Até breve... e feliz 2009!

"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e
depois desinquieta.
O que ela quer da gente é
coragem..."

[Guimarães Rosa]

Estamos entrando em recesso, até 26/01/2009. A todos que acompanham nosso blog, um feliz 2009!

O Poder do Sapato

Anxo Lugilde

Nikita Kruschev sabia muito bem quando se descalçou na ONU em 1960 e bateu na mesa com seu mocassim em protesto. Desde domingo passado, com o ataque do jornalista iraquiano Muntazer al Zaidi contra o presidente George Bush, o sapato se transformou definitivamente em arma de protesto, desesperada mas, neste caso, de êxito. Como a pedra para o homem primitivo, o calçado representa o instrumento bélico mais à mão em um cenário fechado, como uma entrevista coletiva, um Parlamento ou uma cúpula internacional.

Sem a carga negativa do desprezo que acumula no mundo islâmico, na cultura visual do Ocidente o sapato significa a pegada da pessoa, o que em semiótica seria definido como a presença da ausência, aponta Fernando de Felipe, professor de comunicação na Universidade Ramon Llull.

De Felipe prognostica que o sapato "vai entrar na moda como símbolo que serve por si só como cartaz ou projétil. Dá a impressão de que as televisões estão à espera de onde e contra quem será atirado o próximo". Segundo essa hipótese, o calçado pode funcionar como ícone de futuras revoltas em um tempo convulso, de crise econômica e protestos juvenis, como os da Grécia ou os da Espanha contra o plano de Bolonia.

Outra possibilidade consiste em que se imponham as normas de urbanidade e que o incidente do sapato não seja mais que um produto da comida informativa rápida que a audiência engole à espera de novos elementos de impacto. Seria um processo semelhante ao que aconteceu com o rei Juan Carlos e Hugo Chávez na Cúpula Ibero-Americana de Santiago do Chile em 2007. A onipresença do "Por que não te calas?" dos primeiros dias declinou com o tempo, mas a célebre frase ficou incorporada ao acervo popular.

O cientista político Fernando Vallespín, ex-diretor do Centro de Pesquisas Sociológicas, acredita que o incidente do jornalista iraquiano "será esquecido em quatro dias. Posso me equivocar terrivelmente, mas creio que é algo passageiro". Vallespín considera que o lançamento do sapato conta com o grande valor de "sintetizar em uma só imagem todo o cansaço da sociedade iraquiana diante da ocupação americana". Mas não crê que possa criar uma moda, pelo menos no Ocidente.

A importância futura de Muntazer al Zaidi contra Bush ainda não foi definida. Está claro seu papel como um ato de guerrilha midiática contra o imperador mundial, que, para completar a coreografia, se esquivou com grande elegância dos peculiares projéteis. "À diferença de outras utilizações do sapato, como a de Kruschev, o caso do iraquiano representa um gesto de resistência, com uma carga muito maior. Por isso o jornalista é considerado um herói no mundo árabe", afirma o historiador Xusto Beramendi, prêmio Nacional de Ensaio 2008 do Ministério da Cultura espanhol. "O sapato serviu a Al Zaidi para marcar o território, como fazem as tribunas latinas ao pendurar os tênis nos fios urbanos", aponta De Felipe.

Há diversos precedentes de utilização política do calçado, como o sapataço de um morador em 1983 contra o prefeito socialista de Abolote (Granada), investido com os votos da Aliança Popular. Mas no caso mais célebre o mocassim não funcionou como projétil, e sim como elemento de percussão. Foi na Assembléia Geral da ONU em 12 de outubro de 1960, quando o delegado das Filipinas criticou a União Soviética por seu imperialismo no Leste Europeu. O líder soviético Nikita Kruschev, segundo seu biógrafo William Taubman, "tamborilou na mesa com os dois punhos e, congestionado, tirou o sapato direito, o moveu ameaçadoramente e golpeou a mesa com ele cada vez mais forte, até que todos os presentes olharam, murmurando". Segundo escreveu o filho de Kruschev, o gesto de seu pai foi deliberado. Ele o havia visto no Parlamento russo antes da revolução e considerava que fosse freqüente no mundo ocidental. "A ONU é uma espécie de Parlamento onde a minoria tem de se fazer ouvir, de uma forma ou de outra", disse um Kruschev encantado com sua atuação.

O recurso ao mocassim não era tão comum como Kruschev acreditava, mas havia exemplos, como o lançamento de um sapato em uma discussão no Parlamento italiano em 1981. O líder russo teve pelo menos um imitador galego, o nacionalista Xosé Manuel Beiras, que saltou para a fama na Espanha em 1993 com a foto martelando seu escano no Parlamento de Santiago em protesto pela reforma do regulamento imposta pelo Partido Popular de Manuel Fraga.

O sapato, que, como mostra o conto "A Gata Borralheira", pode transformar a pessoa, goza de uma grande presença visual na mídia como símbolo da morte. Nos acidentes de trânsito, catástrofes ou atentados como o 14 de Março, o calçado focaliza as fotografias das vítimas, muitas vezes envoltas em lençóis. É a marca das vítimas, como a que deixou o jornalista iraquiano sobre a imagem de Bush.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[La Vanguardia, 19/12/2008]

Horas de desespero

Diminuição das aulas de história em benefício das de sociologia em SP é um erro grave, que irá prejudicar ainda mais os alunos das escolas públicas

Ronaldo Vainfas

Mais uma vez a história sai prejudicada no ensino médio, e não digo isso com o espírito de autocomiseração tão corriqueiro entre os professores de história.
Mas esta decisão do governo do Estado de São Paulo -de reduzir a carga horária letiva de história para abrigar a disciplina de sociologia e ampliar a de filosofia- irá prejudicar os estudantes sem compensação à altura.
A obrigatoriedade da filosofia pode ser considerada positiva, pois dá um toque de humanismo e um estímulo à reflexão ética muito salutares. Sobretudo no mundo atual, onde o individualismo narcísico e o egoísmo possessivo parecem ter se consagrado como valores universais.
Mas ampliar a carga de filosofia e introduzir sociologia já é discutível. Trata-se de disciplina muito específica no campo das ciências sociais, voltada, antes de tudo, para a discussão de modelos abstratos para o estudo das sociedades.
Ficará o aluno obrigado, precocemente, a debruçar-se sobre o pensamento de Weber, Durkheim e, decerto, o velho Karl Marx. Sabe-se lá como isso será ensinado pelos professores ou recebido pelos alunos.
E, se entra a sociologia, por que não a antropologia ou a ciência política? Qual é o critério de escolha da sociologia como representante das ciências sociais no ensino médio? De todo modo, a inclusão da sociologia ou de qualquer das outras chamadas ciências sociais é desnecessária nesta altura da formação escolar.

Fusão
Tudo se agrava com a diminuição da carga de história, que já incorporou, recentemente, a obrigatoriedade de disciplinas sobre histórias africana e indígena. A primeira em 2003, pela lei nº 10.639, e, a segunda, em 2008, pela lei nº 11.645.
Nesta última, a fórmula utilizada para denominar a disciplina é "história da cultura afro-brasileira e indígena". Nada contra a inclusão desses novos conteúdos que, sem dúvida, ajustam o ensino da história no Brasil às nossas raízes culturais múltiplas, embora nada disso seja realmente novo.
Muito pelo contrário, pois já Karl von Martius, em meados do século 19, dizia que a chave para compreender a história do Brasil residia no estudo da fusão das três raças, a branca, a indígena e a negra. Deixando de lado o linguajar "raciológico", hoje tão valorizado nas políticas afirmativas do governo, a idéia de Von Martius era boa.
Tão boa que ninguém a seguiu naquele tempo em que a escravidão brasileira estava no apogeu. Foi somente Gilberto Freyre quem viria a assumir esse projeto em seu "Casa-Grande e Senzala", de 1933. E ainda foi acusado de racista...
Seja como for, ensinar história não é o mesmo que ensinar somente história do Brasil ou de tudo aquilo que guarda relação direta com a nossa história.
Esse "brasil-centrismo" (me perdoem pelo neologismo cacófono) é, por razões óbvias, um equívoco que afetou muito o ensino da história.
Os estudos da Antigüidade e da Idade Média, por exemplo, saíram dos currículos do secundário em reformas anteriores, e seus conteúdos acabaram excluídos dos exames vestibulares. O que será cortado da história com esses novos ajustes?
O grave risco é o de se formular um currículo de história centrado, de um lado, numa história do Brasil ideologizada e, de outro, numa história geral cada vez mais presentista.
A julgar pelos cortes cronológicos anteriores, a próxima vítima deve ser a história moderna e, assim, o estudo da história geral corre o risco de começar pela Revolução Francesa!

Triunfo do clichê
Que história será essa, que, de reforma em reforma, vai arqueologizando o passado?
É o triunfo do clichê de que a história serve para compreender o presente, quando o melhor dela, História, é conhecer o próprio, as diferenças de uma mesma sociedade no tempo ou entre civilizações distintas.
E, agora, o ensino médio de São Paulo ainda vai amputar mais a história para abrigar a sociologia. Decisão temerária e repleta de conseqüências negativas para a formação dos alunos. Dos alunos do "ensino público", vale sublinhar.
Porque os colégios particulares não entrarão nessa onda de cortes, mantendo sua carga de 500 horas ou mais, enquanto as escolas públicas paulistas terão de contentar-se, segundo cálculos recentes, com cerca de 200 horas.
Moral da história: nos vestibulares futuros, os egressos das escolas públicas de São Paulo sairão em grande desvantagem nas provas de história, sobretudo os que optarem por carreiras humanísticas, onde a prova de história é decisiva.
Assim, terão mais dificuldade, como sempre, de ingressar em universidades públicas. O remédio das cotas, em si mesmo duvidoso, torna-se quase uma piada de mau gosto num contexto como esse.

RONALDO VAINFAS é professor titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

[Folha de São Paulo, 14/12/2008]

O Fantasma das Rebeliões

"O mais provável é que voltem à ordem do dia as revoltas e revoluções sociais. Elas não serão socialistas nem proletárias, mas adquirirão maior intensidade e violência nos territórios situados em "zonas de fratura [1]"
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José Luís Fiori

Grécia: A revolta de uma geração desapontada

Manfred Ertel e Daniel Steinvorth

A convulsão social violenta que seguiu-se ao assassinato de um adolescente de 15 anos colocou a Grécia à beira de uma crise política. As manifestações marcam uma explosão de ira por parte dos jovens do país, que contam com poucas perspectivas de obter um lugar para si em uma sociedade na qual todas as iniciativas estão sufocadas.

