A primeira causa

O propósito da ciência não é responder a todas as perguntas; sua missão é outra
Hoje, retorno a uma questão que parece boba, de tão simples. Mas talvez seja a mais complexa que podemos tentar responder. Tanto que, no meu livro "A Dança do Universo", chamei-a de "A Pergunta". Aí vai: como tudo começou?
O que complica as coisas é que pensamos sobre tudo como um encadeamento simples de causa e efeito: cada efeito tem uma causa que o precede.
Quando vemos uma bola de futebol voando, é porque alguém a chutou; se um carro passa na rua, é porque alguém está dirigindo; se a planta cresce, é porque consegue extrair nutrientes do solo e usar a luz solar como fonte de energia; se o Sol brilha, é porque em seu centro hidrogênio está sendo fundido em hélio, liberando quantidades enormes de energia; se o Sol existe, é porque uma nuvem de hidrogênio entrou em colapso há cerca de 4,6 bilhões de anos, atraída pela própria gravidade...
Se continuarmos nessa linha, terminamos, paradoxalmente, no começo de tudo, a origem do Universo. Se o Universo existe, "algo" o fez existir.
A primeira causa é o impulso inicial da criação. Assim ela tem sido vista desde que religiões começaram a tentar explicar o enigma da origem de tudo. No caso da religião, a estratégia funcionou bem: dado que deuses são entidades sobrenaturais, eles não vivem no tempo, tendo uma existência atemporal, eterna. Assim sendo, regras de causa e efeito, ou mesmo a mera aplicação do bom senso, não valem para divindades.
Uma vez que se aceita que algo pode existir fora do tempo e pode ter poderes absolutos que transcendem as leis da natureza, tudo é possível. Até a criação a partir do nada. No Gênese, Deus criou a luz e separou as águas da terra através do verbo. Segundo Santo Agostinho, que muito se preocupou com esse assunto, o tempo e o espaço surgiram com o mundo. Antes da criação, não havia o "antes", pois o tempo não existia. Outras narrativas de criação do mundo resolvem a questão da primeira causa de forma semelhante, postulando a existência de entidades divinas e, portanto, alheias aos vínculos temporais que tanto nos limitam.
E a ciência? Será que é possível resolver a questão da primeira causa de modo científico? Esse é um debate ferrenho que, infelizmente, entrava o progresso cultural da humanidade. Remete-nos a "guerras" inúteis contrapondo ciência e religião, como se a ciência tivesse como função substituir a fé religiosa, uma grande distorção.
Se as pessoas acreditam que a ciência é capaz de responder a todas as perguntas, incluindo a questão da primeira causa, elas se sentem justamente ameaçadas: parece que a ciência tem como missão "roubar" Deus das pessoas. De forma alguma: ao contrário do que muitos dizem, não é essa a missão da ciência. A ciência não se propõe a responder a todas as perguntas. E por um motivo simples: nós nem sabemos que perguntas são essas. Dado que jamais teremos um conhecimento completo da realidade, jamais poderemos construir uma narrativa científica completa.
Sempre existirão questões não perguntadas e não respondidas; e mesmo questões que nada têm a ver com a ciência. A escolha do que fazemos com essa nossa ignorância perene é pessoal: existem aqueles que preferem optar por ter fé em entidades sobrenaturais e existem aqueles que, como eu, preferem aceitar a simplicidade do não-saber. Não ter todas as respostas é a pré-condição para o nosso crescimento. Nesse sentido, mesmo se a ciência não resolver o enigma da primeira causa -e existem obstáculos complicados que ficam para outro dia-, prefiro continuar tentando e aceitar que, por ser humano, minha visão de mundo tem limites.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

[Folha de São Paulo, 27/09/2009]

As críticas raivosas contra Obama possuem fundo racista?

