dos insumos industriais.
Com algumas exceções, a região provavelmente permanece, em termos relativos, mais atrás do Ocidente do que estava antes da queda do muro. Ela desenvolveu um nível chocante de desigualdade econômica.
Os efeitos políticos, por sua vez, têm sido enormes. Eles reduziram a Rússia de superpotência a um Estado não maior do que era no século 17.
Além disso, a União Europeia saltou de 15 para 27 Estados, e foi criada uma Alemanha unificada no coração do bloco.
Também foi reintroduzida a guerra [conflito nos Bálcãs nos anos 90] e a instabilidade política na Europa, após o colapso do único Estado comunista, a Iugoslávia. Isso acabou por tornar os Bálcãs mais "balcanizados" do que antes.
Outro efeito da queda do muro foi a destruição de um sistema internacional estável.
Isso porque se atribuiu aos EUA a ilusão de que poderiam, como única superpotência global, exercer sua hegemonia no mundo todo -o que acabou por transformar o mundo no lugar perigoso de hoje em dia.

FOLHA - Berlim não se tornou uma das principais capitais europeias, como se previa 20 anos atrás, e a Alemanha, embora rica, foi há pouco superada economicamente pela China. Nesse sentido, a queda do muro foi um fracasso?

HOBSBAWM - Berlim não se tornou uma grande capital europeia porque a reunificação política das Alemanhas Ocidental e Oriental não teve como recriar um país genuinamente unido.
A antiga Alemanha Oriental -embora seus habitantes estejam hoje muito melhor do que estavam antes de 1989- perdeu sua base econômica para a Alemanha Ocidental. Além disso, apresenta índices de desemprego elevados e continua a perder sua população para a antiga Alemanha Ocidental.
Berlim tem muito poucos habitantes para uma cidade com sua importância histórica.
Para quem a visita, ela parece uma pessoa encolhida usando um sobretudo grande demais para seu peso atual. Culturalmente, nunca reconquistou a posição que detinha entre 1871 [quando o Império Germânico inaugurou o Segundo Reich] e a ascensão de Hitler [em 1933].
Isso não quer dizer que a Alemanha como um todo esteja em declínio. Ela, por exemplo, não pode ser comparada com a China (80 milhões de habitantes contra 1,3 bilhão). Mesmo com um PIB maior do que o da Alemanha, a China é muito menos desenvolvida, muito mais pobre e menos capaz em áreas como tecnologia de ponta.
Se há perigos futuros para a Alemanha como potência econômica, eles nascem da relativa lentidão do desenvolvimento econômico da UE.

FOLHA - A queda do muro representou o colapso do pensamento de esquerda?

HOBSBAWM - Ela simbolizou, mas não foi a causa, da crise do pensamento de esquerda, que já vinha desde os anos 1970.
Estritamente falando, ela apenas demoliu a crença de que o socialismo de corte soviético (economia planificada comandada por um Estado centralizador que eliminou o mercado e a iniciativa privada) era uma forma factível de socialismo.
Na verdade, como foi a única tentativa de realizar o socialismo na prática, seu fracasso desencorajou os socialistas como um todo -embora a maior parte deles tenha sido crítica do sistema soviético.
Entretanto as raízes da crise da esquerda retrocedem ainda mais. Ela ainda não chegou ao fim, mas o colapso do capitalismo financeiro global em 2008-9 -que foi uma espécie de queda do Muro de Berlim para a ideologia neoliberal- oferece uma chance de reabrir as perspectivas para a esquerda. Mas, espera-se, em uma base mais realista do que no passado.

[Folha de São Paulo, 08/11/2009]

Já somos demais?