O clima no auditório lotado fazia lembrar os protestos dos movimentos estudantis de 1968. Centenas de jovens entravam no salão escuro, sentavam-se nos degraus das escadas ou subiam nas mesas. Eles gritavam "assassinos" e "porcos" - a aplaudiam estrondosamente os pedidos de vingança. A fumaça de cigarros e o cheiro de suor pesavam no ar.

Jorgos Barutas, 29, precisou esforçar-se para fazer-se ouvir. O engenheiro de computação, exibindo uma barba de cinco dias e óculos com aros de aço, estava à beira das fileiras de cadeiras inclinadas e gritava para a platéia com uma voz grave. "Temos que manter a pressão até que o governo renuncie". Aplausos. "Precisamos transformar os protestos em um movimento político". Aplausos. "Temos que formular objetivos políticos". Novamente, aplausos estrondosos. Barutas desceu do palanque, sentindo-se satisfeito, e os estudantes deixaram o salão.

Fora do campus da Universidade Politécnica de Atenas, tais declarações políticas altaneiras são rapidamente esquecidas. Incêndios e os restos calcinados de barricadas feitas às pressas bloqueiam os caminhos para os salões de palestras. Figuras vestidas de preto e usando máscaras de esqui fazem gestos ameaçadores e dão empurrões para impedir que pessoas de fora entrem.

Contêineres de lixo estão em chamas em frente à entrada da universidade, e nas ruas laterais, jovens montam barreiras entre carros queimados e quiosques, ou pilhas de pedras do tamanho exato para serem arremessadas.

É o quinto dia da intensa rebelião de jovens em Atenas. Os protestos tiveram início no distrito de Exarchia - um nicho tradicional de artistas, anarquistas e intelectuais de esquerda - e espalharam-se rapidamente pelo país inteiro. Eles também geraram protestos violentos nas grandes cidades de Tessalonica, Patras e Heraklion - e em 20 outras cidades gregas.

Depois que a polícia matou a tiros Alexandros Grigoropoulos, um adolescente de 15 anos, uma semana atrás, em um sábado, houve protestos violentos em ilhas gregas como Lesbos, onde a polícia usou gás lacrimogêneo contra os manifestantes. Só em Atenas centenas de lojas foram destruídas e saqueadas, escolas interromperam as aulas e as universidades cancelaram palestras. Faltando apenas alguns dias para o Natal, "a cidade ficou paralisada", diz o porta-voz do governo, Evangelos Antonaros.

No decorrer dos últimos sete dias, uma onda de protestos chegou a disseminar-se para grandes cidades européias. Simpatizantes ocuparam os consulados gregos em Berlim e Londres, anarquistas organizaram manifestações de solidariedade em Barcelona, Roma e Copenhague, e a sensação de indignação chegou até a Nova York.

A Politécnica de Atenas, no centro de Exarchia, é o foco dos protestos e um local repleto de simbolismo para os esquerdistas gregos. Foi lá que os estudantes entrincheiraram-se dentro dos prédios da universidade em 1973 para protestarem contra a junta militar. Quando os tanques derrubaram os portões em 17 de novembro e acabaram com o levante esquerdista, pelo menos 34 jovens morreram e 800 ficaram feridos.

Atualmente, o relativamente grande movimento anarquista Bloco Negro, na capital grega, identifica-se fortemente com a tradição daqueles jovens rebeldes dos anos setenta. Durante anos, eles vêm incendiando postos policiais, bancos e instituições estatais. "Sob uma perspectiva estatística, há ataques como este todos os dias", afirma um especialista em segurança.

Uma lacuna crescente de prosperidade entre jovens e velhos.
A morte do estudante proporcionou pela primeira vez um apoio generalizado aos anarquistas do Bloco Negro - e colocou o país à beira de uma crise política. "Um jovem morto por uma bala da polícia é a pior coisa que pode acontecer", reconhece Antonaros. Mas ele acrescenta: "Isto não tem nada a ver com convulsão social".

É verdade que as rebeliões, que continuaram até o fim de semana, e especialmente a simpatia óbvia pelos jovens manifestantes, são uma expressão do desapontamento generalizado do povo grego com o governo e o sistema político. A classe política do país vem perdendo credibilidade há anos devido ao enriquecimento ilícito, às propinas e à "corrupção generalizada", diz um diplomata da União Européia. No decorrer dos últimos meses, vários ministros tiveram que renunciar devido a alegações de corrupção, sendo que o mais recente foi o antecessor do porta-voz do governo, Antonaros, e o ministro da Marinha Mercante, ambos muito próximos ao primeiro-ministro conservador Costas Karamanlis.

Para tornar a situação ainda mais difícil, a Grécia enfrenta uma situação financeira precária. Embora o crescimento médio da economia tenha sido de 4,3% desde 2000, a Grécia possui um dos maiores índices de inflação da zona do euro, em torno de 4,5%. O índice de desemprego de 7,5% continua dentro das normas européias, mas a lacuna de prosperidade entre a geração mais velha - trabalhadores e funcionários públicos veteranos - e os jovens que acabam de sair da faculdade continua aumentando. Quase um quarto de todos os adultos com menos de 29 anos encontra-se desempregado.

A atual crise não atingiu apenas os perdedores tradicionais da modernização, tais como indivíduos de estratos com menos vantagens educacionais e imigrantes. Desta vez, jovens com educação superior de famílias de classe média de boa situação financeira também precisam trabalhar em empregos desqualificados para manterem-se à tona. Devido à falta de renda, muitos jovens gregos moram com os pais até depois dos 30 anos de idade. "O sistema é ajustado às necessidades dos que estão estabelecidos e dos indivíduos mais velhos", afirma o sociólogo Stratos Georgoulas, da Universidade Egéia em Lesbos. "E os jovens estão sofrendo devido a isso".

Esperanças e oportunidades frustradas
Os especialistas econômicos passaram a referir-se à geração ? 700 (geração US$ 935), e o líder estudantil Barutas é um exemplo típico disso: ele cursou engenharia elétrica durante cinco anos na Politécnica de Atenas, e formou-se com notas excelentes. Agora ele trabalha como professor de uma escola de segundo grau ganhando oito euros líquidos por hora, 12 horas por semana, o máximo permitido. Tais empregos são freqüentemente limitados por contratos de quatro ou cinco meses. "Como é que eu vou viver e constituir família ganhando isso?", questiona o engenheiro.

"Aproximadamente 21% da população têm diploma universitário, de forma que nem todo especialista em línguas e literatura pode tornar-se imediatamente professor", diz o governo. "A geração atual de jovens acalentou grandes sonhos", rebate o professor de arquitetura Stavros Stavrides. "E agora esses sonhos e oportunidades foram frustrados".

Stavrides juntou-se a vários dos seus colegas em apoio aos protestos. "Temos dezenas de milhares de jovens que estão se rebelando e o governo não sabe como responder a essa situação", diz Nikos Belavilas, professor de planejamento urbano. "O sistema político não conseguiu integrar os jovens", acrescenta o sociólogo Georgoulas. "E é por isso que as coisas estão explodindo".

A sensação geral de frustração e impotência entre os manifestantes também é compartilhada pelo polícia, que é mal treinada e precisa defender constantemente a sua reputação contra as alegações generalizadas de infiltração direitista e xenofobia. O professor Belavilas fala de uma "brutalidade dos Bálcãs" que a tropa policial de choque utilizou contra os jovens manifestantes. Nos últimos anos foi registrado um número cada vez maior de mortes, e o tiroteio fatal em Exarchia é apenas um dentre vários exemplos disso.

A violência que se seguiu faz com que vários gregos mais velhos recordem-se do período de guerra civil de 1946 a 1949. E o cenário lembra de fato uma guerra civil: os jovens agrupam-se nas ruas e nas praças, ou sob a proteção das manifestações de massa, e jogam pedras, garrafas e pedaços de madeira contra a polícia que avança. Pequenos grupos de hooligans saqueadores, incluindo crianças, marcham pelos movimentados distritos comerciais. Armados de martelos e canos de ferro, eles quebram vitrines e janelas de automóveis, e incendeiam veículos e barricadas. Quando mais escura a noite, mais violenta a rebelião.

"Somos todos responsáveis"
Chocada pela reação furiosa à morte do jovem a tiros, a polícia desta vez está agindo com certa moderação ou respondendo com gás lacrimogêneo. E quando as unidades especiais, usando capacetes e escudos, avançam contra os manifestantes, estes recuam rapidamente para ruas vicinais escuras, seguindo geralmente para o campus da Politécnica.

O clima no campus lembra o de um festival ao ar livre. Por trás das barricadas nas entradas do campus e das faixas com slogans, fogueiras enormes ardem luminosas e o roque pesado ressoa pelas noites amenas. Há abundância de cerveja, e depois as garrafas vazias chovem sobre os policias que aventuram-se a chegar muito perto da universidade. Lá, os manifestantes são praticamente inatingíveis. Após a experiência fatal com as forças armadas em 1973, a universidade não pode ser invadida pela polícia, e tornou-se um paraíso anarquista. E um número surpreendentemente elevado de gregos acha que isso é bom.

Petros Markaris está sentado na sua cadeira e encontra-se indignado - mas não apenas por causa da destruição. O escritor de 71 anos de idade, cujos romances descrevem as razões subjacentes pelas quais os jovens estão rebelando-se na Grécia, diz que pressentiu os protestos. "Nós somos responsáveis por este surto de violência porque nós próprios o cultivamos", afirma Markaris.

A seguir ele desabafa a sua raiva, um ressentimento profundo devido ao fato de o seu país ser o palco de uma série infindável de escândalos, e de os "grupos corruptos" na política, na igreja, nas associações e nos sindicatos contarem com liberdade para saquear os bens públicos a bel prazer. Ele afirma que nenhum indivíduo dos dois campos políticos dominantes - nem os conservadores de centro-direita nem os socialistas, ambos dominados por clãs familiares - permitirão que os jovens tomem os seus lugares na sociedade. A Grécia de hoje sufoca todas as iniciativas.

"Os turistas alemães adoram a Acrópoles e a nossa história", afirma o escritor. "Mas os dias nos quais a Grécia foi uma civilização avançada acabaram há muito tempo".

Tradução: UOL
[Der Spiegel, 16/12/2008]

Barack Obama e a face sombria da "guerra contra o terrorismo"

Rémy Ourdan, em Washington

Barack Obama deverá tomar decisões, ao chegar à Casa Branca, sobre a face sombria da "guerra contra o terrorismo" decretada por George Bush depois do 11 de Setembro: a detenção arbitrária, ilegal e secreta de prisioneiros e o uso da tortura.