Antonio Caño
Jimmy Carter, com maior êxito em seu atual papel de consciência nacional do que no anterior de presidente, chamou a atenção sobre uma suspeita que vinha sendo alimentada nos corredores políticos nas últimas semanas: a agressiva campanha de críticas contra Barack Obama é inspirada pelo racismo. "Creio que em grande medida as manifestações de animosidade contra o presidente se baseiam no fato de ele ser negro."
Em princípio, se poderia pensar que se trata da clássica tática desqualificadora usada no jogo político: é mais fácil negar a autoridade moral de quem critica - racista, fascista, comunista, xenófobo ou machista - do que aceitar os erros de quem é criticado. No caso de Obama certamente se podem detectar erros, sobretudo em sua gestão da reforma da saúde, que merecem ser destacados com toda a paixão e energia que cada sociedade democrática permita. E esta, que se gaba de ser a mais livre do mundo, permite muito.
Mas também é verdade que parte da paixão que se viu nos EUA recentemente não parece justificável unicamente pela discrepância política. Parece ocultar algo mais, parece afetar um substrato emocional mais profundo e delicado do que a irritação por uma gestão do governo. Parece ser, poderia ser, um resíduo racista.
Sem ir mais longe, a manifestação do último fim de semana em Washington. O mais sintomático não é que fosse exclusivamente branca. Nem sequer que alguns dos participantes exibissem símbolos nazistas. O mais significativo dessa manifestação era a expressão de incredulidade, de plena negação da legitimidade - um colunista conservador escreve presidente entre aspas -, em relação à figura que ocupa a Casa Branca. E esse sentimento não pode estar muito alheio à circunstância de ele ser negro.
Outro exemplo pode ser a polêmica pelo grito de "Está mentindo!" que o congressista Joe Wilson proferiu contra Obama durante seu discurso no Capitólio na semana passada. A colunista Maureen Dowd talvez tenha ido longe demais ao escrever que na realidade o que Wilson quis dizer foi "Está mentindo, garoto!", usando o termo ("boy") com que os senhores brancos se referiam a seus escravos negros.
É um recurso literário, provavelmente. Mas Wilson é da Carolina do Sul, o mesmo estado a que pertence James Clyburn, o congressista negro de maior nível, e ambos sabem quem é quem no sul em matéria de racismo. Clyburn conhece muito bem Wilson, e por isso exigiu que este se desculpasse publicamente no Congresso, e por isso, diante de sua negativa, insistiu em exigir a censura oficial que a Câmara dos Deputados aprovou na segunda-feira.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 18/09/2009]

Programas a favor da maconha se espalham pelas TVs dos EUA

Dicas para cultivar maconha. Testemunhos de pacientes sobre seus benefícios médicos. Receitas de culinária com cannabis. Até citações a variações premiadas da erva. Os espectadores de Los Angeles podem agora assistir, toda semana, um programa de notícias pró-maconha.

