O novo regime social

Obra fundadora, "Historia do Brazil", de frei Vicente do Salvador, identificava a mestiçagem como central à formação do país, em 1630

Acaba de chegar às livrarias a mais nova edição da "Historia do Brazil", de frei Vicente do Salvador, um dos clássicos da crônica colonial. Desta vez, a obra foi preparada por Maria Lêda Oliveira, historiadora pernambucana e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, que nos brinda com um cuidadoso estudo sobre o homem frei Vicente, sua época, os códigos letrados de então e as edições anteriores, inclusive a de Capistrano de Abreu [1853-1927].
Esta nova publicação veio a calhar, pois ocorre em um momento em que a historiografia nacional começa a se desprender das chamadas "teorias da dependência", modelos que por décadas prevaleceram na explicação da economia brasileira dos séculos 16 e 17. Assim, a reedição é uma ótima oportunidade para olharmos de maneira mais crítica para a formação da sociedade brasileira.
Concluída, provavelmente, em 1630, a "Historia do Brazil" nos traz depoimentos de um homem a um só tempo jesuíta e filho de uma nobreza da terra baiana em gestação sobre as feições de uma sociedade que logo seria centro do império ultramarino luso. Vejamos isso com mais atenção.
Em 1656, menos de 30 anos depois de concluída a "Historia do Brazil", o Conselho da Fazenda da monarquia lusa expunha a situação de seu império. O outrora florescente Estado da Índia estava reduzido a seis praças, "sem proveito religioso e econômico".
Em contrapartida, o Brasil tornara-se a "substância principal" da monarquia e "Angola o nervo das fábricas do Brasil". Portanto, conforme o egrégio conselho, o sistema atlântico luso já estava constituído naquele momento.

Economia da escravidão
Os engenhos de açúcar espalhavam-se pelo litoral de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Da mesma forma, as produções de alimentos, encravadas ou não nas áreas agroexportadoras, abasteciam as gentes desta América. Completando o cenário, os escravos, cada vez mais, vinham de Angola, substituindo os chamados negros da terra (índios).
Esse sistema atlântico e escravista ampliou-se com a mineração e permaneceu como base da Monarquia lusa até 1822.
Diante desse panorama, uma pergunta parece inevitável. Como isso ocorreu? Afinal, em 1591, a estimativa do número de engenhos no Brasil era de apenas 63. Menos de 50 anos depois, em 1637, passava para 350. Segundo as toscas informações sobre o tráfico de africanos para o Brasil, entre 1580 e 1600, por ano, entraram 2.000 cativos e, na década de 1620, tais entradas já eram mais de 6.500 almas. Por conseguinte, em menos de 50 anos, os números de engenhos e de escravos africanos triplicaram, pelo menos. Assim voltamos ao nosso frade, contemporâneo dessa transformação do "Brazil". Por meio de uma leitura atenta de seu texto, podemos ter indícios da lógica social que presidiu aquela formação econômica e, consequentemente, as opções de seus agentes.
Em diversos capítulos ele nos relata, por exemplo, a ação dos Coelho, Albuquerque e dos Sá. Parentelas que, "à custa de suas fazendas e vidas", conquistaram partes daquela América, estendendo o domínio da monarquia de Pernambuco ao Maranhão e da Bahia ao Rio de Janeiro. Em seguida, cuidaram do "bem comum" das gentes, com o estabelecimento da Justiça, do mercado público e da defesa. Desse modo, começavam a funcionar as "repúblicas" ou municípios, sob a tutela do rei, porém dirigidos por Câmaras votadas pelos homens bons da terra, garantindo, tal como no reino, o autogoverno das comunidades. O relato dessas ações ocupa boa parte do livro e expressa práticas sociais conhecidas há tempos no Antigo Regime luso. Daí não nos causa espanto que Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, e seu cunhado, Jerônimo de Albuquerque (os dois vindos da Índia), tenham recorrido a essas práticas. Sendo a mesma receita utilizada por Mem de Sá, governador geral do Brasil (1504-72), e cuja autoridade teve como um dos alicerces sua parentela e clientela, e não apenas os parcos recursos da coroa.

Índios e fidalgos
Com certeza, esses e outros conquistadores, ainda dentro das normas do Antigo Regime, foram remunerados por sua majestade. Ou melhor, receberam mercês na forma de vastas terras, foros de fidalgo, privilégios mercantis e cargos régios que lhes davam acesso aos recursos da jovem sociedade. Mais ainda, ganharam do rei o mando político das gentes. Porém, esse mando só foi possível por meio de outro expediente: as alianças com segmentos das populações indígenas. Aqui surgem, na crônica de nosso frei Vicente sobre a formação do "Brazil", outros atores, com menos recursos, porém, ainda, agentes: os índios. O filho de Jerônimo de Albuquerque, seu homônimo e conquistador do Maranhão (1548-1618), tratava os índios de suas terras como "sobrinhos", talvez por ele próprio ser mestiço, neto materno de um chefe indígena. Ou seja, ele era produto da aliança com frações indígenas. Aliados e aparentados a índios flecheiros, Jerônimo, os descendentes de Diogo Álvares Correia (Caramuru) e outros conquistaram terras e índios escravos. Conforme se sabe hoje, a "decolagem" dos engenhos de açúcar fora possível pela escravidão indígena. Aqui a evangelização, seja dos índios aliados ou conquistados, como sugere Vicente Salvador e sublinha Maria Lêda Oliveira, era essencial para o sucesso do "Brazil". Principalmente se lembrarmos que não se contava com o crédito de capitais ingleses e holandeses, como ocorreu no Caribe seiscentista, dispostos a comprar avalanches de africanos para as "plantations".
Os mecanismos de Antigo Regime permitiriam à América lusa, no século 17, inundar o mercado internacional de açúcar e comprar cerca de 40% do total dos escravos que cruzaram o Atlântico. Mecanismos que se traduziram em um sistema atlântico diferente do comandado por Londres e Amsterdã, este último mais afinado com o capitalismo ou algo que o valha. A "Historia do Brazil" fornece indícios das origens do sistema Atlântico luso de tipo antigo e mais de uma sociedade que conseguiu, a um só tempo, combinar a mestiçagem e uma forte ascensão social, e isso nos quadros de uma hierarquia social com traços estamentais.

JOÃO FRAGOSO é professor do departamento de história da Universidade Federal do RJ e coorganizador de "Conquistadores e Negociantes" (ed. Civilização Brasileira).

HISTORIA DO BRAZIL Autores: Frei Vicente do Salvador (vol.1) e Maria Lêda Oliveira A. da Silva (vol. 2) Editora: Versal (0/xx/21/2239-4023) - Quanto: R$ 212 (592 págs.)


[Folha de São Paulo, 15/02/2009]

Bushlândia, bem próxima da capital da Albânia

Com a vitória de Obama, um coro de vozes críticas se levanta em todo o mundo para renegar o reinado de George W. Bush.

Em todo o mundo? Não! Na pequena cidade de Fushe Cruje, a 40 minutos de Tirana, capital da Albânia, a população resiste. "Para mim é um horror tomar o café na mesma sala em que Bush tomou", escreveu o chefe de polícia local no livro que o dono do Bar Cela - hoje rebatizado Bar Bush - conserva em cima de uma mesinha para que os clientes escrevam as impressões que lhes causa sentar-se na mesma cadeira em que esteve George W. Bush.
Foi em 2007 quando, a caminho de Kosovo, o presidente americano passou na Albânia 6 horas e 4 segundos, e quase a metade desse tempo passou em Fushe Cruje.
Aqui, no bar do senhor Luan Cela, Bush e sua mulher, Laura, tomaram café e partiram com um pequeno grupo de albaneses escolhidos - um pastor de ovelhas, uma padeira, uma costureira, uma cigana e um barbeiro. A cadeira onde ele se sentou, forrada de azul, repintada de marrom para a ocasião, tem hoje no encosto a inscrição "Presidente Bush". É o "lugar sagrado", como chama Astrid Xhafer, embora seja o agente da polícia criminal, Ardion Bajaj, quem escreve no livro de visitas as palavras mais sentidas: "Dois deuses há no mundo. Um é o deus do céu. E o outro, o presidente dos EUA na terra", escreve, superando os elogios de seu antecessor.
Festim Cela, filho do dono do bar, afirma que os albaneses devem ser a população do mundo que mais ama os EUA - "a América", dizem, e nunca Estados Unidos. "É a terra prometida, algo que vem de geração em geração."
Não que a América lhes tenha correspondido. Pelo contrário, pois os abandonou às experiências do Banco Mundial durante os anos 1990 (com o histórico colapso da "crise piramidal" e uma revolta que destruiu o país e armou a população depois de saquear os quartéis). E voltou a abandoná-los quando a Otan, depois de intervir em Kosovo, deixou a Albânia à própria sorte.