Seus partidários estão conscientes de que Obama precisará de tempo - e que talvez seu mandato não baste - para tirar o país das guerras no Afeganistão e no Iraque e tentar reconciliar a América com alguns de seus inimigos. Preocupados com uma restauração da imagem dos EUA no mundo, eles esperam por outro lado que o presidente tome, pouco depois de sua posse em 20 de janeiro, decisões que dependem apenas do Executivo: o fechamento do campo de Guantánamo e das prisões secretas da CIA, a proibição do uso da tortura, o fim das transferências de prisioneiros para países onde eles são maltratados.

A organização americana de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW) publicou dois documentos de recomendações ao presidente eleito: "A agenda dos direitos humanos" e "Combater o terrorismo de maneira justa e eficaz". A novidade, para esses adversários de George Bush, é que eles não pregam mais no deserto.

Não somente os conselheiros de Obama compartilham suas opiniões, como não se passa um dia em Washington sem que personalidades que serviram ao governo republicano unam suas vozes aos apelos por mudanças radicais. Esta semana são generais e almirantes aposentados que submetem à equipe de Obama suas propostas para terminar com a tortura, "essa mancha que suja os Estados Unidos da América".

Espera-se um discurso presidencial forte e simbólico. No entanto, não se podem evitar obstáculos. Em nenhum momento Obama tomou uma posição clara sobre a detenção preventiva de supostos terroristas. Os defensores dos direitos humanos temem que uma nova lei venha substituir Guantánamo. "Existem diferentes planos de fechamento de Guantánamo. Se existe um consenso sobre o fracasso do sistema dos tribunais militares, há um debate sobre a oportunidade de conservar um programa de detenção preventiva", constata Joanne Mariner, a responsável pelo departamento de terrorismo e contraterrorismo da HRW.

A detenção preventiva concebida pelo governo Bush demonstrou amplamente sua injustiça e sua ineficácia. Guantánamo recebeu principalmente inocentes ou simples combatentes. Sete anos após sua criação, de 250 homens ainda detidos somente três foram julgados culpados e 17 outros são acusados. Mas diante da idéia de que é preciso "julgar ou libertar" os prisioneiros os responsáveis retrucam que os detidos contra os quais não há elementos suficientes para um processo poderiam se tornar inimigos dos EUA depois de libertos. "É o problema da detenção preventiva", aponta Mariner. "Muitos desses prisioneiros não cometeram crime algum. E há multidões de pessoas no Oriente Médio que fazem declarações incrivelmente agressivas contra os EUA. Devemos prender todas?", ela pergunta.

Sobre a tortura, o candidato Obama foi claro: "A tortura permite fazer inimigos, e não vencê-los". Os militares baniram a tortura das regras de interrogatório em seu manual de contra-insurreição de 2006. Mas George Bush vetou a aplicação desses critérios na CIA.

"Os generais sempre foram contrários a essas políticas do governo Bush", lembra Jennifer Daskal, da HRW. "O general Petraeus, então comandante das forças americanas no Iraque, disse claramente que a tortura não é somente imoral como contraproducente."

Mas se Barack Obama proibir o uso da tortura pela CIA também deverá tomar uma posição sobre a "deslocalização" da tortura. O que farão os serviços de informação americanos quando seus aliados sauditas, egípcios ou paquistaneses torturarem prisioneiros e lhes fornecerem informações? E será preciso resolver a questão das "prisões secretas". "A base americana de Bagram, ao norte de Cabul, é assustadora. Ignoram-se as identidades dos detidos e ninguém fala", constata o pesquisador de uma ONG americana. "E o que dizer das prisões subterrâneas em Cabul, co-administradas com os serviços de informação afegãos? E os rumores persistentes sobre prisões secretas na Jordânia ou no Marrocos".

A "guerra contra o terrorismo" tem seus escândalos públicos e internacionais, como Guantánamo. Ela também tem seus buracos negros. É essa face ainda mais sombria da América que Barack Obama e sua equipe terão de enfrentar.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[Le Monde, 10/12/2008]

AI-5: Utopias cassadas

Edição do AI-5, em dezembro de 1968, sepultou sonhos de redemocratização e fez Brasil mergulhar num dos períodos mais dramáticos de sua história

Leia o texto de Lucilia de Almeida Neves Delgado publicado pela Revista de História da Biblioteca Nacional.

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O que Lula diz, o que Lula faz

SÃO PAULO - Do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tomado de aparente ira santa, em cerimônia-comício no Rio de Janeiro: "O que aconteceu com o famoso mercado onipotente? Quando o mercado tem uma diarréia, quem eles chamaram para salvá-lo? O Estado que eles negaram durante 20 anos".
De texto assinado pelo mesmíssimo Lula, após a cúpula do G20 no mês passado em Washington: "Nosso trabalho [dos líderes do grupo] será guiado por uma crença compartilhada de que os princípios de mercado, de livre comércio e regimes de investimento abertos, e mercados financeiros efetivamente regulados, estimulam o dinamismo, a inovação e o empreendedorismo que são essenciais para o crescimento econômico, o emprego e a redução da pobreza".
Não há, pois, o menor parentesco entre o que diz o presidente em público e o que assina no escurinho do cinema, bem ao lado do "eles", o sujeito oculto de sua primeira frase -no caso, os líderes mundiais que transformaram em religião a crença no livre mercado.
O comício do Rio é, pois, retórica vazia, engana-trouxa.
No comício do Rio, Lula deu a entender que está havendo uma recuperação do Estado, "negado durante 20 anos". Engano. O que está havendo é o de sempre: a privatização do dinheiro público e a estatização do risco. Nada que não tenha acontecido desde que os mercados se tornaram "onipotentes".
O Estado dá dinheiro, mas não tem o comando do que fazem com ele. Tanto que o próprio Lula se sentiu compelido a reclamar, também publicamente, de que os bancos não estavam soltando o dinheiro liberado pelo governo. Foi desmentido no dia seguinte por Fabio Barbosa, presidente da Febraban, e enfiou a viola no saco.
Enfim, nada de novo na retórica de Lula; apenas o retorno às bravatas do passado. Inócuas.

Clóvis Rossi

[Folha de São Paulo, 06/12/2008]

O criacionismo pode ser ensinado nas escolas em aulas de ciências?

NÃO

Educação e discurso científico

EM MINHA visão, a resposta à questão aqui proposta deve ser "não" - mas com importantes qualificações.
Antes de mais nada, é preciso dizer que este é um debate interessante, no qual devemos exprimir nossas posições com clareza, evitando a todo custo usar nossos argumentos apenas em favor do proselitismo. Mais do que apenas tomar partido, é preciso esclarecer o que está em jogo. O espaço é curto, mas vejamos alguns pontos.
Em artigo recentemente publicado no periódico internacional "Cultural Studies of Science Education", em colaboração com Eduardo Mortimer (UFMG), defendi que, de um lado, professores de ciências sempre devem ter em conta a diversidade das visões de mundo dos estudantes em suas aulas. Isso significa que deve haver, sim, espaço para a discussão de diferentes perspectivas sobre fenômenos que a ciência explica, incluindo o criacionismo, desde que representado na sala, e não só na perspectiva cristã, mas em todas as perspectivas presentes entre os estudantes.
Mas, de outro lado, os professores nunca devem perder de vista que o objetivo do ensino de ciências é, como deveria ser óbvio, ensinar o conhecimento científico. Assim, é necessário, sim, que os professores estimulem os estudantes para que compreendam as idéias científicas - e tal como elas se apresentam no conhecimento científico atualmente aceito.
Seria certamente um rompimento do contrato didático entre professores, alunos, pais e administradores se, nas aulas de ciências, não se tivesse como objetivo ensinar ciências, mas idéias oriundas de diferentes tradições culturais. Nunca é demais repetir: professores de ciências estão ali para ensinar ciências! Por isso, minha resposta à questão inicial é "não". Mas notem a qualificação importante: isso não significa não dar espaço a vozes discordantes do conhecimento científico.
Antes pelo contrário, o professor de ciências deve explorar essas vozes discordantes para discutir as variadas maneiras como os seres humanos compreendem e explicam o mundo e, mais, a importância de distinguir entre diversos discursos humanos, fundados em pressupostos distintos sobre o que constitui o mundo (pressupostos ontológicos) e sobre o que constitui conhecimento válido (pressupostos epistemológicos).
O discurso científico é, em termos epistemológicos, de caráter empírico, no sentido de que as afirmações que a ciência faz sobre o mundo devem ser sujeitas ao crivo da experiência, devem ser testadas contra o mundo empírico. Esse caráter empírico implica, por sua vez, que, em sua ontologia, o discurso científico assume um naturalismo metodológico. Na medida em que os sistemas naturais são os sistemas sobre os quais podemos coletar dados empíricos, somente estes figuram no discurso das ciências.
É importante diferenciar essa posição de um naturalismo metafísico: não se trata de dizer que entidades sobrenaturais (deuses, espíritos etc.) não existem (essa é uma crença como qualquer outra e, sinceramente, não é produtivo debater crenças tão fundamentais). Trata-se, antes, de dizer que essas entidades não figuram no discurso das ciências, porque afirmações que as empregam não podem ser testadas empiricamente. Esse discurso naturalista é legítimo. Isto também parece óbvio, mas é preciso destacar que, quando se discute pluralismo e respeito à diversidade, por vezes se perde de vista que também o discurso científico deve ser respeitado, deve ser reconhecido como legítimo.
Ademais, reunimos nossas crianças e adolescentes em salas de aula de ciências para aprender esse discurso científico sobre o mundo. Seria um desrespeito com os estudantes tanto negar-lhes a voz, quando discordarem desse discurso, quanto ter como objetivo ensinar-lhes idéias que não são científicas, como as criacionistas.
Essa posição me parece um bom caminho intermediário entre privar os sujeitos em sala de aula de exprimir suas concepções sobre o mundo e simplesmente querer ensinar o que não é ciência como se ciência fosse.

CHARBEL NIÑO EL-HANI, bacharel em ciências biológicas, mestre e doutor em educação, é professor do Instituto de Biologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). É bolsista de produtividade em pesquisa 1-D do CNPq.