Brian Stelter, em Los Angeles (EUA)
Rejeitado por um canal de TV que se assustou, mas rapidamente recebido por outro, o programa "Cannabis Planet", de baixo orçamento, é a prova televisiva do quanto a maconha está estabelecida no ambiente cultural da Califórnia, além de um potente exemplo de como a subcultura da droga está se infiltrando na cultura tradicional do país.
"Estamos tentando mostrar a legitimidade dessa planta", disse Brad Lane, produtor-executivo do programa de meia hora.
Lane paga pelo seu tempo no ar duas vezes por semana no canal independente KJLA - nas noites de quinta-feira e sábado às 23h30, entre "Bikini Beach" e "Jewelry Central" - e diz que agora ele não tem nem lucro nem prejuízo, quase dois meses depois da estreia do programa. "Cannabis Planet" tem como foco os usos médico, agrícola e industrial da planta, ignorando intencionalmente os aspectos recreativos da maconha. Os telespectadores, por exemplo, raramente veem alguém fumando no programa, mesmo que os âncoras e produtores sejam conhecidos por fumar nos intervalos. "Estamos pisando em ovos aqui, para ser sincero", disse Lane.
Ainda assim, "Cannabis Planet" continua no ar - sem nenhuma reclamação dos espectadores, de acordo com o canal.
O uso da maconha tem sido mostrado na mídia há décadas, embora sua presença tenha aumentado e diminuído ao longo do tempo, desde os filmes de comédia e discos de Cheech & Chong no final dos anos 70 e começo dos 80 até as tentativas mais recentes de "Half-Baked" de Dave Chappelle e "Pineapple Express" de Seth Rogen, que têm a droga como tema. Na televisão, entretanto, o assunto raramente é levado além do nível da piada ou estratégia de roteiro - até recentemente.
A maconha é legalizada para fins médicos em 14 Estados dos EUA, e a organização Norml diz que há iniciativas para legalizá-la em 15 outros Estados. A maconha continua ilegal pela lei federal, mas numa mudança radical em relação às políticas anteriores, o governo Obama disse em fevereiro que os oficiais federais parariam de fazer batidas em distribuidores de maconha medicinal [clínicas e farmácias] autorizados pelas leis estaduais.
Desde então o número de distribuidores na Califórnia aumentou, num movimento que alguns chamaram de "febre verde".
"Isso de fato explodiu", disse Jay Peterson, produtor-executivo da Original Productions, que está trabalhando com a Blue Dream Media para criar um reality show ambientado num "grupo de maconha", ou centro de distribuição, em Hollywood. O programa, "Top Bud", pretende ser uma mistura entre "LA Ink", programa do canal TLC produzido pela Original sobre um estúdio de tatuagem movimentado, e "Weeds", o seriado dramático de sucesso sobre a vida de uma mãe traficante com dois filhos.
"Apesar de a droga ser ilegal na maioria dos Estados, a ideia é mostrar que há um mundo onde ela é legal, e onde as pessoas a estão usando", disse Peterson.
Os produtores estão tentando vender "Top Bud" para as redes de TV. Peterson reconheceu que há uma certa hesitação a princípio, mas disse que sua companhia já conquistou "um sólido interesse".
Há uma agitação parecida no mundo da TV roteirizada. Em "Glee", o novo musical colegial da Fox, um dos personagens é um vendedor de maconha para fins médicos. No Festival de Televisão de Nova York na semana que vem, um dos projetos de piloto que buscam uma rede de TV será "Rx", um drama que se passa no mundo da maconha para fins médicos.
Uma série de reportagens na mídia documentou o uso de maconha, citando entre outros exemplos referências frequentes à droga na mídia e depoimentos de aprovação por parte de uma lista cada vez maior de celebridades. Este mês a capa da revista Fortune pergunta: "A maconha já é legal?". A CNBC repete seu documentário que estreou há oito meses sobre o mercado da maconha, "Marijuana Inc.", pelo menos uma vez por semana; e ele continua sendo classificado como um dos documentários mais populares do canal.
A inspiração de Lane para "Cannabis Planet" veio de algo mais prático: ele percebeu um número cada vez maior de anúncios nos jornais locais para a cannabis médica. "Foi o único segmento de mercado que eu vi crescer", disse ele durante o jantar num decadente restaurante chinês em Pico Boulevard.
Lane produziu programas para a TV sobre snowboarding e surfe durante vários anos. Cansado do que ele chamou de "demonização da planta da cannabis", ele quis enfatizar os usos da maconha como "combustível, fibra, comida e medicina", como ele e seus âncoras costumam dizer.
Primeiro ele comprou tempo no ar no KDOC, um canal independente em Orange County, Califórnia, mas no final de julho funcionários do canal ficaram nervosos quanto ao assunto. Ele se lembra de um funcionário dizendo a ele: "Estamos um pouco preocupados porque o tópico é muito controverso", e ele foi instruído a retirar o anúncio que tinha comprado para o programa. O KDOC recusou-se a comentar.
Lane logo mudou o "Cannabis Planet" para o KJLA, outro canal independente que atinge cerca de cinco milhões de lares no sul da Califórnia, que disse que estava feliz em transmitir o programa, com um aviso legal eximindo-se da responsabilidade sobre o conteúdo.
Um californiano nativo, dado a declarações do tipo "Você sabia que a guerra de 1812 foi por causa da maconha?", Lane disse que fuma maconha desde seu segundo ano de faculdade. Ele agora é um usuário médico de maconha, disse, dependendo da droga para atenuar seu distúrbio de hiperatividade e déficit de atenção.
"Cannabis Planet" está começando a dar lucro, disse Lane, por causa de uma lista cada vez maior de anunciantes, que incluem desde médicos que receitam a planta a companhias que vendem fertilizantes para produtores. Agora ele quer sindicalizar a série, disse, e está negociando com canais em San Diego e Denver.
O programa de Lane faz companhia para "Cannabis Common Sense", um programa semanal a cabo em Oregon que começou no final dos anos 90 e é produzido por um grupo de defesa da cannabis.
Calvina Fay, diretora executiva da Fundação Drug Free America, disse que um programa de TV semanal elogiando a maconha e dizendo que ela é inofensiva contribui para que o público tenha uma percepção inapropriada da droga. "Eles estão colocando as vidas das pessoas em perigo ao promover uma erva tóxica e prejudicial para pessoas doentes e ignorando intencionalmente os danos que ela pode causar", disse ela, acrescentando que a droga foi "relacionada a uma variedade enorme de problemas de saúde".
Lane, discordando veementemente dos grupos antidrogas, diz que seu programa existe para difundir fatos sobre a cannabis. É por isso que ele não apresenta informações sobre o uso recreativo da maconha por enquanto.
"Infelizmente, isso ainda é visto como ofensivo por muitas pessoas", disse.
Tradução: Eloise De Vylder