Verónica Calderón

Seremos 7 bilhões de habitantes no mundo em 2012 e 9 bilhões em 2050. O problema não é a fecundidade, que já está diminuindo, mas a má distribuição de recursos.
A gravidade da crise alimentar, o aumento inusitado da população nos países menos desenvolvidos e os efeitos da mudança climática são algumas razões para repetir a mesma frase: "Já somos demais". E continuaremos crescendo. Em 2012 a população mundial alcançará 7 bilhões de pessoas.
Em 2050 a Terra abrigará 9,1 bilhões. A grande maioria dos novos habitantes viverá nos países pobres. Segundo cálculos da ONU, em 2050 a população espanhola será praticamente igual à de 2009, cerca de 42,8 milhões de habitantes. Muito longe do crescimento previsto para países como Níger, Somália e Uganda, cujas populações crescerão até 150% nos próximos 40 anos.
A população dos países desenvolvidos se manterá praticamente igual e em alguns inclusive diminuirá. Em troca, os países mais pobres do mundo terão um crescimento acelerado. Dos 2,4 bilhões de pessoas a mais que haverá no mundo em 2050, 98% viverão em países pobres. Há espaço suficiente e recursos para todos?
As taxas de natalidade diminuíram 50% nos últimos 30 anos, e espera-se que caiam ainda mais. Inclusive nos países mais pobres do mundo, a natalidade se reduzirá pela metade.
As previsões da ONU coincidem em que a tendência se manterá. Prevê-se que em 2050 a fertilidade mundial será de apenas 1,85 filho por mulher. Sem os métodos anticoncepcionais, a população mundial cresceria para 11 bilhões de pessoas em 2050. Os controles de natalidade foram fundamentais, mas não são a única solução.
Há mais de 200 anos a advertência já era explícita: o inglês Thomas Malthus advertiu em seu célebre "Ensaio sobre o Princípio da População" que os recursos naturais seriam insuficientes para abastecer a população mundial.
A pesquisadora Rosamund McDougall, diretora adjunta da ONG Fundo para uma População Ótima (OPT na sigla em inglês), adverte que "uma população de mais de 9 bilhões de pessoas teria um impacto terrível sobre a Terra, e não só na qualidade de vida. O volume de emissões de gases do efeito estufa tornaria impossível viver no planeta em 2050".
Quem ocupará a Terra então? A população dos 49 países mais pobres do mundo se duplicará, de 840 milhões para 1,7 bilhão de pessoas, segundo aponta o relatório Perspectiva sobre a População Mundial, divulgado em 2008 e elaborado pela Divisão de Pesquisa Demográfica e População Mundial da ONU.
Os países desenvolvidos, em comparação, não sofrerão uma mudança significativa em sua população: de 1,23 bilhão de habitantes em 2009 para 1,28 bilhão em 2050. Inclusive Japão, Geórgia, Rússia e Alemanha perderão 10% de suas populações.
O cientista e escritor britânico Fred Pearce opina que o problema não é quantos somos, mas a maneira como distribuímos os recursos. "É evidente que o problema é o consumo excessivo dos países desenvolvidos e não a superpopulação dos mais pobres", afirma.
O consumo de uma pessoa nos EUA emite 20 toneladas de dióxido de carbono por ano; o equivalente ao de dois europeus, 4 chineses, dez indianos ou 20 africanos. Oitenta por cento da população pagariam as consequências econômicas e ambientais do consumo de 20%.
Stephen Pacala, diretor do Instituto Ambiental da Universidade Princeton (EUA), calcula que os 500 mil habitantes mais ricos do mundo - cerca de 0,7% da população atual - são responsáveis por 50% das emissões de CO2 no mundo.
E a situação só fará agravar-se nos próximos anos. "O desafio é, na realidade, que os recursos sejam distribuídos de maneira mais equitativa. Os efeitos sobre o meio ambiente são extremamente difíceis de reverter através das taxas de natalidade", adverte Pearce. "Mesmo se reduzíssemos a zero a fertilidade no mundo, as emissões de gases do efeito estufa deveriam diminuir pelo menos 50% até meados do século", explica.