SIM


A teoria da evolução e os contos de fadas


A VISÃO das origens que emana da religião é, obviamente, criacionista. Opositores do criacionismo têm, então, feito uso desse fato para descaracterizá-lo como científico e, assim, não permitir sua entrada nas aulas de ciências.
Marcelo Leite, por exemplo, colunista desta Folha, refere-se ao criacionismo como a "doutrina segundo a qual Deus criou o mundo", o que reflete o equívoco em que se baseiam seus conhecimentos sobre o tema.
Do ponto de vista científico, o criacionismo resulta das seguintes perguntas: "O
que nos dizem os fatos da natureza e os resultados das pesquisas realizadas pelos cientistas (não importando suas ideologias) acerca das origens do universo e da vida? Falam eles de uma origem naturalista ou sobrenaturalista?".
São as respostas daí advindas que devem nortear nossos passos, obtidas sem recurso a conceitos religiosos.
Esse tipo de conduta tem produzido os resultados que constituem o corpo do que denominamos criacionismo e que nos leva a entender a origem sobrenaturalista do universo e da vida.
A julgar por essas considerações, pode-se concluir que o criacionismo não só pode como deve ser ensinado nas aulas de ciências de todos os níveis do nosso sistema educacional -e não só nessas aulas, mas onde quer que incida o tema "origens". Não fazê-lo é sonegar aos alunos importantes conhecimentos científicos que nos dão uma clara visão da estrutura do universo e, de modo muito particular, realçam a importância de cada uma de suas partes nesse contexto.
Infelizmente, hoje, os setores acadêmicos encontram-se dominados pelo
s evolucionistas, que não permitem que os criacionistas adentrem as salas de aula e também os impedem de publicar os seus trabalhos em revistas científicas por eles controladas.
Em seu artigo "Criacionismo no Mackenzie" (Mais!, 30/11), Marcelo Leite cita o que ele considera provas indiscutíveis do evolucionismo. Seria ótimo se tivéssemos mais espaço neste trabalho para mostrar que tais provas não são sustentadas nem mesmo por cientistas evolucionistas e, portanto, não passam de mais um equívoco de sua parte. Na página http://abpc.impacto.org/folha.htm, vamos expandir este artigo com os complementos que aqui não couberam.
Na verdade, entre outros, dois fatos impulsionaram a teoria da evolução: um deles foi a questão ideológica, porque a visão das origens que emana do ateísmo é a evolucionista, e
muitos evolucionistas são ateus ou simpatizantes do ateísmo. Isso fica claro nos escritos transparentes de Dawkins, mas também nos menos transparentes de outros autores em que se nota uma aversão à religião e conseqüente adesão ao evolucionismo.
O outro fato é o desconhecimento das bases da teoria das probabilidades. Tivessem algum conhecimento dessa parte da matemática, saberiam que não basta imaginar acontecimen
tos para que eles se tornem reais.
Para citar um único exemplo, as aves constroem seus ninhos e chocam seus ovos. Não os cucos, porém. Suas fêmeas não são acometidas daquele estado febril que lhes permitiria chocar seus ovos. Ela então leva um de seus ovos no bico até o ninho de uma chiadeira e, para não dar na vista, o substitui por um dos ovos que lá encontra, jogando o da chiadeira fora.
Esta, que de nada desconfia, se põe a chocar os ovos. Quando o pequeno cuco nasce, sendo um pássaro de porte maior, irá precisar de todo o alimento que seus pais postiços puderem obter. O filhote, então, logo em seus primeiros momentos de vida, inicia um movimento circular com o qual lança para fora ovos ou filhotes ali presentes, ficando só.
Agora, crer que essa estratégia de sobrevivência, tanto do cuco adulto quanto do cuco recém-nascido, pode ser produto das casualidades de um contexto naturalista é uma indicação de pouco conhecimento de matemática, em particular da teoria das probabilidades, de um mundo qu
e é mesmo o dos contos de fadas, em que sapos viram príncipes e a teoria da evolução ganha contornos de realidade.

CHRISTIANO P. DA SILVA NETO , professor universitário, mestre em ciências pela Universidade de Londres (Inglaterra), é presidente da ABPC (Associação Brasileira de Pesquisa da Criação).

[Folha de São Paulo, 06/12/2008]

Sem censura

"Nós Vimos a Espanha Morrer" estuda a relação entre jornalismo e construção da história durante a Guerra Civil

Jeremy Treglown

Entre os estrangeiros idealistas, os aventureiros e os adeptos do turismo de tragédias que se despejaram na Espanha durante a Guerra Civil (1936-39), cerca de mil tinham credenciais como correspondentes de guerra.
Em "We Saw Spain Die" [Nós Vimos a Espanha Morrer, ed. Constable & Robinson, 416 págs., 20, R$ 77], Paul Preston, historiador do período, explora as muitas ambigüidades que a profissão deles suscitava.
Em que ponto o jornalismo passional se torna propaganda? De que maneira a atitude de reportagem é influenciada pela posição política dos proprietários de jornais, anunciantes e lobistas? E qual é a diferença entre um correspondente internacional e um espião?
Existem circunstâncias em que suprimir a verdade é melhor do que relatá-la? E, diante do partidarismo escancarado da guerra, a que exatamente servia a verdade, de qualquer maneira?
Jay Allen, um amigo idealista e gregário do escritor Ernest Hemingway que assumiu o posto do colega como correspondente europeu do "Chicago Daily Tribune" na metade dos anos 1920, teve de enfrentar a maioria dessas questões.
Allen reportou uma das primeiras atrocidades cometidas pelos partidários de Franco em seu golpe contra o governo republicano eleito, quando centenas de simpatizantes do socialismo foram mortos a tiros de metralhadora na arena de touradas de Badajoz.
O artigo irado e preciso de Allen encontrou ampla distribuição e exerceu grande impacto sobre a opinião de esquerda em todo o mundo. Allen era um jornalista bem relacionado em quase todos os níveis da sociedade espanhola. Mas, depois de publicar o artigo de Allen, o "Chicago Daily Tribune" o demitiu.

Entre Franco e Stálin
A postura favorável aos republicanos assumida por ele era desconfortável em uma época em que as partes do Ocidente que não estavam sob o domínio de ditadores de direita faziam o possível para apaziguá-los.
Pouco importa que acreditassem ou não no que Allen escreveu, as pessoas que estavam no poder basicamente preferiam a idéia de Franco àquilo que viam como a única alternativa: Stálin. Porque suas palavras não tiveram efeito, Allen depois optou pela ação, trabalhando com a Resistência francesa a fim de ajudar soldados britânicos que não haviam conseguido embarcar na retirada de Dunquerque [França]. Parte da história que Preston narra, portanto, envolve as limitações do jornalismo, não apenas seus sucessos.
Contá-la requer a presença de um grande elenco, que inclui algumas mulheres bravas e glamourosas como [a escritora norte-americana] Martha Gellhorn, bem como alguns homens excepcionalmente desagradáveis, entre os quais o abjeto William Carney, cujas reportagens em larga medida fictícias lhe eram transmitidas pelo serviço de imprensa de Franco e publicadas pelo "New York Times" em nome do equilíbrio.
Preston não tem a competência narrativa para iluminar algumas passagens biográficas dessas figuras, como o livro de Caroline Moorehead sobre Gellhorn ["Gellhorn"] ou o de Nicholas Rankin sobre Steer ["Telegram from Guernica"]. Mas seus conhecimentos factuais são imensos, e ele defende que o que importa são os fatos.

No longo prazo
E isso explica a importância de estudiosos estrangeiros que trabalhavam sem censura, entre os quais os historiadores que precederam Preston - Hugh Thomas, Raymond Carr e o extraordinário autodidata Herbert Southworth, a quem o livro é dedicado e cuja carreira ele vividamente relata. O jornalismo pode fornecer matéria-prima à história, mas no longo prazo, diz Preston, o que importa é a história.

JEREMY TREGLOWN é professor de inglês na Universidade de Warwick (Reino Unido). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times".

Tradução de Paulo Migliacci.

[Folha de São Paulo, 07/12/2008]

Revivendo as lembranças de um campo de extermínio

O ensino do Holocausto é normal na Alemanha. Mas em algumas partes da Europa, onde ocorreu grande parte das mortes, o passado é enterrado sob camadas de política e história. Um grupo moldávio está instalando monumentos a respeito do pouco lembrado massacre dos judeus romenos

Michael Scott Moore, em Berlim


Quando tinha 11 anos, Alexander Bantush assistiu soldados fascistas espancarem com porretes um violinista judeu na aldeia de Brichevo. Eles o forçaram a tocar seu violino e a dançar descalço sobre vidro quebrado. A imagem é tão icônica do Holocausto que poderia ser de um filme de guerra, ou uma pintura de Chagall, uma imagem da shtetl (povoados predominantemente judaicos do Leste Europeu) onde os detalhes são preenchidos sozinhos. Mas os soldados não eram nazistas. Bantush é moldávio, nascido na Romênia, e os soldados romenos agiam sob ordens de seu próprio ditador, Ion Antonescu, em vez de Hitler.

Neste ano, uma pequena organização em Moldova está revivendo a memória do Holocausto em um canto do Leste Europeu onde ela corre o risco de ser esquecida. A Nemurire, uma organização sem fins lucrativos dirigida por um historiador local chamado Iurie Zargocha, instalou vários monumentos de pedra por todo o interior norte de Moldova para marcar o caminho das marchas da morte e os locais das valas comuns de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

"Você ouve sobre o Holocausto em uma escala de números de massa, seis milhões", disse Daria Fane, uma alta funcionária da embaixada americana que tem ajudado a Nemurire. "Mas aqui é de aldeia em aldeia." Moradores locais como Bantush, que lembram de assistir as atrocidades quando eram criança, são convidados a falar em cerimônias. "Eles viveram com essas lembranças por anos, e ninguém se importava", disse Fane. "Era tabu na era soviética."

No domingo, a Nemurire inaugurou seu sexto monumento moldávio em Frasin, não longe de Brichevo. Ele marcou uma marcha da morte que parou aqui certo dia em 1941. Soldados romenos decidiram matar 300 dos judeus que vinham marchando da cidade de Edinet. Eles forçaram os prisioneiros a se despirem e começaram a arrancar dentes de ouro de suas bocas com alicates enquanto ainda estavam vivos, disse Alexander Bantush, que deu o testemunho. Bantush não é judeu, mas para alguns moldávios é uma fonte de orgulho se distanciar da política oficial romena do tempo da guerra.