[New York Times, 20/09/2009]

Aids causa reboliço na Alemanha

Barbara Hans

Uma campanha educativa alemã controversa, focada na prevenção de HIV/Aids, mostra Adolf Hitler fazendo sexo. Foi criticada no mundo todo pela falta de gosto e de propriedade - mas os produtores não veem qual é o problema.A cena é mal iluminada e o telespectador não consegue distinguir o homem e a mulher que obviamente estão em atividade sexual. Finalmente, o rosto do homem entra em foco. Nada menos do que Adolf Hitler. E aparecem os dizeres: "A Aids é um genocida."
A nova campanha, iniciativa da Regenbogen (arco-íris), uma obra de caridade alemã que tem como meta educar o público sobre a prevenção do HIV/Aids, usa genocidas famosos da história - incluindo Hitler, Josef Stalin e Saddam Hussein - para ressaltar questões em torno do vírus. Eles desenvolveram uma série de cartazes e vídeos junto com a agência de propaganda de Hamburgo Das Comitee. Antes mesmo de seu lançamento oficial, o material já estava disponível online e recebia críticas pesadas - sem mencionar o alto índice de visitantes.
No Reino Unido e nos EUA, houve vários comentários sobre a falta de gosto da campanha. "É claro que há muitas organizações de HIV que fazem campanhas próprias. Contudo, acho que o anúncio é altamente estigmatizador para as pessoas que convivem com o HIV e já enfrentam muita discriminação devido à ignorância sobre o vírus", disse ao "Daily Telegraph" uma porta-voz da National Aids Trust, que coordena o Dia Mundial da Aids no Reino Unido.
A organização preocupa-se que esse tipo de campanha desestimule as pessoas a fazerem o exame para a doença porque podem se considerar "genocidas". Além disso, os vídeos foram criticados por não darem informações sobre como prevenir a doença.

Atrair a atenção
Entretanto, os produtores da campanha não compreendem por que tanta confusão. Eles veem o fato da campanha ter atraído tanta atenção e dos vídeos estarem sendo assistidos milhares de vezes no YouTube como sinal de que seu plano está funcionando.
No site da campanha, eles explicam que: "Até agora, 28 milhões de pessoas morreram. E todos os dias há 5.000 casos novos. É por isso que a Aids é um dos mais eficazes genocidas da história.""Queríamos dar um rosto ao vírus, não às vítimas do vírus", explicou Dirk Silz da Das Comitee ao "Spiegel Online". "Sabíamos que a campanha era um pouco forte - queríamos que chamasse a atenção". Silz acha que as campanhas anteriores produzidas por uma agência do governo com vegetais e os dizeres "Não dê uma chance à Aids", não surtiram o mesmo efeito.Silz rejeita as acusações que o vídeo não é explícito o suficiente no que concerne instruir as pessoas para tomarem medidas preventivas. "Há o conselho 'Proteja-se!'. Alguém que não saiba que os preservativos protegem contra a Aids ainda está na Idade da Pedra."
Silz descreve a campanha como um "passo radical". Contudo, o uso de Hitler em campanhas de informação de HIV/Aids não é nada novo. A organização Aidshilfe, de Munique, fez uma campanha no início do ano com o slogan inconfundível "O pênis como ditador".