Mas os albaneses não se mostram ressentidos e compensam seu isolamento e solidão com a independência de Kosovo. "Bush nos devolveu Kosovo, por isso lhe queremos tão bem", diz Fastim Cela. Por isso e porque Bush teve o detalhe de visitá-los, a primeira vez que um presidente dos EUA viajou à Albânia. A estada foi um pouco acidentada, e persiste o mistério de se alguém roubou o relógio de Bush - um belo relógio que pode ser visto nas fotos da primeira parte de sua visita, quando entra no bar Cela, quando cruza a rua até a padaria de Klarita Topi, onde comprou um pão de milho -, mas desaparece depois que ele sai da padaria e submerge em um banho de multidão.

Aqui todos negam o furto, mas ninguém esquece as palavras do presidente Sali Berisha quando visitou a cidade, alguns dias depois, e perguntou: "Onde vocês meteram o relógio?" Naquele dia glorioso - "10 de junho de 2007", como rezam as placas comemorativas no bar e na padaria -, foi Fastim Cela quem teve a honra de servir o café a Bush. E quis deixar as coisas claras porque se disse, se publicou, "se difamou" que o café não era dele, que o café tinha vindo diretamente do "Air Force One". "A única coisa que os americanos fizeram foi me levar alguns dias antes uma cafeteira para café filtrado. Bush não gosta do café expresso. Mas o café era meu, do que compro em Tirana. O preparei 15 minutos antes e o coloquei em uma garrafa térmica para que não esfriasse."

Confiaram em você? "E na minha família. Alguns dias antes vieram me interrogar. Perguntaram se eu tinha algo contra Bush e se queria lhe causar mal. Eu? Nós amamos Bush! Como não iam confiar?"
Luiza Mukaj, a costureira, foi outra das pessoas que estiveram no bar com Bush. Todos os reunidos são pequenos empresários que haviam obtido um microcrédito de uma ONG americana. "Me pareceu um homem muito próximo, ele e sua mulher. Interessou-se por minha família, pelas crianças. E quis saber como é utilizado o dinheiro do povo americano."Ficou contente?"Muito, porque devolvemos o dinheiro que nos deixaram. Pagamos todas as prestações."

A vida de Luiza é a vida comum de uma mulher albanesa. Uma vida dura. Durante o comunismo trabalhava em uma fábrica de peças para tratores e máquinas agrícolas. Viviam oito pessoas em um único cômodo. Em 1990 a fábrica foi destruída pelos trabalhadores porque o governo não pagava os salários. Não ficaram nem os vidros. Seu marido, motorista do exército, perdeu o emprego. Passaram dez anos vivendo mal, passando fome e, durante a violência de 1997, tiveram de dormir com um Kalashnikov - que roubaram - embaixo da cama, todos no corredor porque as balas entravam pelas janelas. Um dia decidiu comprar roupa velha dos ciganos, a costurava, arranjava e vendia como nova. E assim virou "modista". Mas agora tem medo. Medo do clima de terror e extorsão que reina em sua cidade sem lei, onde todo mundo anda armado. E do futuro.

"No dia seguinte de tomar café com Bush", diz, "fui à embaixada pedir um visto. Não me deram. Aqui tenho medo."
A anciã Thomaida é a bushista mais entusiástica do povoado. Bush a abraçou na rua e lhe disse: "Você se parece com minha mãe". Agora todos a chamam de "a mãe de Bush". Seus filhos a viram pela televisão da Itália e da Grécia e a cumprimentaram. "Caramba", ela diz, "me explicaram que era o presidente dos EUA. Dou graças a Deus por minha sorte."

Bru Rovira - Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[La Vanguardia, 06/02/2009]

Indulgências retornam, e o céu fica um pouco mais próximo para os católicos

O anúncio em boletins e websites da igreja foram recebidos com entusiasmo por alguns e com cautela por outros. Mas, acima de tudo, ele não foi compreendido por uma vasta geração de membros da Igreja Católica que não fazem ideia do que isso significa: "Bispo anuncia indulgência plenárias".

Nos últimos meses, dioceses de todo o mundo têm oferecido aos católicos um benefício espiritual que há décadas deixou de ser popular - a indulgência, uma espécie de anistia dos pecados para evitar punições após a morte -, além de lembrá-los de como a igreja tem capacidade de mitigar o preço do pecado.

O fato de que muitos católicos com menos de 50 anos jamais procuraram obter indulgências, e nunca ouviram falar delas exceto no segundo grau, nas aulas de história europeia (quando Martinho Lutero denuncia a venda de indulgências em 1517, fazendo com que tenha início a Reforma Protestante), simplesmente torna a reintrodução delas mais urgente para aqueles líderes da igreja que desejam restaurar tradições de penitência em declínio naquilo que eles veem como um mundo auto-satisfeito.

"Por que estamos trazendo as indulgências de volta?", pergunta o bispo Nicholas A. DiMarzio, do Brooklyn, que apoia a medida. "Porque existe pecado no mundo".

Assim como a missa em latim e as sexta-feiras sem carne, a indulgência é uma das tradições que foi retirada das práticas normais dos católicos na década de 1960 pelo Concílio Vaticano Segundo, a reunião de bispos que estabeleceu um novo tom de simplicidade e informalidade para a igreja. O retorno da indulgência é visto como parte de uma ressurgência conservadora que gerou algumas mudanças discretas e outras altamente polêmicas, como a recente decisão do papa Bento 16 de suspender a excomunhão de quatro bispos cismáticos que rejeitam as reformas impostas pelo conselho.

A indulgência é uma das tradições menos notadas e menos contestadas a ser restaurada. Mas com mil anos de história e volumes de leis eclesiásticas dedicados aos seus detalhes, ela é uma das mais complicadas de se explicar.

Segundo os ensinamentos da igreja, mesmo após os pecadores terem sido absolvidos no confessionário e rezarem os Pais Nossos e Aves Marias como penitência, eles ainda podem ser punidos após a morte, no Purgatório, antes de ingressarem no Paraíso. Em troca de certas rezas, devoções e peregrinações em anos específicos, os católicos podem receber uma indulgência que reduz ou apaga instantaneamente a punição, sem nenhum sacramento ou cerimônia formal.

Existem as indulgências parciais, que reduzem o tempo de purgatório em uma certa quantidade de dias ou anos, e as indulgências plenárias, que eliminam completamente essa pena, até que um outro pecado seja cometido. O fiel pode obter uma indulgência para si próprio ou para alguém que já morreu. Não é possível comprar indulgências - a igreja proibiu a venda de indulgências em 1567 - mas doações de caridade, combinadas a outros atos, podem ajudar a pessoa a receber uma indulgência. Há um limite de uma indulgência plenária diária por pecador.

Ela não pode ser adquirida depois que se está no purgatório.

"O que é isso?", pergunta Marta de Alvarado, 34, que é caixa de um banco em Manhattan, quando lhe dizem que as indulgências estarão disponíveis neste ano em várias igrejas da cidade de Nova York. "Eu simplesmente não sei nada a respeito disso", confessa Alvarado, ao deixar a Catedral Saint Patrick na hora do almoço. "Porém, vou pesquisar".