"Os judeus que viviam em Brichevo eram pessoas boas", ele disse no domingo. "Eu me recordo de pessoas dando furtivamente leite para os judeus que passavam marchando pela aldeia. (...) As pessoas arriscavam suas vidas e davam o último leite que tinham." Ele acrescentou: "O povo de Frasin respeitará este monumento, o protegerá e ensinará aos nossos filhos o que o 'Holocausto' significa. Os judeus eram nossos amigos e merecem que esta história seja conhecida".

Camadas de história
A Romênia e o Estado agora independente de Moldova sofreram tanta história ruim desde 1945 que o Holocausto raramente é discutido. Mas a Romênia foi aliada da Alemanha nazista durante a guerra. Quando os nazistas passaram por aqui para invadir a Rússia em 1941, a Romênia aproveitou a oportunidade para transferir seus judeus para uma região do outro lado do Rio Dniester, que agora separa a parte de Moldova que fala romeno de sua parte eslava, conhecida com Transnistria. Essa política de limpeza étnica é um dos capítulos menos lembrados do Holocausto.

"Assim que tiveram um gosto da licença que predominava (entre os alemães) nos primeiros dias da guerra", escreve Avigdor Shachan, uma testemunha e historiador do Holocausto romeno, em seu livro "Burning Ice", "os soldados romenos promoveram operações por iniciativa própria, realizando assassinato e tortura em todo assentamento judeu pelo qual passavam". Shachan cita um discurso ao governo romeno feito pelo ditador do país, Ion Antonescu, defendendo a "expulsão dos judeus da Bessarábia e Bukovina (atualmente Moldova, aproximadamente) para o outro lado da fronteira. (...) Não há nada para eles aqui e não me importo se a história nos fizer parecer como bárbaros".

O resultado dessa política foi uma série de marchas da morte atrás da linha de frente dos soldados alemães e romenos. O número de mortos e deportados é impossível de determinar, mas um relatório de 2004 feito pelo governo romeno estima entre 280 mil e 380 mil.

O Holocausto era tabu na Romênia do pós-guerra porque os judeus não eram lembrados na história oficial soviética como as principais vítimas de Hitler: eram os comunistas. Nos livros de história soviéticos, foram os comunistas por todo o Leste Europeu que ajudaram a Rússia a derrotar os nazistas. Toda uma geração de romenos foi criada acreditando que eles e seus pais foram heróis por participarem na grande luta da Rússia contra Hitler.

"Esses países pequenos não sentem qualquer responsabilidade", disse Judit Miklos, uma romena que vive em Berlim, se referindo ao Leste Europeu. "Eles estavam no lado da vítima (da história). (...) Os países pequenos sempre têm esse complexo e o usam como desculpa -que sempre fizeram parte do jogo das potências maiores. Os argumentos tendem nesta direção na Romênia."

Para a Romênia, o relatório de 2004 do governo marcou uma tentativa de rejeição à negação consistente. Após as declarações de meados de 2002 feitas pelo então presidente Ion Iliescu de que não ocorreu Holocausto na Romênia -e os protestos resultantes- uma comissão foi nomeada para analisar o tratamento dado pelo país aos judeus na Segunda Guerra Mundial. O resultado foi o relatório de 2004 e, em 9 de outubro daquele ano, o país celebrou seu primeiro Dia do Holocausto.

Em Moldova, o processo foi diferente. Entre as guerras mundiais ela se chamava "República Moldávia", mas a Romênia sempre reivindicou o território. Alguns soldados romenos que se juntaram à invasão nazista à Rússia ficaram para trás em Moldova como força de ocupação. Posteriormente o exército soviético invadiu, a caminho da Alemanha, e até 1991 a região foi chamada de República Socialista Soviética da Moldávia.

"Todo este país tem complexo de vítima", disse Amy Dunayevich, uma voluntária do American Peace Corps que ajudou a Nemurire a inaugurar cinco monumentos neste ano. "Eles foram vítimas da União Soviética, tanto que há uma piada aqui que os melhores tempos de Moldova foram quando a Romênia partiu e antes da chegada da Rússia", perto do final da Segunda Guerra Mundial. "Isso durou cerca de um mês."

Dunayevich disse que os moldávios tinham um relacionamento sem problemas com os judeus locais. Era "separado, mas pacífico", ela disse. "Assim, quando os moldávios falam sobre os judeus, você não escuta o ódio." Todavia, o Holocausto romeno "não é algo que eles publicam. Não é algo de que falam a respeito nas escolas."

Iurie Zagorcha e sua esposa criaram a Nemurire em 2002. Zagorcha, que não fala inglês, é moldávio, não judeu. Ele lecionava história durante a era soviética. "Seus avós escondiam judeus durante a guerra e acho que ele sente que é sua responsabilidade falar em nome das vítimas que não podem falar por conta própria", disse Dunayevich.

Os monumentos se concentram em "casos de assassinato em massa" no distrito moldávio de Edinet, no norte, onde fica a cidade de Edinet (a pronúncia é Iedinitz). Antes com 80% de judeus, a cidade foi em grande parte um gueto durante a Segunda Guerra Mundial. Agora há poucos judeus em Moldova, e quase ninguém inclinado a lembrar do Holocausto. De fato, um dia antes da cerimônia da Nemurire, em 29 de novembro, um pequeno grupo de romenos de direita promoveu uma marcha anual em uma floresta ao norte de Bucareste, carregando tochas, para celebrar o líder da ala paramilitar fascista da Romênia, a notória Guarda de Ferro.

"Nós falamos muito sobre tolerância, mas podemos não entender totalmente o que significa", disse Zagorcha na cerimônia da Nemurire no domingo, diante de cerca de 70 pessoas. "As crianças que estão aqui hoje (...) (agora) podem entender o que significa ser de uma religião ou nacionalidade diferente, mas ainda assim respeitar uns aos outros. Essas crianças assegurarão que esse monumento não seja atacado e que permaneça como um lembrete da intolerância que leva a uma tragédia horrível, e essas crianças são nossa esperança de que esse tipo de tragédia nunca acontecerá de novo."

Alexander Bantush disse que no dia do qual se lembra, em 1941, cerca de 300 judeus foram ordenados a permanecerem nus ao lado de uma vala. Após os soldados tomarem suas jóias e arrancarem seus dentes de ouro, ele disse, "eles começaram a empurrar as pessoas, ainda vivas, na vala. (...) As pessoas tentavam subir. Percebendo que seriam enterradas vivas, elas começaram a gritar, 'Nos matem! Nos matem!' (...) O chão respirava, subia e descia -eu nunca vi nada igual na minha vida e espero que ninguém jamais veja o que vi naquele dia".

A imagem do solo em movimento, respirando, também está presente em "Burning Ice", que é a história definitiva do Holocausto romeno. Enterrar as pessoas vivas parece ter sido um dos métodos usados em várias valas comuns, às vezes para economizar munição. A imagem também aparece em mais de um dos relatos de testemunhas reunidos pela Nemurire. "O chão se movia por todo o norte de Moldova em 1941", como colocou Dunayevich.

Tradução: George El Khouri Andolfato
[Der Spiegel, 04/12/2008]

'A mulher mais perigosa do mundo'

Aafia Siddiqui já foi considerada uma cientista brilhante. Então o governo americano a declarou a nova face da Al Qaeda -uma mulher paquistanesa classificada entre os maiores suspeitos de terrorismo pelos EUA

Juliane von Mittelstaedt

Em 17 de julho de 2008, homens que saiam das orações noturnas na Mesquita de Bazazi, em Ghazni, uma capital provincial ao sul de Cabul, pararam quando viram uma mulher do lado de fora do prédio. Eles formaram um círculo em torno da estranha, que estava vestindo uma burca azul. Ela estava encolhida no chão, com duas pequenas bolsas ao seu lado, segurando a mão de um menino de cerca de 12 anos. Um dos homens, temendo que esta mulher peculiar estivesse carregando uma bomba sob sua burca, chamou a polícia.

Pouco tempo depois, a mais de 11 mil quilômetros de distância, um telefone tocou na sede do Birô Federal de Inteligência (FBI), em Washington. Alguém riscou o nome de Aafia Siddiqui em uma lista de suspeitos e escreveu a palavra "presa".

Após duas semanas, Aafia Siddiqui foi enviada da Base Bagram da Força Aérea dos Estados Unidos, no Afeganistão, para Nova York. Ela agora estava vestindo um agasalho de moletom, tinha dois ferimentos de bala no abdome e pesava cerca de 40 quilos. Siddiqui tem 1,63 metro de altura.

Em 11 de agosto, Siddiqui apareceu diante de um tribunal federal americano em Manhattan. Ela estava sentada em uma cadeira de rodas, com um lenço sobre sua cabeça. Em outubro, ela foi levada para o Centro Psiquiátrico Carswell em Forth Worth, Texas, para avaliação psicológica.

Siddiqui é uma cidadã paquistanesa e mãe de três filhos. Nascida em 2 de março de 1972, ela foi a mulher mais procurada no mundo por quatro anos. O FBI a considerava tão perigosa que o ex-secretário de Justiça, John Ashcroft, a colocou -a única mulher- em sua lista dos "Sete Mais Perigosos". A imprensa americana apelidou Siddiqui de "Mata Hari" da organização terrorista Al Qaeda e seu "gênio feminino". Ela supostamente teria levantado dinheiro para a Al Qaeda por meio da coleta de doações e contrabando de diamantes.

"Ela é a prisão mais importante em cinco anos", disse um ex-caçador de terroristas da CIA, John Kiriakou, quando ela foi detida. O estranho no caso de Siddiqui é que ela no momento não é acusada de ser colaboradora ou cúmplice em ataques terroristas, mas apenas de tentativa de homicídio de soldados americanos e agentes do FBI -que ela supostamente atacou com uma arma no Afeganistão. Se condenada, ela poderá passar 20 anos na prisão.

As acusações contra Siddiqui são espetaculares porque ela é uma mulher. A vida ocidental não é estranha para ela: ela vem de uma família de classe média alta paquistanesa e passou mais de 10 anos estudando em universidades de elite nos Estados Unidos. Ela estudou biologia com uma bolsa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e obteve um Ph.D. em neurociência pela Universidade Brandeis, onde foi considerada uma cientista notável.

Há cinco anos, Siddiqui desapareceu de sua casa em Karachi, juntamente com seus três filhos, Ahmed, 7 anos, Mariam, 5 anos, e Suleman, 6 meses. As duas crianças mais velhas são cidadãs americanas. Siddiqui alega que os americanos a abduziram e a trancaram em uma prisão secreta, e que ela foi torturada lá. Seus filhos, ela disse, foram levados e dois ainda continuam desaparecidos.