Além dos efeitos da mudança climática, os países menos desenvolvidos enfrentam a fome, a causa direta ou indireta de 58% do total de mortes do mundo, segundo um estudo da ONU divulgado em 2004. O Instituto de Recursos Mundiais (WRI na sigla em inglês) advertiu na semana passada que em 2050 haverá mais 25 milhões de crianças desnutridas no mundo, que se somarão às 150 milhões que padecem fome atualmente.
Os níveis de pobreza continuarão aumentando: entre 1981 e 2001 duplicou o número de pessoas que viviam com menos de US$ 1 por dia na África subsaariana, de 164 milhões para 316 milhões; e nos próximos 40 anos dois terços da população mundial viverão em países em desenvolvimento.
O fato é que hoje 1 bilhão de pessoas (um sexto da população mundial) sofrem fome.
Em 2050 serão 1,7 bilhão, 18% da população prevista para então. Além da degradação ambiental, os conflitos e o baixo desenvolvimento causam a escassez de alimentos. Os agricultores africanos empregam o equivalente a 1% do fertilizante utilizado por um agricultor em um país rico. E enquanto nos países pobres se consome uma dieta baseada em vegetais, os ricos consomem comida que come vegetais.
Para produzir um quilo de carne são necessários pelo menos 10 quilos de pasto. Um americano médio consome 120 quilos de carne por ano, enquanto nos países em desenvolvimento a média é de 28 quilos.
"A cooperação marcaria uma diferença significativa", afirma Pacala. "As crises de fome se devem na maioria das vezes ao fraco desenvolvimento dos países e a uma produção insuficiente", comenta. A falta de tecnologias que desenvolvam a agricultura nos países menos desenvolvidos e os efeitos da crise econômica global pioram as circunstâncias.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO na sigla em inglês) advertiu em 2008 que o gasto anual em alimentos importados nos países mais pobres poderia representar quatro vezes mais que em 2000.
"Para os consumidores mais pobres, que aplicam 60% de seu gasto habitual em comida, o aumento significa um golpe brutal para suas finanças", observa o relatório. A FAO também salienta que para combater a fome o mundo deveria produzir em 2050 70% mais alimentos que hoje.
O desafio não é novo. A chamada Revolução Verde conseguiu duplicar a produção de alimentos entre 1960 e 1990. E na atualidade ainda existem 60% de terra fértil no mundo. Mas o que garante aos países pobres um desenvolvimento sustentável nos próximos anos? Pearce e Pacala concordam que um bom início é o investimento.
Um relatório do Ministério do Desenvolvimento britânico calculou em 2008 que para reduzir a fome no mundo seriam necessárias pelo menos 900 milhões de libras (cerca de 987 milhões de euros) para garantir o desenvolvimento e as tecnologias necessárias para favorecer a agricultura nos países mais pobres.
O orçamento da FAO em 2008 foi de cerca de US$ 870 milhões. Em 2009 subiu ligeiramente, para US$ 930 milhões. Ao comparar a cifra com os US$ 700 bilhões que o governo americano destinou para evitar a quebra do banco de investimentos Bear Stearns, as hipotecárias Freddie Mac e Fannie Mae e a seguradora AIG em setembro do ano passado, o orçamento mundial dedicado a combater a fome representa apenas 2% dessa cifra.
Os líderes reunidos na cúpula do G20 realizada em Pittsburgh em setembro passado concordaram em destinar cerca de US$ 2 bilhões em ajudas para combater a fome no mundo, mas um estudo publicado pelo Instituto Internacional para Pesquisa de Políticas Agrárias divulgado em outubro indica que é insuficiente.
"São necessários pelo menos US$ 7 bilhões ao ano para a pesquisa agropecuária e a melhora da infraestrutura rural nos países. Se continuar uma política que privilegia os lucros, as consequências serão desastrosas", adverte Gerard Nelson, um dos autores do relatório.
A prioridade para resolver a fome, um grave consequência da má distribuição de recursos no mundo, também não é nova. Perguntado em 1972 em uma entrevista a Dick Cavett sobre as consequências da superpopulação, John Lennon foi claro ao definir o primeiro passo: "Temos comida e dinheiro suficientes para alimentar a todos. Há espaço suficiente e alguns até vão para a lua".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 08/11/2009]