O retorno das indulgências teve início com o papa João Paulo 2º, que autorizou os bispos a oferecerem essa espécie de anistia em 2000, como parte da comemoração do terceiro milênio da igreja. Mas as ofertas aumentaram bastante sob o seu sucessor, o papa Bento, que tornou as indulgências plenárias parte das comemorações do aniversário da igreja nove vezes nos últimos três anos. A oferta atual está vinculada à comemoração de São Paulo, que tem um ano de duração e que vai até junho.

As dioceses dos Estados Unidos têm respondido com diferentes graus de entusiasmo. A oferta deste ano foi promovida energicamente em lugares como Washington, Pittsburgh, Portland, no Oregon, e Tulsa, em Oklahoma. Ela apareceu proeminentemente no website da Diocese do Brooklyn, que anunciou que qualquer católico poderá receber uma indulgência em quaisquer das seis igrejas em qualquer dia, ou em dezenas de outras em dias específicos, caso preencham os requisitos básicos: ir ao confessionário, receber a sagrada comunhão, rezar uma oração ao papa e "desvincular-se completamente de qualquer inclinação ao pecado".

Mas na adjacente Arquidiocese de Nova York, as indulgências só estão disponíveis em uma igreja, e o website não faz nenhuma menção a elas ("O cardeal Edward M. Egan encoraja todas as pessoas a receber as bênçãos das indulgências", diz o seu porta-voz, Joseph Zwilling, que acrescenta que sabia que a oferta não aparecia no website, garantindo que em breve ela será incluída).

Segundo os especialistas, as indulgências costumam ser anunciadas mais abertamente nas dioceses nas quais o bispo é mais tradicionalista, ou em locais onde há pouca tensão entre os católicos liberais e os conservadores.

"Na nossa diocese, as pessoas ficam satisfeitas com qualquer oportunidade de fazer algo de natureza católica", afirma Mary Woodward, diretora de evangelização da Diocese de Jackson, no Estado do Mississípi, na qual apenas 3% da população é católica. Ela conta que recentemente os paroquianos compareceram à igreja para se informarem a respeito das indulgências. Segundo ela, a pergunta que eles mais fizeram foi: "O que mesmo eu tenho que fazer para obter uma indulgência?".

Mas até mesmo alguns padres admitem que é difícil entender as regras.

"Não é muito fácil explicar as indulgências a pessoas que nunca ouviram falar delas", diz o padre Gilbert Martinez, da Igreja Saint Paul the Apostle, em Manhattan, o local designado na Arquidiocese de Nova York para a obtenção de indulgências. "Mas, é interessante: muita gente veio até mim e disse, 'Padre, não me confesso há 20 anos, mas a disponibilidade de indulgências me faz pensar que talvez não seja tarde demais'".

Na verdade, um dos principais motivos para a reintrodução das indulgências foi trazer os católicos de volta ao confessionário. Em um discurso em 2001, o papa João Paulo 2º descreveu o renascimento dessa tradição como "um feliz incentivo" à confissão.

"As confissões estão em declínio há anos, e a igreja está muito preocupada com isso", diz o padre jesuíta Tom Reese, ex-editor da revista semanal católica "America". "Em uma cultura secularizada de psicologia pop e auto-ajuda, a igreja deseja que a ideia de 'pecado pessoal' volte a fazer parte da equação. As indulgências são uma maneira de lembrar as pessoas da importância da penitência".

"A boa notícia é que não estamos mais vendendo as indulgências", acrescenta ele.

A fim de permanecer em uma boa situação perante a igreja, o católico precisa confessar os seus pecados pelo menos uma vez por ano. Mas em uma pesquisa feita no ano passado por um grupo da Universidade Georgetown, três quartos dos católicos disseram que se confessam menos do que isso, ou que nunca se confessam.

Segundo as regras do "Manual de Indulgências", publicado pelo Vaticano, as confissões são um pré-requisito para a obtenção da indulgência.

Entre os teólogos católicos liberais, o retorno das indulgências parece ser mais uma curiosidade do que um motivo para alarme. "Pessoalmente, acho que passou a época em que as indulgências significavam muita coisa", opina o padre Richard P. McBrien, professor de teologia da Universidade de Notre Dame, que apoia a ordenação de mulheres e o direito dos padres ao casamento. "É como tentar colocar a pasta de dentes de volta no tubo do pensamento original. Se você disser aos católicos deste país que eles podem obter uma indulgência plenária, a maioria não dará a menor importância ao fato".

Em uma tarde recente em frente à Igreja Our Lady Queen of Martyrs, em Forest Hills, no Queens, dois voluntários da igreja discordavam quanto à relevância das indulgências para os católicos modernos. Octavia Andrade, 64, uma secretária aposentada, riu ao lembrar-se da época em que as crianças dedilhavam rápida e repetidamente o rosário para obterem o maior número possível de indulgências - geralmente em múltiplos de cinco ou dez anos - "como se na época precisássemos disso".

Mesmo assim, ela apoia a reintrodução. "Sou a favor do retorno de qualquer coisa antiga", diz ela. "Um fervor maior é uma coisa positiva".

Karen Nassauer, 61, assistente social aposentada de um hospital, que encontra-se com Andrade quase diariamente na missa, diz que está surpresa com o retorno de uma prática que ela nunca entendeu.

"Não estou dizendo que seja necessariamente errado", diz ela. "Mas, para ser franca, eu sempre achei que eles deixariam essa prática desaparecer da memória. O que significa obter uma 'redução de tempo' passado no Purgatório? O que são 'cinco anos' em relação à eternidade?".

As mais recentes ofertas de indulgências não enfatizam as formulações baseadas em anos de Purgatório, e sim uma conta menos específica, com um foco maior nas maneiras pelas quais as pessoas podem ajudar a si próprias - e umas as outras - a lidar com o pecado.

"Essa questão diz mais respeito à reza em benefício dos outros, a fazer boas ações e aos atos de caridade", diz o padre Kieran Harrington, porta-voz da diocese do Brooklyn.

Depois dos católicos, as pessoas que mais entendem desse tópico são provavelmente os luteranos, cuja igreja nasceu a partir do cisma devido à questão das indulgências, e cujos líderes reúnem-se regularmente com as autoridades do Vaticano desde a década de 1960 em uma tentativa de reduzir as suas diferenças.

"Para nós, o momento escolhido para o retorno das indulgências é um mistério", diz o pastor Michael Root, diretor da igreja luterana Theological Southern, em Columbia, no Estado da Carolina do Sul, que participou dessas reuniões. Segundo ele, o retorno das indulgências "não promoveu o avanço do diálogo".

"O nosso principal problema sempre foi quanto à questão de quantificar a bênção de Deus", afirma Root. Os luteranos acreditam que o perdão divino é uma dádiva, não sendo, entretanto, algo que a pessoa seja capaz de influenciar.

Mas para os líderes católicos, e especialmente o papa, o foco nos últimos anos tem se concentrado menos naquilo que os católicos possuem em comum com outros grupos religiosos do que no que os separa desses grupos - incluindo o semi-esquecido mistério da indulgência.

"A indulgência caiu no esquecimento assim como muita coisa na igreja", diz DiMarzio. "Mas ela nunca foi abandonada. Ela sempre esteve lá. Só queremos que as pessoas retornem àquelas ideias que antigamente eram conhecidas".

Paul Vitello - Tradução: UOL

[The New York Times, 10/02/2009]

A revanche do "herege" Lefebvre

Longa batina de negro impoluto, colarinho branco, cabelo escova, gestos austeros, mas firmes, a voz baixa e olhar altivo, os jovens sacerdotes conversam animadamente com os fiéis que aguardam o início da missa na capela Santiago Apóstolo, na Rua Catalina Suárez, no sul de Madri. São 7 da tarde da sexta-feira passada. O salão é amplo e confortável, incluindo uma grande biblioteca com centenas de exemplares à venda. Como som de fundo, cantos e rezas em latim. Vêm de uma bela capela para duas centenas de pessoas. A esta hora não chegam a 20. Assistem à Via Crúcis dirigida por outro sacerdote, estação após estação. Ele aparenta 40 anos e tem gestos marciais. Às vezes canta e os fiéis lhe respondem em bom latim.