A CIA nega que seus agentes tenham algo a ver com o desaparecimento de Siddiqui. Michael Scheuer, um membro da unidade que perseguiu o líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden, de 1996 a 1999, diz curto e grosso: "Nós nunca prendemos ou aprisionamos uma mulher. Ela é uma mentirosa". Mas se for verdade que uma mulher foi torturada e despejada em uma masmorra secreta, seria a primeira vez no mundo pós-11 de Setembro -e mais outro exemplo da decadência dos valores americanos.

A prisioneira secreta
Em 1º de março de 2003, Khalid Sheikh Mohammed, o principal planejador dos ataques do 11 de Setembro, foi preso na cidade paquistanesa de Rawalpindi -a maior captura até o momento na batalha contra a Al Qaeda. Ele foi interrogado pela CIA em uma localização não divulgada, onde revelou aspectos internos do mundo do terrorismo. Uma série de prisões teve início pouco tempo depois, e acredita-se que Mohammed também tenha mencionado o nome de Siddiqui. Para a CIA, qualquer nome mencionado por Mohammed era automaticamente um terrorista importante da Al Qaeda.

Naquele mesmo 1º de março, Siddiqui enviou um e-mail de Karachi para seu professor, Robert Sekuler, na Universidade Brandeis, nos arredores de Boston. Ela estava à procura de emprego. "Eu preferiria trabalhar nos Estados Unidos", ela escreveu, notando que não havia emprego em Karachi para uma mulher com sua formação. Poucos dias depois, Siddiqui desapareceu. No amanhecer do dia de seu desaparecimento, ela deixou a casa de seus pais, juntamente com seus três filhos e não muita bagagem. Ela tomou um táxi para o aeroporto para pegar um vôo matinal para Islamabad, onde planejava visitar seu tio.

Siddiqui diz que foi seqüestrada naquele dia, a caminho do aeroporto. Ela diz que seus seqüestradores levaram Ahmed, Mariam e o bebê. A última coisa de que se lembra, ela diz, foi de ter recebido uma injeção no braço. Ela diz que quando recuperou a consciência, ela estava em uma cela de prisão, que ela acredita que ficava em uma base militar no Afeganistão, porque ouvia aeronaves decolando e pousando. Ela diz que foi mantida em confinamento solitário por mais de cinco anos, e que eram sempre os mesmos americanos que a interrogavam, sem máscaras ou uniformes. Por dias, ela disse, eles tocaram gravações dos gritos apavorados de seus filhos, e alega que foi forçada a escrever centenas de páginas sobre a construção de bombas sujas e ataques usando vírus.

O bebê, Suleman, foi levado imediatamente, ela diz. Eles lhe mostraram uma foto de Ahmed, o menino de sete anos, deitado em uma poça de sangue. O único de seus filhos que eles ocasionalmente lhe mostravam, ela diz, era Mariam -como uma vaga silhueta atrás de um painel de vidro fosco.

Seria essa história verdadeira?
Vários órgãos de imprensa paquistaneses divulgaram sua prisão. Um ano após seu desaparecimento, o "Dawn", um jornal normalmente considerado como tendo boas fontes, citou um porta-voz do Ministério do Interior paquistanês como tendo dito que Siddiqui tinha sido presa em Karachi e posteriormente entregue aos americanos. Em 21 de abril de 2003, a rede de televisão americana "NBC" exibiu uma reportagem sobre a prisão de Siddiqui no noticiário noturno.

Fontes da inteligência paquistanesa informam que Siddiqui esteve em uma prisão paquistanesa até o final de 2003 e que seu filho Suleman adoeceu e morreu durante aquele período. É de conhecimento que os suspeitos de terrorismo freqüentemente passam um período no país antes de serem entregues aos americanos. Segundo a Comissão de Direitos Humanos Asiática, há 52 prisões secretas no país, nas quais milhares de paquistaneses desapareceram desde o início da guerra contra o terrorismo.

Vários prisioneiros mantidos na Base Aérea de Bagram, o endereço do mais importante campo de prisioneiros americano no Afeganistão, disseram que ouviam uma mulher gritando. Alguns alegam que duas mulheres estiveram lá. A mulher foi apelidada de "o fantasma de Bagram".

Elaine Whitfield Sharp, uma advogada que representa a família desde 2003, está convencida de que Siddiqui foi classificada como prisioneira de alto nível e que passou cinco anos no chamado "black site" de Bagram -em um desses notórios buracos negros no sistema legal.

Uma estudante excelente
Mas quem é Aafia Siddiqui? Sua irmã, Fauzia Siddiqui, pega vários álbuns de fotos que ela espera que responderão esta pergunta. Os álbuns estão repletos de imagens de festas no jardim, reuniões de família e aniversários de crianças. Aafia, a irmã cinco anos mais nova de Fauzia, aparece segurando vários animais de estimação, incluindo um hamster, um gato, uma cabra e uma ovelha.

Fauzia Siddiqui, vestindo um lenço envolto em sua cabeça de forma solta, recebe os convidados no terraço de sua casa. O cozinheiro traz a comida; uma fonte borbulha ao fundo. Cercado por um muro alto, o terraço é um oásis no meio de Karachi, uma cidade de 12 milhões de habitantes.

Os Siddiquis são uma família paquistanesa modelo, moderna e devota ao mesmo tempo. O pai foi um cirurgião, a mãe uma dona de casa, e a família viveu na cidade britânica de Manchester e na Zâmbia. Todos seus três filhos estudaram no exterior. Mohammed, um arquiteto, vive em Houston, e Fauzia, uma neurologista, trabalhou em um dos melhores hospitais de Boston e morou na mesma casa que sua irmã por vários anos.

Ela voltou para Karachi há algum tempo e agora trabalha na Universidade Aga Khan da cidade. Ela diz que gostaria de criar um instituto para treinar neurologistas. Ajudar os pobres, diz Fauzia, é uma tradição em sua família. Sua irmã Aafia, ela diz, também acreditava em ajudar os pobres e sempre estava pronta para ajudar os outros. "Minha irmã é inocente. Ela nunca faria mal a alguém. Algo não está certo", ela diz. "Deve ter sido um engano."

Ela pega de novo seus álbuns de fotos, os segurando como uma vítima de naufrágio se agarrando ao salva-vidas. Aafia ao piano. Aafia em um dormitório estudantil, acompanhada de quatro estudantes chinesas. Uma jovem que gosta de posar para a câmera e adora vestidos de seda coloridos, mas raramente usando um lenço de cabeça.

Poderia alguém assim ser "a mulher mais perigosa do mundo?"

Um casamento arranjado, e elos com uma caridade muçulmana
Em Boston, Siddiqui levava uma vida entre dois países e dois mundos. Eles entraram em choque quando, após sua formatura em 1995, seus pais arranjaram seu casamento. A noiva nunca viu o marido antes do casamento. Na verdade, eles se casaram por telefone -uma chamada de longa distância entre Boston e Karachi.

Seu marido, Amjad Khan, era um anestesiologista. Seu pai era dono de um laboratório farmacêutico e os pais o consideravam um bom partido. Quando ele chegou a Boston, ele veio sem presentes ou flores. Em vez disso, ele apenas se queixava de quanto dinheiro a família tinha gasto pela pequena cerimônia, o quarto de hotel e o vestido de seda branco com muitas pérolas para Aafia, que a fez se parecer com uma princesa. Teria sido melhor doar o dinheiro para a caridade, ele disse. Não havia pessoas necessitadas suficientes no Paquistão?

O marido de Siddiqui encontrou um emprego em um hospital de Boston e o casal teve dois filhos, Ahmed e Mariam. Eles brigavam freqüentemente e Khan batia em sua esposa e filhos. Logo após os ataques de 11 de setembro de 2001, Siddiqui voou para Karachi com seus filhos, retornando a Boston poucos meses depois. Após seis meses o casal deixou o apartamento, doou os móveis e, em 26 de junho de 2002, se mudou para o Paquistão. Quando Amjad Khan se separou de sua esposa poucas semanas depois, ela já estava grávida de Suleman. Segundo a lei islâmica, o divórcio àquela altura era impossível.

Ela obteve um Ph.D. em neurociência e escreveu sua tese sobre aprendizado por meio da imitação. Sua irmã disse que Siddiqui queria abrir uma pré-escola em Boston, onde as crianças seriam ensinadas com as técnicas que ela estudou.

Este é um lado de Siddiqui, a acadêmica inteligente e esposa paciente. Mas há outro lado -a devota moralista, a arrecadadora de fundos enérgica.

Como uma jovem estudante de biologia, ela convidava não-muçulmanos para jantar, pregava o Islã e dava cursos sobre o Alcorão para os convertidos. Ela conheceu vários radicais islâmicos por meio do grupo de estudantes muçulmanos do MIT. Um deles era Suheil Laher, o imã do grupo, um franco defensor da islamização e da jihad antes do 11 de Setembro. Por um breve período, Laher também foi o chefe da caridade islâmica Care International, que não tinha nada a ver com a organização de ajuda de mesmo nome. O grupo, que acredita-se que arrecadava fundos para os combatentes jihadistas na Bósnia, Afeganistão e Tchetchênia, de lá para cá foi desfeito.

Siddiqui coletava dinheiro para os órfãos da guerra da Bósnia para a Care International. O imã Abdullah Faaruuq, um negro convertido que veste uma túnica sobre sua calça jeans azul e camisa pólo, recorda de um evento onde Siddiqui coletou calçados para os refugiados bósnios e dizia, soluçando: "Como você pode ter mais de um par de calçados enquanto nossos irmãos na Bósnia estão congelando?"

"A irmã Aafia era muito dedicada, altamente inteligente e extremamente preocupada com o destino dos muçulmanos em todo o mundo, e ela acreditava que podia fazer a diferença no mundo", diz Faaruuq. Ela ia com freqüência à Mesquita do Louvor a Alá, uma surrada casa de oração em Roxbury, um bairro de classe operária de Boston. Ela encomendou um grande número de volumes do Alcorão em inglês e literatura religiosa, as armazenou em caixas na mesquita e posteriormente distribuiu os livros nos presídios.

Mas não havia indícios de que ela apoiava a guerra dos radicais islâmicos contra os infiéis.

A contrabandista de diamantes
Mas também há alegações sérias contra Siddiqui, a maioria delas revelada apenas após seu desaparecimento. Por exemplo, o cartão de crédito do casal foi usado para encomendar óculos de visão noturna e armaduras em uma loja online de venda de equipamento militar. O FBI interrogou Amjad Khan pela primeira vez na primavera de 2002, após essas compras. Ele alegou que o equipamento era para caça no Paquistão. Siddiqui também foi interrogada -apenas, como sua advogada destacou, porque por acaso estava em casa no momento.