Efeito de chocar
Jan Schwertner, assessor de imprensa da Regenbogen, esforçou-se para enfatizar que não tinham sido "os primeiros a associarem os tópicos de Aids e ditadores". Em outras palavras, a abordagem não é original, mas ficou claro que a campanha foi calculada para chocar e pode revoltar algumas pessoas.
"Estamos trabalhando com o impacto. O excesso de estímulo da mídia significa que muitas coisas passam despercebidas", disse Schwertner em referência à campanha dos vegetais. "As estratégias de prevenção de HIV/Aids têm que ser reavaliadas", disse ele, acrescentando que particularmente os jovens reagiram de forma positiva à nova campanha.
Para Regenbogen, a campanha foi um sucesso. Como diz o velho ditado, não existe publicidade ruim.Schwertner rapidamente salienta que ninguém que trabalha para a associação sente-se discriminado pela campanha. É a doença e não os infectados que estão sendo retratados como genocidas, diz ele.
Regenbogen acredita saber a razão das objeções no Reino Unido. Ele acha que nascem do medo das organizações de perderem doações porque a publicidade em torno da campanha pode levar mais dinheiro aos cofres da associação alemã no lugar da British Aids Trust.Então os britânicos estão com inveja da campanha de Hitler deles? "A Aids é uma doença e não política", diz Schwertner.

Tradução: Deborah Weinberg

[Der Spiegel, 08/09/2009]


Medicina utópica

Trajetória de Wilhelm Reich, que tem novo título lançado no país, se insere em tradição de cientistas de esquerda que defenderam causas grandiosas e exóticas, como o rejuvenescimento

Recentemente lançado no Brasil, "A Biopatia do Câncer" [WMF Martins Fontes, trad. Maya Hantower, 486 págs., R$ 79], continuação de "A Descoberta do Orgone" [cuja primeira parte é "A Função do Orgasmo"], ambos de autoria de Wilhelm Reich (1897-1957), é um texto superado do ponto de vista científico, mesmo porque data de 1948, mas muito significativo como documento histórico. Diz Reich que o câncer é uma putrefação dos tecidos causada pela privação do prazer. Segundo ele, um hipotético "T-bacilo" (T de "Tod", morte, em alemão) seria o responsável por esta putrefação. O "T-bacilo" proliferaria por causa da diminuição, no organismo, do orgone, a energia cósmica. O orgone não existe. Era um produto de imaginação desvairada, cuja gênese vale a pena examinar.
De uma abastada família judaica da atual Ucrânia, Reich formou-se em medicina em Viena, especializou-se em psiquiatria e, discípulo de Sigmund Freud, tornou-se psicanalista. Como Freud, via na neurose o resultado de conflitos de natureza sexual; mas a isso acrescentava um componente ideológico: a repressão também resultaria das imposições da moral burguesa.
Reich era comunista, ainda que heterodoxo: o partido terminou por expulsá-lo. Fugindo do nazismo, foi para os Estados Unidos, onde suas ideias tiveram muita repercussão. Via-se como um revolucionário, um contestador; sua bandeira de luta era exatamente o orgone, cuja existência defendeu até o fim. Mais do que isso, inventou um "acumulador de orgone", uma espécie de caixa, na qual a pessoa poderia "recarregar a bateria".
Entre os usuários do "acumulador" estavam escritores conhecidos, como Norman Mailer, J.D. Salinger e William Burroughs; mas Albert Einstein, cujo apoio Reich buscou, não se deixou convencer. Mais cética ainda mostrou-se a FDA, órgão governamental [norte-americano] de fiscalização [de alimentos e medicamentos] que, em 1954, iniciou um processo contra Reich. Numa atitude muito típica, insistiu em defender-se sozinho, sem recorrer a advogados.
Condenado, foi encarcerado em 1957 e morreu de ataque cardíaco na prisão. Obras suas, como "Análise do Caráter", "Escute, Zé-Ninguém!", "A Revolução Sexual" e "Psicologia de Massas do Fascismo", são ainda lidas e mostram-no como um pensador no mínimo original.