São os seguidores em Madri do arcebispo Marcel Lefebvre (Tourcoing, França, 1905-Martigny, Suíça, 1991) e vivem ultimamente cheios de alegrias e sobressaltos. Bento XVI levantou no mês passado a excomunhão imposta a seus prelados em 1988, no dia seguinte a sua ordenação episcopal por Lefebvre, desaconselhada com veemência por Roma. Apesar de tudo, a consagração foi válida e representou o último cisma da Igreja Católica. O papa quis encerrá-lo com seu gesto.

"Nunca nos sentimos excomungados nem cismáticos, mas essa decisão do Santo Padre vem nos dar razão. Estamos muito agradecidos a ele, apesar da demora. Faz tempo que vínhamos esperando isso, sobretudo desde a eleição do papa Ratzinger. Estamos muito contentes", disse um porta-voz.

A alegria é obscurecida pela negação do Holocausto judeu e das câmaras de gás nazistas por Richard Williamson, um dos bispos reabilitados. O escândalo alcançou em cheio o papa alemão, sobretudo em seu país natal, e poderá prejudicar a plena reincorporação dessa irmandade de fiéis à Igreja Romana. Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé, disse assim: "Há hoje uma certa comunhão com o papa, mas faltam situações por definir. A plena comunhão se produzirá quando houver uma solução de todos os problemas". O primeiro passo é que o bispo negacionista se retrate de suas declarações, coisa complicada porque lhe saem da alma.

Reunidos na fraternidade sacerdotal São Pio X, os lefebvrianos contam na Espanha com 13 paróquias e outros tantos locais de culto, atendidos por um bispo (Alfonso de Galarreta, nascido na Cantábria em 1957) e meia dúzia de padres. Dizem que têm um milhar de fiéis. Neste frio anoitecer de sexta-feira passaram pela paróquia em Madri pelo menos 50.

A excomunhão emitida por João Paulo II em 1988 afetou somente o arcebispo rebelde e os quatro bispos consagrados. Nem os sacerdotes nem os fiéis que o seguem foram excomungados. "Eu venho à missa aqui desde sempre e penso em continuar fazendo isso. Aqui eu rezo e vejo o que me ensinaram quando era pequeno", diz um fiel. Aposentado, não aparenta os 60 anos. Sua mulher, muito mais jovem, argumenta com maior paixão. Sabe de cor os telefones da paróquia e da "casa central" que a fraternidade tem nas redondezas de Madri. Do bispo Galarreta sabe que esteve na semana passada "por aqui" e que os "visita muitas vezes", mas não quer dar sua localização. Queixa-se de que a imprensa "procura apenas o escândalo e o escárnio".

É impossível imaginar a excomunhão desses fiéis, mas também que nestes anos tenham sido cismáticos, como são chamados. Riem, inclusive com vontade. "Nossos bispos não foram excomungados por heresia ou por vida moral reprovável. Nada disso. E olhe para nós."

Sobre os outros motivos do cisma, não só não retificam como supõem como se fosse o papa quem se aproxima da fraternidade e não o contrário. "Reconhecemos o papa como cabeça da igreja e cremos em tudo o que a igreja crê. A mim não me ensinaram outras coisas senão as que aprendi sempre. Às vezes leio que este papa e os anteriores governaram muito mal nossa igreja e que permitiram coisas que não se deveriam permitir, como essas missas que pareciam festas de bairro. É o que está dizendo agora até Bento 16."

Apesar de não querer ser identificados, os fiéis de Madri parecem cansados e exibem respostas que têm preparadas há anos. "Olhe, olhe. Antes de ser eleito papa, o cardeal Ratzinger acusou alguns bispos de ter permitido reformas 'com o entusiasmo dos zelotes'. Veja, aqui está a frase, nesta revista. Pode levá-la, eu lhe dou de presente."

Intitula-se "Sim sim não não". Revista católica antimodernista e efetivamente um catálogo das reformas conciliares impostas por Roma nos últimos anos, incluindo a proibição de dizer a missa em latim e de costas para os fiéis.

Os excessos litúrgicos não eram o pior. Lefebvre também rejeitou os ensinamentos básicos do Vaticano II, do qual participou. Os considerava contrários ao proclamado pelos grandes papas anteriores. Concretamente, lhe doía a desautorização a Pio X (1835-1914), que na encíclica Pascendi, de 1907, havia condenado sem hesitação o modernismo. Também questionou alguns atos de Paulo VI e João Paulo II.

"Quem quer o fim quer os meios"
A palavra "cisma" aterroriza os papas católicos. Quem se crê sucessor do apóstolo Pedro e a voz de Deus na terra não pode entender que alguém lhe desobedeça até a ruptura. Antes emitiam ordens de prisão e quando possível mandavam os cismáticos para a fogueira. Desde a perda de seu poder temporal, os papas preferiram a reconciliação.

É o que fez até o desespero o polonês João Paulo II diante do arcebispo Lefebvre, com o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, como intermediário pertinaz. Mas quando o acordo estava pactuado, em 6 de maio de 1988, Lefebvre disse a Ratzinger (hoje Bento 16) que queria consagrar um bispo. Caso fosse negada a permissão, seria levado a proceder em consciência. Dezoito dias depois Lefebvre e Ratzinger voltaram a se encontrar em Roma. O papa aceitava a ordenação episcopal, mas deveria ser adiada por um mês. Ratzinger levava inclusive uma carta de João Paulo II. "Eu peço pelas chagas de Cristo, que na vigília de sua paixão orou por seus discípulos para que todos sejam um", dizia.

Em 30 de junho de 1988 Lefebvre fez bispos Fellay (atual superior da fraternidade), Tiisier de Mallerais, Williamson e Galarreta. Dois dias depois era publicado o decreto de excomunhão.

O caminho de retorno também foi negociado por Ratzinger, cuja eleição papal foi celebrada com regozijo pelos lefebvrianos. Galarreta, o bispo espanhol que foi ordenado com apenas 24 anos, defende com entusiasmo as decisões de Lefebvre. "Quem quer o fim quer os meios. Era preciso salvaguardar o sacerdócio católico, garantir a permanência dos sacramentos, a própria continuidade da igreja. Como conceber uma igreja sem bispos fiéis à fé católica? A política de Roma era 'Morreu o cachorro acabou-se a raiva'. Morto monsenhor Lefebvre, o problema ficaria resolvido."

Mas não. Entre o conflito ou o mérito de encerrar o último dos cismas católicos, Ratzinger preferiu o segundo. Não foi uma graça, mas uma rendição. E representa a última vitória de monsenhor Lefebvre.

Juan G. Bedoya - Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves


[El Pais, 10/02/2009]

Aiatolás ainda não resolveram os problemas que provocaram a revolta no Irã

"Cheguei a ver o rosto de Khomeini na lua", lembra, hoje incrédulo, A. H., que, como jovem oficial do exército do xá da Pérsia, participou da revolução que o derrubou em 1979. "Fui um revolucionário", admite com uma mescla de orgulho e desencanto. Como ele, milhões de iranianos seguiram o chamado de Khomeini no final de 1978 e início de 1979, para sair à rua e tirar do poder Mohamed Reza Pahlevi. Trinta anos depois, aquela geração continua governando, mas a República Islâmica ainda não resolveu alguns dos problemas provocados por um movimento revolucionário sem precedentes no mundo muçulmano.

"Éramos jovens; não analisávamos as coisas. Nos limitávamos a repetir os slogans e acreditávamos de pés juntos nas palavras do imã", afirma esse homem de 55 anos que fez a transição para as novas forças armadas e lutou durante os oito anos de guerra com o Iraque. Hoje aposentado, perdeu aquele entusiasmo. "Pouco a pouco, meus companheiros e eu percebemos que haviam nos enganado", admite, pesando suas palavras.