Foi a primeira e última vez que o FBI contatou o casal.

Siddiqui também é acusada de ter aberto uma caixa postal em Maryland, no final de dezembro de 2002, para Majid Khan. Khan, um paquistanês, está detido em Guantánamo e é suspeito de ter planejado ataques contra postos de gasolina na área de Baltimore -sob ordens de Sheikh Mohammed.

E há a questão dos diamantes de sangue. Esta é a acusação mais séria, porque parece confirmar a suspeita de que Siddiqui é uma terrorista. Em junho de 2001, poucos meses antes dos ataques em Nova York e Washington, Siddiqui teria segundo alguns viajado para a capital da Libéria, Monróvia, em nome da liderança da Al Qaeda, para comprar diamantes no valor de US$ 19 milhões, que seriam usados para financiar as operações da Al Qaeda.

Alan White, o ex-investigador chefe de um tribunal de crimes de guerra apoiado pela ONU na Libéria, que investigava o comércio dos diamantes de sangue, ainda jura que foi Siddiqui quem, em 16 de junho de 2001, apareceu na Monróvia sob o nome de "Fahrem". Uma das testemunhas foi o motorista dela, que, segundo White, identificou Siddiqui.

Todas essas alegações são uma mistura de fatos e conjecturas. Alguns depoimentos não podem ser verificados, ou foram obtidos sob circunstâncias questionáveis, ou fornecidos por testemunhas que de lá para cá desapareceram. Mas está claro que as autoridades não puderam confirmar nenhuma dessas alegações, caso contrário ela estaria respondendo a acusações de terrorismo. Mas aparentemente era evidência suficiente para que a missionária muçulmana fosse pega pela rede de caçadores de terroristas nos anos de pânico pós-11 de Setembro de 2001.

A advogada da família de Siddiqui, Elaine Whitfield Sharp, acredita que o marido estava sob suspeita nos Estados Unidos desde o início. "Ele teve um papel duvidoso", diz a mãe, Ismet Siddiqui, que até mesmo sugeriu que Khan pode ter traído sua filha para salvar sua própria pele. Khan não está mais disponível para ser interrogado. Ele desapareceu, e sua família se recusa a fornecer qualquer informação sobre seu paradeiro, apesar da crença de que ele esteja na Arábia Saudita.

Um disparo suspeito
Ninguém sabe exatamente por que Aafia Siddiqui foi declarada a mulher mais perigosa do mundo há quatro anos. Supostamente, Khalid Sheikh Mohammed, a testemunha-chave do governo no caso contra Siddiqui e suas supostas atividades terroristas, teve um importante papel na prisão e detenção dela.

Em 26 de maio de 2004, o então secretário de Justiça, John Ashcroft, apareceu diante de um cenário contendo sete enormes fotos em preto-e-branco dos terroristas mais procurados, entre eles Aafia Siddiqui. Ele se aproximou do microfone e disse que o rosto da Al Qaeda tinha mudado. A nova Al Qaeda, segundo Ashcroft, era mais jovem, feminina e viajava com parentes. "Ela constitui um risco claro e imediato para a América", ele disse.

Àquela altura, a suposta mulher mais perigosa do mundo já estava desaparecida há mais de 400 dias. Foi apenas na noite de 17 de julho de 2008 que ela reapareceu.

A suposta mulher-bomba de burca
Normalmente, o Afeganistão lida rapidamente com os homens-bomba. Eles são mortos a tiros antes que possam explodir a si mesmos. Mas como a suspeita agachada no chão em frente da mesquita em Ghazni era uma mulher, e como a multidão de curiosos já tinha se formado, o comandante da polícia, Ghani Khan, decidiu prendê-la. Bashir, um dos policiais, lembra da mulher ter começado a xingar os homens enquanto a polícia tentava levá-la. "Vocês são infiéis; não podem me tocar!", ela gritou, três vezes, na sua língua nativa urdu.

A princípio ninguém entendeu o que a mulher estava dizendo. Hekmatullah, o proprietário de uma loja próxima que, como muitos afegãos, usa apenas um nome, traduziu o urdu para os policiais. Ele recorda que a mulher tinha um passaporte paquistanês, que ela lhe deu e pediu para que destruísse. Ele também se lembra de que seu celular tocou duas vezes, e que as chamadas aparentemente vinham do Paquistão.

Após revistar as duas bolsas, a polícia não encontrou explosivos, mas pequenas garrafas plásticas contendo produtos químicos, um computador e documentos, escritos em urdu e inglês, sobre bombas sujas, armas biológicas e recrutamento de jihadistas.

Ao tentar explicar sua presença na mesquita, Siddiqui disse que foi ordenada a seguir um plano, e que a viagem para Ghazni era uma condição para sua soltura. Seus guardas, ela diz, colocaram os documentos e produtos químicos em suas bolsas.

A advogada dela, Elaine Whitfield Sharp, diz que armaram uma cilada para Siddiqui. Talvez os americanos não soubessem mais o que fazer com seus prisioneiros. Eles a enviaram para Ghazni na esperança de que a polícia local a balearia? A CIA chama isso de "ordem de descarte".

"Seria o assassinato perfeito", diz Sharp. Siddiqui seria impedida de testemunhar, apesar de que dados os claros documentos incriminadores em sua bolsa, ela poderia facilmente ser declarada uma terrorista. Mas por que alguém viajando para Ghazni precisaria de planos da Ponte do Brooklyn, do Centro de Zoonoses da Ilha Plum ou documentos descrevendo formas de abater aeronaves não-tripuladas, uso de bombas submarinas e voadoras?

Há muitos elementos estranhos nesta prisão. Dois dias antes dela acontecer, Abdul Rahim Dessiwal, o promotor público do distrito próximo de Andar, recebeu um telefonema anônimo de uma mulher alegando que uma mulher-bomba acompanhada de um menino estava a caminho de Ghazni.

Também é estranho que quando Siddiqui foi levada para a delegacia, ela disse que o menino era seu enteado, que seu nome era Ali Hassan e que era um órfão que adotou. Há um vídeo fora de foco feito pela polícia em Ghazni que, ávida em exibir sua grande prisão, convocou uma coletiva de imprensa. No vídeo, Siddiqui diz que seu nome é Saliha e que é da cidade de Multan, no Paquistão.

Ela usa um lenço preto sobre sua cabeça e rosto, aparentemente por temer que seria reconhecida. A certa altura ela cutuca o menino como se para lembrá-lo de cobrir seu rosto. Em resposta, ele esconde seu rosto atrás da manga, de forma que apenas seu cabelo fica visível. Um exame de DNA realizado pouco tempo depois determinou que o menino era Ahmed, o verdadeiro filho de Siddiqui.

Hoje Ahmed vive com Fauziu Siddiqui em Karachi. Ele está seriamente perturbado emocionalmente, tem pesadelos e conta histórias confusas sobre onde passou os últimos anos.

Um dia após a prisão, uma unidade de contraterrorismo de Cabul apareceu em Ghazni para investigar o caso. A equipe incluía 10 a 12 americanos. Eles entraram na pequena sala onde ela estava detida, que era dividida por uma cortina e tinha apenas uma porta. Siddiqui estava sentada ou em pé atrás da cortina. Um afegão, que deseja permanecer anônimo, diz que um dos americanos foi até ela imediatamente e que foram feitos disparos poucos segundos depois.

Siddiqui diz que desmaiou. Ela foi baleada e levada ao hospital em Bagram, onde foi submetida a cirurgia e sobreviveu por pouco.

A acusada
O que exatamente aconteceu naqueles poucos segundos antes dela ser baleada é importante, porque o indiciamento impetrado pelo promotor público em Nova York descreve uma versão dos eventos que diverge consideravelmente da história de Siddiqui. A acusação alega que ela agarrou o rifle de assalto M4 do soldado americano, soltou a trava e fez vários disparos, mas sem atingir ninguém, tudo em questão de segundos. Um dos soldados, agindo em autodefesa, supostamente atirou nela.

Uma pessoa teria que ser familiarizada com o M4 para saber como liberar a trava de segurança. E um soldado americano baixaria sua arma diante de uma terrorista procurada da Al Qaeda na mesma sala?

Uma avaliação psicológica de Siddiqui foi apresentada ao juiz em Nova York no início de novembro. O relatório diz que ela não é competente para ser julgada. Se o caso for a julgamento, e se o tribunal acatar a versão das forças armadas do indiciamento, ele não incluirá qualquer menção sobre as supostas conexões terroristas de Siddiqui, pois não haveria qualquer necessidade de provar qualquer um dos supostos atos terroristas.

E então a pergunta sobre o motivo para Aafia Siddiqui, uma cientista dotada, ter sido considerada a mulher mais perigosa do mundo, permanecerá um mistério para sempre.

Tradução: George El Khouri Andolfato
[Der Spiegel, 29/11/2008]

Ressuscitar o homem de Neandertal não é possível. Ainda...

O genoma do mamute abre as portas para reavivar espécies extintas. As dificuldades técnicas não são insolúveis, mas existem dilemas éticos

Javier Sampedro

O genoma recuperado dos gelos siberianos é um avanço enorme que nem mesmo o recém-falecido Michael Crichton ousou imaginar em seu livro Jurassic Park. Mas daí a ressuscitar o mamute, existem obstáculos gigantescos que a genética atual não é capaz de contornar. Mas todos esses problemas são puramente técnicos, e serão solucionados mais cedo ou mais tarde. Será que veremos um parque safári na Sibéria com mamutes devolvidos à vida pela graça do homem? E principalmente, o que acontecerá com o homem de Neandertal, o segundo genoma fóssil previsto?

Um óvulo fecundado humano é muito parecido com o de um mamute. Se o primeiro produz uma pessoa e o segundo, um mamute, isso se deve ao genoma, o conjunto de genes, que dirige o desenvolvimento da evolução.
O genoma do mamute consiste em 4 bilhões de bases, ou letras químicas do DNA (aggcttcaa...), e seqüenciá-lo é determinar a ordem exata dessas letras. Isso é o que os cientistas russos e norte-americanos
(quase) conseguiram fazer recentemente.