Ciência transcendente
O caso de Reich não é único, e situa-o num curioso grupo de pessoas: cientistas comunistas ou de esquerda que a certa altura de suas trajetórias passam a defender causas tão grandiosas quanto exóticas. Causas que têm um denominador comum: propõem-se, pela utilização da ciência e da técnica, a resolver um problema de saúde que seja transcendente. Um exemplo é o de Alexander Aleksandrovich Bogdanov (1873-1928).
Nascido Alyaksandr Malinouski, em Belarus (como muitos revolucionários, Lênin e Stálin inclusive, trocou de nome), Bogdanov foi médico, filósofo, escritor. Sua trajetória de contestador teve início já na escola médica da Universidade de Moscou; preso e exilado, em 1903 uniu-se aos bolcheviques de Lênin, de quem era ardoroso defensor.
Por causa de suas posições excessivamente radicais foi, como Reich, afastado do partido bolchevique. Passou a dedicar-se a pesquisas médicas, atuando também nos campos da filosofia e da economia (foi professor universitário nessa área); fez literatura de ficção, sendo considerado um dos pioneiros na ficção científica. Logo depois da revolução de 1917, fundou, junto com outros intelectuais, o Proletkult, movimento de cultura obreira, que, de início, recebeu o apoio do governo comunista, e depois foi denunciado como "burguês".
Mais uma vez, Bogdanov foi preso, acusado de conspiração. Liberado, passou a dedicar-se, em 1924, a experimentos médicos que tinham como objetivo conseguir, por meio de transfusões de sangue, o rejuvenescimento do organismo. Muita gente se interessou pelo procedimento, incluindo a irmã de Lênin, Maria Ulianova, que se ofereceu como voluntária para os experimentos. Bogdanov criou um instituto de hematologia e de transfusões. Quando Lênin morreu [em 1924], ele foi chamado para, diz-se, tentar a ressuscitação.
Morreu ao receber uma transfusão; o sangue ou estava contaminado (teria sido de um jovem com malária) ou era incompatível com o seu tipo sanguíneo, coisa que à época não era bem entendida. Bogdanov mencionara o uso da transfusão sanguínea na sua futurista novela "Estrela Vermelha" (1908), que tem Marte como cenário e na qual defende a emancipação feminina e o controle da sociedade pelos trabalhadores.

Vida longa
Numa linha diferente trabalhou o contemporâneo de Bogdanov Oleksandr Oleksandrovich (ou Alexander Alexandrovitch) Bogomolets (1881-1946), fisiologista ucraniano. Formado em medicina, Bogomolets fez carreira universitária nas áreas de fisiologia e patologia.
Em Kiev, fundou o Instituto de Biologia Experimental e Patologia e o Instituto de Fisiologia Clínica Experimental; foi membro da Academia Ucraniana de Ciências. Começou então a estudar a questão da longevidade, fazendo pesquisas na Abkházia e na Geórgia [então membros da União Soviética], regiões famosas pela elevada expectativa de vida. Seu trabalho (descrito no livro "O Prolongamento da Vida") era apoiado pelo próprio Josef Stálin, então dirigente da União Soviética, que providenciou o financiamento necessário.
Bogomolets injetava em cavalos uma mistura de células do baço e de medula óssea extraídas de pessoas jovens e sadias falecidas acidentalmente, visando à formação de anticorpos -era o soro antirreticular citotóxico, que supostamente reforçaria as defesas imunológicas do organismo, evitando doenças e o envelhecimento. O que, diga-se de passagem, nunca foi comprovado.
Mais recentemente, a tradição do rejuvenescimento e do combate ao envelhecimento teve continuidade com a médica romena Ana Aslan (1897-1988). Formada em medicina, tornou-se docente na Universidade de Tamisoara [na Romênia]. No final da década de 1940, começou a estudar os efeitos da procaína, um anestésico usado tradicionalmente pelos dentistas. Surgiu daí um medicamento conhecido como Gerovital H3, usado por, entre outros, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Claudia Cardinale, Kirk Douglas, Salvador Dalí, Pablo Picasso, Pablo Neruda, John Kennedy, Suharto e Mao Tse-tung.
Nos anos 1960, o então ditador da Romênia comunista, Nicolae Ceaucescu, divulgou ativamente no exterior esse tratamento. O tratamento de Aslan tornou-se um produto de exportação, mas não teve o endosso da ciência médica. Trabalhos dos anos 1970 sugeriam que o Gerovital H3 poderia ter um leve efeito antidepressivo, mas que não agia contra doenças da velhice, segundo a conclusão de um artigo publicado em 1977 na revista da Sociedade Americana de Geriatria, que analisou dados referentes a mais de 100 mil pacientes ao longo de 25 anos. Em 1994, a FDA considerou o remédio "droga não aprovada".
O apelo do rejuvenescimento era algo muito forte. Em um regime autoritário como era o stalinismo, tinha outras finalidades. Primeiro, mostrar o poder da ciência, inclusive sobre a religião: a vida eterna tornava-se dispensável. Segundo, e mais importante, dava uma nova base ao projeto de criação de um novo homem. O apelo dessa proposta à imaginação de líderes e de pesquisadores revelou-se irresistível. Só que, lá pelas tantas, a imaginação tomou conta do projeto. Até envelhecer e morrer.

MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

[Folha de São Paulo, 06/09/2009]

Ciência e liberdade

Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade

Já que esta coluna cai na véspera do dia da Independência, achei oportuno revisitar um tema que está sempre presente na vida da gente: a questão da liberdade. Claro que, nestas breves linhas, eu não teria a pretensão de apresentar muitos pensamentos profundos sobre o que significa ser livre. Convido apenas os leitores a uma reflexão, iluminados, como sempre, pela luz da ciência.Quando era garoto, gostava muito de citar a seguinte frase: "Ser livre é poder escolher ao que se prender". Outra versão é: "Quanto mais chaves você carrega no bolso, menos livre você é". Não há dúvida de que a primeira é mais filosófica. (Acho que é atribuída, talvez erroneamente, ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.) Mas ambas dizem algo de semelhante: que liberdade e escolha andam de mãos dadas. Existem, certamente, situações em que isso não é verdade: pessoas "presas" não por terem cometido algum crime, mas por serem aprisionadas por alguma ideologia que lhes é imposta. Por exemplo, as crianças que nascem em famílias ultrarreligiosas nunca têm a opção de refletir sobre os valores que lhes são impostos. Mesmo sem carregar chaves, estão presas até crescerem o suficiente para poder (ou não) se rebelar. O mesmo ocorre com os indivíduos que vivem em regimes políticos totalitários, onde a "verdade" é controlada pelo Estado. Ou seja, a frase "ser livre é poder escolher ao que se prender" pressupõe que o indivíduo tem a liberdade de escolha. Isso nem sempre é verdade. Para sermos livres, precisamos ter livre acesso à informação. Só assim teremos o privilégio de poder escolher ao que vamos nos prender. Daí o papel fundamental da educação, contanto que livre de censuras ideológicas. Já em torno de 50 a.C., o poeta romano Lucrécio celebrava a importância da educação na liberdade das pessoas. Sua preocupação era com a excessiva superstição dos romanos, que atribuíam tudo o que ocorria à ação de algum deus. Consequentemente, a maioria da população vivia aterrorizada. Só aqueles que usam a razão para desvendar o porquê das coisas podem de fato ser livres, dizia. Só quem reflete sobre as causas das coisas, em vez de atribuí-las cegamente a causas sobrenaturais, é livre dos medos que assombram a vida. A educação deve fornecer ao indivíduo a capacidade de reflexão crítica, a habilidade de saber fazer perguntas e não de aceitar passivamente tudo o que lhe é dito. Essa habilidade, esse ceticismo, é um dos aspectos mais cruciais do treinamento de um cientista. Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade. Essa atitude é exatamente oposta ao que ocorre em culturas conservadoras e repressivas. Mesmo que a ciência busque uma ordem no mundo material, sua essência é anárquica. Os grandes revolucionários da ciência, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein, Bohr, foram todos anárquicos a seu modo. Todos defendiam a sua liberdade de pensamento acima de tudo, recusando-se (ou quase, no caso de Galileu, sob ameaça da Inquisição) a aceitar o saber das autoridades. Para eles, ser livre é ter a coragem de pensar por si mesmo sobre os grandes problemas, na tentativa de chegar a uma verdade aceita pela maioria. Quando penso em liberdade, penso nesses nomes, e em tantos outros -cientistas ou não- que lutaram para que hoje possamos ter a visão de mundo que temos. Se hoje somos mais livres, devemos agradecer a eles. Se há tantos longe de ser livres, é porque ainda temos muito o que fazer.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College

[Folha de São Paulo, 06/09/2009]