Poucos reconhecem em público que a revolução foi um erro. Uma revisão não só representa questionar o mito em que o regime transformou o momento de fundação da República Islâmica, como as próprias trajetórias de vida. Tratou-se de um levante popular que contou com o apoio de todo o espectro político. A oposição ao xá incluiu desde marxistas até partidários da monarquia constitucional, passando por intelectuais laicos. A figura de Khomeini serviu de aglutinador e o clero xiita atuou como amplificador ao levar a mensagem para as mesquitas das aldeias mais remotas.

Quaisquer que tenham sido as conquistas, porém, restam muitos assuntos pendentes. A própria chegada ao poder de Mahmud Ahmadinejad em 2005 se fez sobre uma plataforma que pedia a volta aos princípios revolucionários, dando a entender que em certa medida o Irã havia se afastado deles. Mas quais foram os pilares sobre os quais se levantou esse novo modelo que propunha combinar islamismo e democracia?

No âmbito interno, Khomeini prometeu um bom governo e uma sociedade justa, de acordo com a xariá ou lei islâmica. No externo, independência e soberania. Até que ponto se alcançaram esses objetivos é questão de debate no próprio Irã.

"Em termos econômicos os resultados não foram tão bons", admite Saeed Leylaz. Esse economista crítico cita como exemplo que o Produto Interno Bruto per capita não alcança o de 1976 a preços atuais, ou que o Irã está exportando o mesmo número de barris de petróleo que então (2,2 milhões diários). Mas salienta que a brecha social hoje é menor que há 30 anos, sobretudo entre o campo e a cidade. "Nesse sentido, o principal objetivo da revolução foi um êxito", afirma.

Para Leylaz, a maior conquista de todas foi sem dúvida transformar o Irã de uma sociedade rural em urbana. "A República Islâmica nos tornou cidadãos", afirma. Paradoxalmente, esse era o objetivo que se propunha o xá com suas medidas modernizadoras. No entanto, seu abandono do campo e sua revolução de cima para baixo, com a proibição do véu e outros costumes importados, produziram a reação oposta. "A sociedade rural era tradicional demais para isso", admite o analista.

Outro reformista destacado, Mohamed Atrianfar, corrobora essa idéia. "Melhoraram todos os indicadores de desenvolvimento, o nível de bem-estar, de educação, de saúde e inclusive o padrão de consumo", defende, antes de lembrar que seu país foi obrigado a enfrentar oito anos de guerra com o Iraque (1980-88) que retardaram esses avanços.

Na rua, muitos iranianos concordam, mas lamentam ter perdido no caminho o que o diretor de uma sucursal de banco resume como "alegria de viver". Tudo adquiriu um tom cinza neste país cujos poetas sempre enalteceram os prazeres da vida, o amor, as mulheres e o vinho. Mas os iranianos não estão para brincadeiras. Suas principais preocupações são o desemprego e a pobreza, segundo uma pesquisa realizada pela BBC por ocasião do lançamento de seu serviço na língua farsi no mês passado. Foi o que manifestaram 45% dos pesquisados. Só 1% salientou a falta de democracia ou a necessidade de reformas políticas.

A promessa de uma justiça distributiva fica duvidosa diante do fato de que 20% da população controlam 80% da riqueza do país. O agravo é ainda maior quando se considera que o Irã é o quarto exportador de petróleo do mundo. Além do desperdício de que os reformistas acusam Ahmadinejad, Leylaz fala de um problema estrutural que se arrasta desde antes da revolução: a dependência do petróleo. "Os petrodólares permitiram que 70% da economia estejam nas mãos do setor público, esqueceu-se o setor privado e como resultado nossa produtividade é mínima", explica.

Por isso o economista, que era um estudante de 16 anos quando eclodiu a revolução e participou muito ativamente dela, afirma que as transformações foram mais sociais e culturais que econômicas. "Foi uma grande revolução", resume com uma centelha de emoção nos olhos. Essa ternura ao recordar aqueles meses de protestos é algo que se repete em todos os entrevistados, inclusive entre os que hoje se mostram mais críticos desse momento histórico.

"Sem dúvida no campo cultural e científico fizemos avanços notáveis, sobretudo levando em conta que temos uma população muito jovem", indica por sua vez Atrianfar. Dois terços dos 70 milhões de iranianos têm menos de 30 anos e o país conta com 20 milhões de estudantes e 2,7 milhões de universitários. Ele também estava na universidade quando estourou a revolução e uniu-se à luta com a utopia de alcançar a democracia.

E se conseguiu? "Temos as estruturas necessárias, mas não podemos mostrar conquistas exemplares, e à vista está o atual governo", afirma. Atrianfar atribui a falta de entusiasmo da população na defesa dos valores democráticos ao controle estatal da economia. "Como não pagam impostos, os cidadãos não valorizam seu voto como é devido. É uma etapa que deve ser superada, mas não o conseguiremos enquanto não se corrigir o sistema econômico." Mesmo assim, sua avaliação global da revolução também é positiva. Esse engenheiro transformado em jornalista pela via de seu ativismo político se vê obrigado a admitir, no entanto, que "as liberdades como a de imprensa sofreram altos e baixos desde 1979". Na opinião dele, nesse tempo só houve dois períodos aceitáveis: entre 1989 e 1990, depois do fim da guerra contra o Iraque, e entre 1997 e 1998, depois da eleição de Khatami.

"Embora a sociedade tenha evoluído muito, a visão dos dirigentes em relação à imprensa não é diferente de antes da revolução", explica com a experiência de 2006, quando fecharam o "Sharg", jornal que ele dirigia. "A liberdade de imprensa não pode ficar às custas dos governos; enquanto não conseguirmos isso não ocorrerão as melhoras que esperam os defensores dos direitos humanos e as organizações internacionais", adverte. É nesse ponto que ficam mais claras as diferenças entre conservadores e reformistas.

Em política externa os dois grupos costumam concordar que a revolução permitiu recuperar a soberania e a independência. Do Ocidente, mas sobretudo dos EUA, cujo apoio ao xá só fez confirmar para os iranianos a atitude colonial de um país que haviam admirado até que apoiou o golpe de estado de 1953. Daí que a expressão desse objetivo se traduzisse em um antiamericanismo radical que encheu o país de pichações com a inscrição "Morte aos EUA". O slogan continua sendo repetido mecanicamente em cada grande acontecimento político, mas de tanto usá-lo se esvaziou de conteúdo.

O preço dessa obsessão pela independência foi o isolamento internacional em que se encontra o país hoje, por mais que seus dirigentes comprem com os lucros do petróleo amizades improváveis com regimes nas antípodas ideológicas, como a Cuba de Castro, a Nicarágua de Ortega ou a Bolívia de Morales. Mas nem sequer a ausência de verdadeiros aliados entre seus vizinhos promoveu um consenso sobre como se reintegrar à comunidade de nações e recuperar seu lugar de líder regional. (Claro que a desastrosa política de Bush no Oriente Médio os ajudou nos últimos anos a cavalgar sobre uma onda de antiamericanismo que reduz essa urgência.)

Em um recente artigo publicado na revista acadêmica americana "Current History", Mahmud Sariolghalam, professor de relações internacionais na Universidade Shaid Beheshti, aponta para um problema de identidade não resolvido. "O Irã deseja ser um estado normal que exerce as atividades correntes no mundo, ao mesmo tempo que se empenha em ser revolucionário com uma retórica desafiadora", descreve o acadêmico.

A alternância entre idealismo revolucionário e realismo político foi uma constante nessas três décadas que torna difícil para os demais países saber como tratar com a República Islâmica. Ainda hoje, apesar de seu comportamento regional demonstrar que o Irã favorece o "status quo", seu apoio aos grupos radicais palestinos, sua oposição às negociações de paz com Israel e seu programa nuclear despertam enormes receios.

Mas além da retórica exaltada de alguns de seus dirigentes há observadores que detectam a insegurança de um regime que não se sente plenamente reconhecido. Daí que, por ação ou omissão, o restabelecimento de relações diplomáticas com Washington paira sobre o resto das questões e constitui um elemento chave para intuir como o Irã vai evoluir nos próximos 30 anos.