40 anos de internet

Marcelo Gleiser
Faz 40 anos que os computadores de Leonard Kleinrock, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e de Douglas Engelbart, do Instituto de Pesquisas na Universidade de Stanford, foram conectados por uma "linha especial" da Arpanet, um sistema de apenas quatro computadores que faziam parte de um projeto do Departamento de Defesa dos EUA.
Com o passar dos anos, o sistema exclusivo de tráfego de informação evoluiu, saiu dos laboratórios de cientistas para o público e hoje é conhecido como internet.
Não há dúvida de que a internet está transformando o mundo, de que vivemos em meio a uma revolução. A questão, ou uma delas, é que tipo de revolução é essa: será que a internet pode ser comparada, por exemplo, ao telefone ou ao carro, ou mesmo à imprensa de tipo móvel, que revolucionou o livro? Ou será que ela pertence a outra classe de tecnologia, que não só transforma a sociedade mas que vai além, redefinindo quem somos?
A questão é complicada, difícil até de ser formulada. O telefone e o carro transformaram o modo como as pessoas se comunicavam, iam ao trabalho, viajavam, viam o mundo. Como toda tecnologia que se torna de uso público, primeiro começaram pequenos, com alcance limitado: eram poucas as linhas telefônicas e as estradas.
Aos poucos, as coisas foram crescendo e, em meados do século 20, telefones e estradas estavam pelo mundo todo. Uma diferença bem importante é que a internet, por ser acessível por computadores, é bem mais aberta aos jovens. Telefones celulares também; os jovens têm a sua privacidade, o seu espaço virtual separado do dos pais e irmãos. A comunicação é tão fácil e rápida que chega a tornar o contato direto, em carne e osso, desnecessário.
Talvez seja uma preocupação dos meus leitores mais velhos, que, como eu, nutriam as amizades no campo real e não por meio de sites como Facebook e Twitter, mas será que a internet nos fará desaprender como nos relacionar diretamente com outros seres humanos?
Deixando esse tipo de preocupação de lado, se olharmos para a história da civilização, veremos que podemos contá-la como uma história da tecnologia. À medida que novas tecnologias foram sendo desenvolvidas, do controle do fogo e da rotação de terra na agricultura até a roda, o arado e os transistores e semicondutores usados em aparelhos eletrônicos, nossa história foi, em grande parte, determinada pelas nossas máquinas. Valores e interesses mudam, e visões de mundo se transformam de acordo com nossos instrumentos.
O Homo habilis, nosso ancestral que usou ferramentas pela primeira vez, evoluiu rumo ao Homo sapiens e, agora, este se transforma no Homo conectus. Será que nossos avanços tecnológicos são, hoje, a principal mola da nossa evolução como espécie? Nesse caso, será que a tecnologia está redefinindo o que significa ser humano?
Descontando uma grande devastação biológica, como uma epidemia de proporções globais ou um cataclismo climático ou ecológico, somos donos da nossa evolução: nossa transformação como espécie ocorre muito menos devido a mutações aleatórias e ao processo de seleção natural do que, por exemplo, devido a um maior intercâmbio racial, à melhor alimentação e aos avanços da medicina, à integração de tecnologias diversas com o corpo (marca-passos, órgãos e membros artificiais) e com a mente (drogas que mudam nossas emoções, implantes nos olhos e ouvidos, chips no cérebro).
A internet talvez represente uma nova fronteira, a da integração coletiva da humanidade a um nível sem precedentes. Se não no mundo real, ao menos no virtual.