O genoma do mamute atual é como se fosse uma cópia imperfeita de um livro (tecnicamente, sua cobertura é de 0,7 vezes um genoma). Segundo estima o caçador de genomas fósseis Svante Pääbo, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva em Leipzig, uma seqüência de "qualidade razoável" precisaria de uma cobertura de 12 vezes, ou 12 livros imperfeitos.

Ainda assim, uma "qualidade razoável" significa um erro a cada 10 mil bases (as letras a, g, c, t do DNA). Como o genoma dessa espécie tem uns 4 bilhões de bases, isso dá um total de 400 mil erros. Esses "erros" no genoma de papel se transformariam em "mutações" reais num mamute reconstruído.

"Ainda não podemos devolver o mamute à vida", diz o subdiretor do centro de DNA antigo da Universidade de Adelaide, Jeremy Austin. "Uma seqüência genômica não faz um ser vivo. Tudo o que temos agora é um genoma parcial, com um número considerável de erros. Seria como tentar fabricar um carro com apenas 80% das peças, e sabendo que algumas estão quebradas".

Entretanto, nenhum desses obstáculos é insuperável. Contorná-los é apenas uma questão de mais mamutes e mais dinheiro. E a solução de muitos outros problemas aparentemente mais graves pode ser mais simples ainda: a trapaça. Ou seja, abandonar a obsessão de reproduzir fielmente um mamute, e conformar-se com algo que apenas se pareça com o animal. A evolução biológica, afinal de contas, também é oportunista.

Por exemplo, os genes do mamute são agora entidades virtuais: textos
(aagattcct...) escritos em um papel, ou gravados na memória de um computador, e será preciso transformá-los em coisas, DNA real dentro de cromossomos palpáveis, para que sirvam para algo. "Mesmo que tenhamos um genoma completo e bastante preciso", diz Jeremy Austin, "resta a questão de como construir os cromossomos". Não sabemos nem sequer quantos cromossomos tinha o mamute.

Mas é provável que isso não seja necessário. Duas espécies de moscas indistinguíveis à vista humana podem diferir enormemente em sua estrutura cromossômica. Até duas pessoas tem algumas diferenças na estrutura. Os elementos essenciais de cada cromossomo são os que iniciam sua duplicação em cada ciclo de divisão celular - origens de replicação - e os que garantem a distribuição das duas cópias às células filhas - centrômeros. E ambos foram sintetizados artificialmente com sucesso.

O mesmo vale dizer em relação a colocar os cromossomos dentro de um núcleo. E o restante são técnicas que ainda não foram testadas em elefantes, mas que já são corriqueiras em outros mamíferos: introduzir o núcleo em um óvulo, estimulá-lo para que comece a desenvolver-se e implantá-lo numa elefanta. Esses são os passos de uma clonagem, ainda que entre espécies diferentes, sendo que uma delas inexistente.

De acordo com projetos existem há anos, o primeiro objetivo de uma ressurreição hipotética do mamute será provavelmente um parque-safári.
Em 2002, por exemplo, uma equipe de cientistas japoneses financiados pela companhia tecnológica Field inspecionou os gelos siberianos em busca de mamutes bem preservados. Eles estavam interessados nos testículos do animal, porque o esperma é um dos tecidos que melhor se conservam a frio. Sua intenção era utilizar um espermatozóide para fecundar um óvulo de elefanta. Se nascesse uma fêmea híbrida, eles tornariam a fecundá-la com outro espermatozóide do mamute original, e assim sucessivamente até construir um parque-safári de 150 quilômetros quadrados na república siberiana de Sakha, no noroeste da Rússia.

Se a finalidade de ressuscitar o mamute é exibi-lo num parque-safári siberiano, as trapaças podem ser levadas ao extremo, como sugere Pääbo à revista Nature. O Instituto Broad de Cambridge, Massachusetts, um dos pólos do projeto genoma, já trabalha na seqüência de um dos parentes vivos do mamute, o elefante africano Loxodonta africana.

Comparar os genomas dos dois paquidermes conduzirá os cientistas aos genes-chave que distinguem o mamute, ou seja, os genes responsáveis pela sua cor escura, por seu pelo abundante e, sobretudo, por seus dentes exagerados. Pääbo acredita que a introdução desses poucos genes num elefante comum produziria algo bastante parecido com um mamute para ser exibido num parque-safári. Um pseudo-mamute de exibição.

"Não seria um mamute em nenhum sentido que pudesse satisfazer a um purista", diz o geneticista de Leipzig, "nem a um ecólogo, nem a um idealista que sonhe em restaurar um grandioso passado perdido. Mas seria suficiente para um parque de atrações e evitaria os problemas técnicos mais perigosos. E é tudo o que posso aspirar a ver nos meus anos de vida".

Michael Crichton acertou três vezes com seu livro Jurassic Park (1990). Primeiro, preveu a ressurreição de espécies extintas. Depois, sua exibição em parques de atrações. E terceiro, as trapaças ao estilo de Pääbo. Seus cientistas não puderam recuperar nenhum genoma completo de dinossauro, e introduziram os genes-chave de dinossauro em simples rãs (uma escolha discutível; o avestruz parece uma opção melhor, já que as aves evoluíram a partir dos dinossauros). Dessa forma, os monstros jurássicos do parque não eram nada além de pseudossauros de exibição incapazes de satisfazer a um purista. Mas isso não os impedia de dar mordidas.

O verdadeiro dilema ético é que, quando for possível ressuscitar o mamute, também será possível ressuscitar o homem de Neandertal, uma vez que esse será o segundo genoma fóssil seqüenciado. Essa é uma questão totalmente diferente, mas não por questões ecológicas. Os problemas técnicos serão tão formidáveis quanto no caso do mamute. Mas também, da mesma forma, nenhum deles será insuperável. E a solução estará em abandonar a obsessão em reproduzir fielmente um Neandertal, e conformar-se com algo que se pareça com ele.

A comparação do genoma humano com o do Neandertal já está em marcha, e pouco a pouco revelará os genes específicos do Neandertal. Será possível então criar um pseudo Neandertal, mas nesse caso a história é bem diferente, porque falamos de uma espécie humana inteligente, que cuidava de seus doentes e enterrava seus mortos.

Os Neandertais se extinguiram há menos de 30 mil anos. As últimas populações viveram em Gibraltar. Sua capacidade craniana era maior que a nossa, e as evidências anatômicas e genéticas apontam para o fato de que eles possuíam a faculdade da linguagem. Eles se espalharam por todo o continente europeu durante centenas de milhares de anos, e co-existiram com a nossa espécie, o Homo sapiens, durante cerca de 10 mil anos na Europa. Nosso papel em sua extinção é um mistério.

Em todo caso, o avanço da genética foi mais rápido do que imaginou Crichton ou qualquer cientista dos anos 90. Os únicos genomas seqüenciados até então eram de vírus, com cerca de 10 quilobases (10 mil letras de DNA).

O genoma humano é 10 mil vezes maior, e os mamutes e dinossauros estão próximos disso, de modo que ler um genoma fóssil completo desses animais era inimaginável (por isso as rãs). Mas 20 anos depois isso é um fato.

"O campo do DNA antigo avançou muito desde o primeiro estudo, de 1984, que conseguiu uma amostra de material genético da quagga, uma espécie de zebra extinta", diz Michael Bunce, chefe de DNA antigo da Universidade de Murcoch, na Austrália ocidental. Para este cientista, como para a maioria, o maior interesse desses trabalhos não é reavivar as feras, mas aprender como os genomas se relacionam com os organismos, como as variações dos genes alteram a forma e as características das espécies.

"Comparando os genomas do mamute e dos elefantes atuais, ou do Neandertal e dos humanos modernos, podemos começar a responder as questões biológicas mais fundamentais", afirma Bunce. "Que genes são responsáveis por quais características físicas? Comparado com seus primos africanos, que genes alteraram o mamute para adaptá-lo a climas frios?"

No fundo, Bunce está buscando os mesmos genes que os hipotéticos criadores do parque-safári, ainda que por razões distintas. "Se poderemos dentro de alguns anos devolver o mamute à vida? Nada disso.
Sabermos a seqüência de DNA de algo não quer dizer que possamos manipulá-la geneticamente para recriar o organismo extinto. Esse tipo de desenvolvimento ainda é uma fantasia", diz o especialista.

Mas há uma palavra que aparece por todas as partes nesse contexto: ainda.

Um túnel do tempo
Há túneis do tempo genéticos que nenhum escritor explorou, mas com os quais os lingüistas trabalham diariamente. Não há gravações de 10 mil anos atrás que demonstrem que a palavra pé era "pod" na língua indo-européia ancestral. Os lingüistas comparam as palavras pie, foot, vot, pés e pada e deduzem qual a sua origem evolutiva. Os biólogos podem fazer o mesmo com os genes.

A comparação entre genomas e linguagens é mais do que uma metáfora, porque o DNA é um texto num sentido muito literal. Todos os genes têm a mesma estrutura (a famosa dupla hélice do DNA). A informação genética é a única coisa que distingue um gene do outro, que é a ordem das bases (as letras a, g, c, t) em fileiras. Da mesma maneira que a informação de um texto está contida na ordem das letras.

A comparação entre genomas de mamíferos permite reconstruir o genoma do primeiro mamífero. A comparação entre humanos, moscas e medusas revela o genoma do primeiro animal, a origem da evolução animal. O mesmo vale para cada gene concreto. Não é necessário recuperar fisicamente aquele DNA de 600 milhões de anos atrás. Pode-se deduzi-lo, assim como a palavra pod.

Se há uma conclusão geral, é que todas as funções fundamentais já estavam presentes no primeiro animal, há 600 milhões de anos. A evolução consistiu desde então em amplificar e refinar funções concretas em cada linhagem animal. Por exemplo, os sentidos sempre existiram, e todos têm uma lógica genética similar. Mas os genes dos receptores sensoriais (olfativos, do tato e demais) se propagam e retraem continuamente no genoma para adaptar-se às demandas do entorno.

Os geneticistas também exploram as possibilidades futuras. Utilizam os mesmos mecanismos que a evolução, mas em simulações aceleradas. Por exemplo, as proteínas costumam ser feitas de módulos, e a evolução gera novidade recombinando-os. As opções combinatórias são inesgotáveis, e os seres vivos só usam uma pequena fração das possibilidades. No laboratório, podem ser criadas muitas funções novas por meio desse método.

Um parque-safári verdadeiramente inovador não resgataria o passado de gelo. Mas o deduziria a partir de seus herdeiros atuais. E mostraria a estes as suas possibilidades futuras, além da certeza da extinção.

Tradução: Eloise De Vylder
[El País, 04/12/2008]