Enquanto boa parte da sociedade opina com a Nobel Shirín Ebadí, que "não há diferença que não possa se resolver através de um diálogo franco", os setores mais recalcitrantes hesitam. A mudança não pode ser feita sobre a estrutura atual. Renunciar ao inimigo histórico deixaria a revolução sem um de seus pilares. Por enquanto, opor-se às políticas arrogantes do Grande Satã e de Israel constitui uma credencial de nacionalismo. Embora um novo clima internacional (que inclua a renúncia dos EUA a promover uma mudança de regime) e o próprio impulso das novas gerações acabarão, mais cedo ou mais tarde, devolvendo o Irã ao lugar que merece.

Ángeles Espinosa - Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 11/02/2009]

Cientista muçulmano explica como os islâmicos receberam a teoria da evolução de Darwin

Astrofísico argelino, Nidhal Guessoum é professor na universidade americana de Sharjah (Emirados Árabes Unidos). Ele se apresenta como um "cientista muçulmano". Sua obra, "Réconcilier l'Islam et la science moderne: l'esprit d'Averroès" [Reconciliar o Islã e a ciência moderna: o espírito de Averróis], acaba de ser publicada pela Presses de la Renaissance.

Le Monde - Como os fiéis muçulmanos recebem a teoria da evolução de Darwin, e qual a sua abordagem ao criacionismo?
Nidhal Guessoum - Não existe no Corão um capítulo como Gênesis, no Antigo Testamento. Mas ali se diz que Adão foi criado a partir da argila, e a maioria dos muçulmanos pensa que se diz que Adão e Eva estavam no paraíso antes de sua queda na Terra. É por isso que a teoria da evolução raramente é ensinada nos países muçulmanos. Mesmo na França, muitos jovens muçulmanos possuem esse tipo de convicção, e se eles aprendem a teoria da evolução na escola, eles permanecem em uma certa esquizofrenia: "Eu lhes respondo segundo a evolução porque está no programa, mas não é o que eu penso". Eu me esforço para explicar que não só a teoria da evolução está correta, como ela também pode ser aceita de maneira compatível com a fé. Essa tarefa é difícil, pois os crentes não aceitam a ideia de que os escritos do Corão devem ser interpretados quando discutimos fatos já estabelecidos.

No que diz respeito ao criacionismo, existe uma aliança objetiva entre os movimentos criacionistas americanos e a organização BAV do famoso turco Harun Yahya, autor de um Atlas da Criação muito divulgado, inclusive na França. Esse promotor do criacionismo muçulmano pelo mundo se inspirou em métodos de seus correspondentes americanos para propagar suas ideias.

Le Monde - Falando de forma mais ampla, de que maneira os muçulmanos fazem a articulação entre o Corão e a ciência?
NG - Existe hoje uma vasta literatura islâmica que valoriza a demonstração de que muitas descobertas científicas modernas estão registradas no Corão. Programas de televisão, livros e sites da Internet são dedicados a esse tipo de discurso, inclusive em francês e em inglês. A geração de jovens é fortemente atraída por esses discursos populistas que parecem lhe conferir uma identidade ao mesmo tempo islâmica e "moderna", uma vez que a ciência lhes "confirma" a origem divina do Corão.

Essa corrente que mescla a teologia e a cultura é tão dominante hoje em dia no mundo muçulmano, que me pedem com frequência que eu utilize meu conhecimento em astrofísica para encontrar novas ligações entre o Corão e as descobertas cósmicas... No ano passado, durante um colóquio na Argélia, um alto dirigente político afirmou que "muitos pesquisadores e estudiosos acabaram admitindo que suas proezas e invenções certamente existem no Corão!"

Le Monde - O senhor pode nos dar exemplos sobre os quais se fundamentam os pregadores para sustentar essa "teoria"?
NG - O versículo "Juro pelas estrelas que correm e se escondem" indicaria a existência dos buracos negros; "Juro pela estrela que aparece (às vezes)", falaria dos pulsares. O mesmo vale para a embriologia, os lasers, o fax, etc.
Tudo isso é ainda mais paradoxal porque o Corão chama explicitamente os fiéis para que observem, usem os sentidos e a razão para adquirir a ciência, e não para que dissequem os versículos, extraindo de lá "descobertas" imaginárias.

Le Monde - Essa teologia tem um fundamento político?
NG - Digamos que seja mais político-cultural; esses discursos fazem bem às pessoas porque a ciência provaria, dessa forma, que o Ocidente não descobriu nada, que tudo já estava escrito no Livro Sagrado. Que o Islã possui até uma superioridade científica. Também seria confirmada a origem divina do Corão, pois só Deus poderia ter ditado, 1400 anos atrás, verdades científicas descobertas muito recentemente.

Le Monde - E como responder a essa tendência?
NG Em meu livro, eu apelo ao "espírito de Averroes". Esse grande pensador do século 12 mostrou como poderia acontecer a harmonia entre o Islã e a filosofia. Ele partia do princípio que existe uma maneira de ler o Corão que não se opõe à razão e não pretende substituí-la. É preciso fazer o mesmo com a ciência, como Pierre Teilhard de Chardin fez pelos cristãos. Trabalhar com essa harmonia permite que se lute contra o obscurantismo, e isso evita qualquer leitura literal dos textos. Essa abordagem é absolutamente necessária para a geração de jovens muçulmanos. Eles devem saber que não é necessário ser fundamentalista para ser um bom muçulmano, e que ser moderno não exige que se rejeite a religião.

Entrevista a Stéphanie Le Bars - Tradução: Lana Lim

[Le Monde, 07/02/2009]

Os argentinos voltam aos anos de chumbo

O processo do general Jorge Olivera Rovere foi aberto na terça-feira (10 de fevereiro) em Buenos Aires. É considerado o mais importante desde o que se deu em 1985 contra os chefes militares da ditadura argentina, comparado, na época, ao de Nuremberg contra os nazistas.

Com 83 anos, aparentemente surdo aos sussurros que circulam na sala do tribunal o chamando de assassino, Jorge Olivera Rovere tem jeito de avô. Contudo, ele é acusado pelo sequestro e desaparecimento de mais de 100 pessoas. O escritor argentino Haroldo Conti, sequestrado no dia 5 de maio de 1976, figura entre suas vítimas.
Também atribuem-se ao general os assassinatos de quatro uruguaios dentro da Operação Condor, o acordo concluído nos anos 1970 entre os ditadores da América do Sul para eliminar conjuntamente os oponentes. Os cadáveres do senador Zelmar Michelini e do deputado Hector Gutiérrez Ruiz, que estavam refugiados na Argentina, foram encontrados em um carro abandonado, no subúrbio de Buenos Aires, no dia 21 de maio de 1976, junto com os de dois outros uruguaios.
Olivera Rovere era o braço direito do general Guillermo Suárez Mason, falecido em 2005, que foi o comandante chefe do Primeiro Corpo do Exército, uma das forças de repressão mais perigosas da ditadura (1976-1983). Ele foi o responsável pelos principais centros de detenção ilegais e de torturas que funcionavam em plena Buenos Aires: Automotores Orletti, El Banco e El Olimpo, lembrado pelo cineasta Marco Bechis no filme "Garage Olimpo" (1999).
"Creio que ele será condenado à pena máxima, pois as provas contra ele são irrefutáveis", avalia Eduardo Duhalde, secretário dos direitos humanos no Ministério da Justiça. O general Olivera Rovere havia sido condenado durante o processo histórico de 1985, mas foi beneficiado com a anistia concedida em 1990 pelo presidente Carlos Menem. Com a reabertura do processo impulsionada pelo presidente Néstor Kirchner em 2003, e a anulação das leis da anistia em 2005, Olivera Rovere foi detido novamente. Após três anos de prisão, ele foi solto em 2007 enquanto esperava o julgamento.