[Folha de São Paulo, 08/11/2009]

UNIBAN 3: O martírio de Geyse nos faz pensar

Geyse ia a uma festa depois da aula. Na balada ou na festa, seus trajes, sua maquiagem, não levantariam a alma selvagem dos colegas. As mesmas pessoas em outro contexto conteriam sua inveja e seu desejo. O surgir daquela beleza não pasteurizada, esperada na balada, mas não na escola, pegou todos de surpresa. Ninguém estava preparado e a sensualidade fora de contexto arrebatou e desorganizou. Jovens que começam a "ficar" muito cedo aplicam ao "ficar" uma sexualidade pasteurizada, claramente quantificada.
Têm a sua vida instintiva reprimida. Beija-se sem paixão. Fica-se porque é lugar, hora e idade de ficar. Namorar é uma outra etapa. Antigamente, namorava-se para poder beijar. Agora, namorar quer dizer que só se beija um, ou melhor, namorar é beijar com tesão.
Geyse, a jovem atacada por colegas, meninos e meninas, não sabia o que estava fazendo quando adentrou com sua sensualidade o espaço em que não se estava preparado para reprimir. Não foi só ela que errou.
Seus algozes também não sabiam que é bom estar preparado. A sexualidade pode ser atiçada inesperadamente. A força do sexo pode surpreender. Geyse apenas errou de traje e fez tremer fortalezas indefesas.
É tão ameaçadora a liberdade sexual para os jovens que não são protegidos pela proibição social ou familiar que eles, de forma velada, se castram. Nem Geyse conhecia seu poder nem os jovens conheciam a força do desejo reprimido. Quando a repressão vem de fora, ela tanto castra quanto protege.
Não conheço outro caso igual ao de Geyse, mas conheço algumas ameaças. Moças lindas, viçosas, que se mostram sem levar em conta o esforço que tem que ser feito para reprimir a vontade de tomar de assalto o corpo do outro.
Não estou propondo retorno aos velhos padrões. Apenas me surpreendo com o resultado da autocensura a que os jovens estão obrigados, uma vez que a censura social e familiar está cada vez mais distante.
Quem deve conter? Como deve ser contido? Não sei. Geyse nos dá assunto para pensar.

Anna Veronica Mautner,  psicanalista. [Folha de São Paulo, 31/10/2009]

UNIBAN 2: Ensino particular, circo e zoológico

Não foi o vestido, afinal nem tão curto. Foi o tamanho da multidão o que mais me impressionou nos vídeos do YouTube sobre a aluna hostilizada numa universidade paulista na semana passada.
Enquanto a estudante de turismo sai da faculdade escoltada por PMs, a câmera sobe e mostra uma cena dantesca: como numa arena romana, milhares de alunos berram e gesticulam.
O mundo do ensino "universitário" privado brasileiro, especialmente à noite, é um amálgama triste de circo com zoológico.
Estão lá filhinhos de papai que poderiam estudar numa faculdade melhor, mas por burrice e/ou preguiça acabaram em alguma boca de porco, período noturno. Estão lá as pessoas de classe média/média baixa que fizeram com sacrifício os ensinos básico e médio, ganharam uma formação cheia de falhas e agora veem numa faculdade de quinta categoria e chance de um diploma superior.
Estão lá também as exceções das exceções, alunos com bom potencial, que sentam na frente, estudam, tentam se motivar -mas são solapados pela mediocridade geral do ambiente e pelas necessidades imediatas da vida real.
Eu podia arriscar aqui comentários rasos sobre psicologia de massa, podia tentar falar de moralismo e de falso moralismo. Podia tentar entender por que uma aluna de vestido mais ou menos curto fez disparar tamanha reação de ódio em cadeia.
Mas prefiro focar na cena da multidão, naquele momento animalesco. Como uma universidade pode ter tantos alunos assim? Que tipo de ensino esses caras recebem? Será que dá para chamar de ensino? Um diploma obtido desse jeito, e num lugar desses, vale tanto assim?
Perto de casa, há uma universidade desse naipe. No começo e no fim das aulas, as ruas são tomadas pela horda de estudantes. Não há, literalmente, espaço para os carros passarem. Nessa universidade, minha vizinha, existe até curso de medicina. Como dizem no Twitter: #medo.

Álvaro Pereira Júnior, no Folhateen. [Folha de São Paulo, 02/09/2009]

UNIBAN 1