"O rosto do assassino"
Cinco outros militares serão julgados durante o mesmo processo, que poderá durar mais de seis meses em razão do grande número de testemunhas citadas que deverão comparecer.
O primeiro dia de audiência foi marcado por um escândalo: os juízes impediram a entrada de cinegrafistas e fotógrafos da imprensa, causando a fúria das associações de defesa dos direitos humanos. "Queremos ver o rosto do assassino", gritavam os parentes das vítimas. A Corte Suprema havia, no entanto, recomendado que o processo fosse televisionado e fotografado para garantir a transparência.

Christine Legrand - Tradução: Lana Lim

[Le Monde, 13/02/2009]

O "talibã" hindu que quer estragar o dia de São Valentim

A questão começou com violência e depois passou para um humor maroto. Mas estaria o dia de São Valentim a salvo na Índia, especificamente onde liberais e puritanos se enfrentam em uma controvérsia tão tempestuosa quanto engraçada?

Será que os "talibãs" hindus, como são chamados na Índia, colocarão em prática suas ameaças de atrapalhar a festa dos apaixonados que eles acusam de ser um mimetismo vulgar do hedonismo ocidental?
O lado sombrio dessa história que incendeia a mídia na Índia há quinze dias se chama Pramod Muthalik.
Com 45 anos de idade, esse homem calvo de bigode austero, com um lenço amarelo em volta do pescoço, é um chefe autoritário vindo do movimento fundamentalista hindu. O grupo que o fundou - o Sri Ram Sena (Exército do Deus Ram) - foi instituído como polícia dos bons costumes, perseguindo a imoralidade em seu feudo de Karnataka, estado do sudoeste da Índia.
Essa milícia de centenas de pessoas age sobretudo na cidade costeira de Mangalore. No dia 24 de janeiro, ela irrompeu em um bar da cidade, espancando os jovens que bebiam ou dançavam. "Prostitutas", berraram os capangas, batendo nas garotas. "Somos os guardiões da cultura indiana", justificou Pramod Muthalik, que foi detido por essas ações e, em seguida, liberado sob fiança.
Antes de lançar sua campanha contra a decadente "cultura de bar", o agitador de Mangalore havia lutado contra a mistura entre hindus e muçulmanos. No dia 29 de dezembro de 2008, seus partidários interromperam um desfile de moda pelo motivo escandaloso de que "rapazes muçulmanos tinham prazer em olhar a vulgar exposição dos corpos das moças hindus".
Enojado por tantas ofensas infligidas à "tradição indiana", Pramod Muthalik resolveu implicar com o dia de São Valentim. Ele anunciou que seus pelotões do Exército do Deus Ram esquadrinhariam bares e restaurantes na noite do dia 14 de fevereiro em busca de casais não casados. "Nós os conduziremos ao templo mais próximo e os casaremos", avisou Pramod Muthalik.
No campo dos liberais, a estupefação logo dá espaço à raiva. A ministra do Desenvolvimento da Mulher e da Criança, Renuka Chowdhury, denuncia "uma tentativa de talibanizar a Índia". Os intelectuais de esquerda criticam a ameaça "fascista" que encarna Pramod Muthalik e, mais a galáxia de facções nacionalistas hindus adeptas das agressões contra os "mal-pensantes", como o famoso artista Maqbol Fida Hussein, exilado por suas obras supostamente obscenas.

Calcinhas cor-de-rosa
E depois entra o humor. É o lado sorridente de uma história que não se resume mais às caretas hostis de Pramod Muthalik. Atarantadas pelo ataque ao bar de Mangalore, quatro jovens mulheres de Nova Délhi organizaram uma réplica por meio do site de relacionamentos Facebook. Ali elas criaram um grupo de resistência, batizado de "Consórcio de mulheres leves, modernas e amantes de bares". O sucesso foi imediato. Mais de 20 mil internautas aderiram a essa iniciativa. Em seu manifesto, as mulheres do "Consórcio" convocam a todas que comemorem o dia de São Valentim indo a "um bar, onde quer que seja". Acima de tudo, elas pedem ao público que enviem a Pramod Muthalik... roupas de baixo cor-de-rosa.
Pacotes com lingeries frívolas não demoraram a chegar nos centros de coleta do "Consórcio". Pramod Muthalik anunciou que ele responderá enviando "saris rosa", pois o sari é um "símbolo da cultura indiana". Suas críticas argumentam de forma maliciosa que os saris indianos revelam mais do que a calça-e-camiseta ocidentais. A polêmica se acalmou. Até quando?

Frédéric Bobin - Tradução: Lana Lim

[Le Monde, 14/02/2009]

Odisséia - Fonte de Lazer e Sabedoria

Além de constituir, ao lado da Ilíada, obra iniciadora da literatura grega escrita, a Odisséia, de Homero, expressa com força e beleza a grandiosidade da remota civilização grega. Leia mais...

O Peso da Alma

Para a surpresa do bom doutor, a balança acusou 21,3 gramas

Caro leitor: após o assunto de extrema seriedade que tratamos na semana passada -o novo governo de Obama e as mudanças positivas que esperamos nos EUA e, quem sabe, no Brasil- gostaria de voltar a minha e a sua atenção para assuntos mais imponderáveis.
Eis que, essa semana, quando pesquisava material para o meu novo livro (que deverá sair no ano que vem), deparei-me com uma matéria deliciosa que imagino seja do interesse de todos os leitores: o peso da alma.
Pois é, a alma tem ou não um peso?
Claro está, como não estabelecemos contato com uma alma livre ou, se estabelecemos, a pergunta de cunho científico sempre fica deixada para trás perante às de cunho emocional, não temos ainda uma resposta universalmente aceita.
Devo dizer, para maior esclarecimento, que nem todas as religiões acreditam em alma. As que acreditam dificilmente atribuiriam à alma propriedades materiais, como o peso ou um campo eletromagnético. Por outro lado, visto que nós humanos podemos apenas medir aquilo que é material, ficamos limitados a esse tipo de estratégia mais metodológica. Na pior das hipóteses, se obtivermos resultados negativos, confirmaremos mais uma vez nossa incapacidade de mergulharmos nos mistérios mais profundos da existência de forma racional. Que ingênuos aqueles cientistas que acham que poderia ser diferente!
No dia 11 de Março de 1907, leitores do prestigioso jornal americano "The New York Times", depararam-se com a manchete: "Médico acredita que a alma tem peso". O doutor Duncan MacDougall, de Haverhill (EUA), conjecturou que, se a alma fosse material teria uma massa. Para provar a sua hipótese, equipou seis leitos com balanças de boa precisão e ocupou-os com pacientes que estavam à beira da morte. Seguiu-se um período de observação, durante o qual o doutor esperou pela morte de seus pacientes. Cuidadoso, certificou-se de que a perda de peso medida já antes da morte era devida aos fluidos eliminados pelos pacientes pelo suor ou urina; após a sua evaporação, as balanças acusavam uma pequena perda de peso.
Um deles morreu após três horas e quarenta minutos. Para a surpresa do bom doutor, em alguns segundos, a balança acusou uma perda de 21,3 gramas. Seria esse o peso da alma, 21 gramas? Dos seis testes, dois tiveram que ser eliminados devido a erros nas balanças: num deles, a balança não havia sido calibrada corretamente; o outro morreu tão rápido que o médico não teve tempo de calibrá-la.
Dos outros três, dois indicaram uma perda de peso que continuou durante um bom tempo, e o último indicou uma perda de peso que depois reverteu ao normal. O doutor especulou que a partida da alma depende do temperamento da pessoa: as almas daquelas mais lentas demoram mais para abandonar o corpo.
O doutor repetiu o experimento com quinze desafortunados cachorros, não encontrando qualquer diferença no momento da morte. O resultado não o surpreendeu. Pelo contrário, serviu de apoio à sua conclusão.
Afinal, cachorros não têm almas.
Quatro anos mais tarde, o doutor MacDougall voltou às manchetes do "The New York Times". Desta vez, pretendia fotografar a alma usando o recém-descoberto raio-X. Resultados negativos foram atribuídos à agitação da substância animista no momento da morte. De qualquer forma, o doutor afirmou ter visto "a alma de doze pacientes emitir uma luz semelhante àquela vista no éter interestelar".
Pobre doutor. Provavelmente não sabia que em 1905 um jovem físico alemão de nome Albert Einstein havia demonstrado que o éter não existe.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo".

[Folha de São Paulo, 31/12/2009]

A mudança já chegou na montanha mágica de Davos

Francisco G. Basterra
Estão acontecendo coisas extraordinárias. Apenas dez dias depois de iniciada a presidência de Obama, os primeiros indícios da mudança que conduzirá a um novo cenário já ocorreram. Vejamos alguns deles. A montanha mágica de Thomas Mann, em Davos (Suíça), ponto de encontro tradicional em janeiro para celebrar o festim do liberalismo financeiro pelos já ex-donos do universo, foi nacionalizada. A intervenção do Estado, maciça e imediata, para alimentar o apagado motor de arranque da economia mundial é lei. Esqueçamos a ideologia do "laissez faire, laissez passer" para voltar a dois personagens clássicos: John Maynard Keynes e Deng Xiao Ping. O político chinês por aquele "não importa a cor do gato, basta que cace ratos".

Em Pequim, brinca-se ultimamente sobre o extraordinário exemplo da economia socialista americana com características chinesas. Os políticos se apoderaram do fórum de Davos, deixando em segundo plano os banqueiros, atacados por uma onda mundial de irritação que não entende sua resistência a dar créditos. Desgosto refletido nos rostos dos cem espanhóis que perguntavam na segunda-feira ao primeiro-ministro na TVE, e a extrema dificuldade de ZP [José Luis Rodríguez Zapatero, o primeiro-ministro espanhol] para explicar com tecnicismos que "não estamos injetando dinheiro nos bancos".

Se o programa "Tenho uma Pergunta para Você" é o último estágio da democracia pós-moderna, apague a luz e vamos embora. A Big-Brotherização da política via tubo catódico. Tudo é um "reality show". Tinha razão Giovanni Sartori em seu livro "Homo Videns - La Sociedad Teledirigida": a videopolítica manda nesta teledemocracia.

A necessidade de criar um grande xerife ou supervisor global do sistema financeiro quase não é mais contestada. Algo impensável até muito pouco tempo atrás. Bernanke, o presidente do Federal Reserve dos EUA, explica que "o mundo está muito interconectado para que os países vão cada um para seu lado em suas políticas econômicas, financeiras e regulatórias". Dois banqueiros espanhóis estão em Davos, exatamente os que nesta semana anunciaram os maiores lucros do banco europeu e quase mundial: € 14 bilhões.

Outro sinal incompreensível para o cidadão comum ou o pequeno empresário feridos pela falta de liquidez. A esta altura parece claro que a decisão já foi tomada: salvar os bancos acima de tudo, recapitalizá-los, sanear seus balanços, nacionalizá-los se necessário, inclusive criar, como sugere Almunia [Joaquín, comissário europeu de Assuntos Econômicos e Monetários], um banco "ruim" financiado pelo contribuinte, preenchê-lo com os ativos tóxicos de todos os bancos.

O FMI anuncia que o valor dos ativos bancários contaminados chega a € 1,65 bilhão. Os bancos não vão emprestar porque sabem que precisarão de mais capital para aguentar esse buraco negro. E a economia parada. E, como no Titanic, os banqueiros, como se fossem mulheres e crianças, são os primeiros a saltar para os botes e o resto dos mortais espera a bordo enquanto escuta a última valsa da orquestra.

Mas ao que parece somos todos culpados, porque nós particulares guardamos a poupança na meia doméstica, assim como os bancos em suas caixas-fortes. Já nos disse Zapatero para confiar - em quem ou em quê? - e consumir, depois de seu ministro da Indústria recomendar uma surpreendente volta à autarquia.

O único economista que, já em janeiro de 2008, disse em Davos que a economia mundial se dirigia para uma aterrissagem catastrófica, Nouriel Roubini, professor na Universidade de Nova York, afirma agora que o banco americano está quebrado por insolvência. E o mesmo se pode dizer dos bancos europeus. Por sua vez, Nassim Taleb, autor do interessante livro "El Cisne Negro: el Impacto de lo Altamente Improbable" [O cisne negro - o impacto do altamente improvável], subiu aos Alpes para afirmar que a nacionalização dos bancos é absolutamente necessária. "Sabem que vamos resgatá-los e nos têm presos como reféns". Obama denunciou a "sem-vergonhice" dos executivos financeiros de Wall Street que continuam recebendo suculentos salários enquanto recolhem as abundantes ajudas do governo.

O insólito apelo de Obama ao mundo muçulmano, através da televisão Al Arabiya, para entabular um diálogo respeitoso em que os EUA reconhecem que não devem impor nada, é outro dos acontecimentos extraordinários de que falei no começo. O presidente declarou concluída a longa guerra contra o terrorismo de Bush, prometendo escutar porque com frequência, admitiu, os EUA começam ditando. Barack Husein, metade negro do Quênia e metade branco do Kansas, que viveu na muçulmana Indonésia, e com parentes africanos, muçulmanos e até um rabino judeu, está melhor aparelhado que qualquer outro líder internacional para entender o mundo diversificado e estabelecer essa nova relação.

Também representa um novo EUA que estão deixando de ser "brancos" em grande velocidade. Em 2042 os latinos, negros e asiáticos serão majoritários. Mas em 2023 isso já ocorrerá se contarmos só os americanos menores de 18 anos. Muitos membros da nova Casa Branca nasceram ou viveram fora dos EUA. Dado significativo em um país em que ainda somente 22% da população têm passaporte.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 31/01/2009]

Palestina: O Gueto de Gaza

O que o governo de Israel faz com o Gueto de Gaza sob os olhos de todo o mundo. Ah! Palestina, ah! Palestina, como me dóis cá dentro do meu peito que parece estraçalhado... Ah! Palestina, ah! Palestina, que me resta fazer além de chorar angustiadamente, como estou a fazê-lo agora?
Urda Alice Klueger
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Revolução Cubana: 50 anos de resistência e dignidade

Arrancados de séculos de opressão e atraso, os cubanos jamais se resignarão. Como um país pobre pode construir uma sociedade mais justa para todos. Depois de 50 anos da revolução, Cuba tem a mais baixa taxa de mortalidade infantil e um dos maiores pólos culturais da América Latina
Tiago Nery
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César Battisti: quando o governo brasileiro é exemplo de democracia

O Ministério da Justiça brasileiro concedeu asilo político a Cesare Battisti, ex-militante italiano dos anos 70. Contrário à posição de herdeiros dos regimes autoritários na Itália e no Brasil, o ato pode ser anulado com apoio sórdido da grande mídia. Clique aqui para ler...

Fórum Social Mundial

Desafios do FSM 2009
O desenvolvimento sustentável precisa sair da retórica política e dos departamentos de marketing. A seriedade da questão ambiental terá seu reflexo numa sociedade civil organizada, cuja força defina um debate capaz de converter um modelo economicista para uma concepção sistêmica, totalizadora.
Marilza de Melo Foucher


FSM: Mais do que nunca, apostar na imaginação
"A sociedade planetária enfrenta uma crise emaranhada e complexa: elementos ambientais, alimentares, energéticos.Temos que ver se as idéias e alternativas que se constroem na Amazônia serão escutadas e incorporadas por outras sociedades do planeta. Para mim, esse é o grande desafio de Belém"
Sergio Ferrari

A Crise Financeira Sem Mistérios

Para apresentar os principais encadeamentos da crise financeira é preciso partir dos mecanismos que a desencadearam; a deterioração dos mecanismos e das instituições de regulação, e o papel chave que os Estados Unidos desempenham. Na avaliação dos impactos, quem deverá em última instância pagar pela bancarrota do cassino?
Ladislau Dowbor
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