Imperdível 1

Aos tapas e pontapés, with love
Encrenqueiro por temperamento, Norman Mailer passou toda a segunda metade do século XX brigando por seu lugar de artista e intelectual de esquerda numa sociedade que prosperava com a expansão do império americano, e num mundo onde a União Soviética virara um museu de teorias revolucionárias. O autor de Os Nus e os Mortos morreu há um ano, deixando quarenta livros prontos, seis casamentos, dois romances engatilhados e uma enxurrada de papéis inéditos, disputados por duas universidades. A correspondência erótica foi parar em Harvard, vendida por uma ex-amante. Mas as cartas de Mailer sobre política ganharam a corrida da publicação póstuma. [ clique aqui para ler ]

A primeira parte da correspondência política de Norman Mailer: embora disponível para leitura no site da revista (link acima) vale, entre outros motivos, a aquisição do exemplar desse mês da Revista Piauí.

Imperdível 2

Contra a diversidade
Se você quer promover um funcionário, e tem que optar entre um branco heterossexual e uma negra lésbica, e esta última for uma funcionária melhor, o racismo, o machismo e a homofobia recomendam a escolha do branco heterossexual. Mas o capitalismo prefere a negra lésbica. [ continue a ler... ]
[Imagem: Norman Rockwell, 1964]

A longa marcha dos índios da Colômbia rumo a Bogotá

Marie Delcas, em Soacha (Colômbia)

Por que os índios colombianos resolveram marchar rumo a Bogotá? Edilfredo Rivera não responde de imediato, tomando seu tempo para refletir. "Para reivindicarem a dignidade e o respeito", responde, com voz grave e calma. Uma braçadeira verde e o bastão que ele carrega a tiracolo indicam que ele é membro da "guarda indígena". Esta polícia comunitária garante o serviço de segurança do cortejo.

Os manifestantes - 10 mil segundo as autoridades, 20 mil segundo as organizações indígenas - deverão alcançar seu objetivo e se reunirem na sexta-feira, 21 de novembro, na Praça Bolívar, em pleno centro de Bogotá. "Nós queremos que o governo cumpra as promessas que ele fez aos índios", prossegue Edilfredo Rivera. "Nós queremos terras, nós queremos a erradicação da violência e dos assassinatos em nossas reservas. Nós queremos que o exército pare com essa história de lidar conosco como se fôssemos guerrilheiros. Nós queremos viver dignamente e em paz".

Aos 28 anos, Edilfredo Rivera acaba de ser eleito governador da pequena reserva de Toez, no departamento do Cauca (sudoeste). Foi nesta região que o movimento de protesto dos índios teve início, em 12 de outubro, no dia da comemoração da descoberta das Américas por Cristóvão Colombo (1492).

Naquela ocasião, a repressão policial provocou a morte de três manifestantes. Uma primeira reunião com o presidente Álvaro Uribe não resultou em nenhum acordo concreto. Foi então que os "indígenas" tomaram a decisão de se unirem nesta grande romaria, para fazer com que as suas reivindicações sejam ouvidas em Bogotá. Viajando a pé, em ônibus multicolores e a bordo de caminhões andando aos trancos e barrancos, eles percorreram os 450 quilômetros que separam a cidade de Cali da capital.

Muito minoritários na Colômbia (eles não passam de 1,3 milhão, contra uma população de 44 milhões), os índios exigem a devolução de terras ancestrais - que há muito tempo lhes foram prometidas pelo Estado -, além do fim dos atos de violência que alvejam suas comunidades.

Segundo dados divulgados pela Organização Nacional dos Indígenas da Colômbia, 1.253 índios foram assassinados nos últimos seis anos, enquanto 54 mil foram forçados a deixarem sua moradia. Cobiçadas por colonos e por narcotraficantes, as suas reservas vêm sendo o palco privilegiado do conflito armado colombiano.

Na quarta-feira (19), os manifestantes acamparam em Soacha, uma cidade da periferia pobre da capital que foi a última etapa da marcha antes da chegada a Bogotá. As autoridades locais colocaram à sua disposição o ginásio municipal. Grandes lonas de plástico preto foram utilizadas como barracas, instaladas no gramado em volta do edifício.

Dezenas de fogareiros a gás, de sacos de batatas e de pencas de bananas foram descarregadas de caminhões. Aqui, as mulheres da etnia Guambiano, trajando seu inseparável chapéu de feltro preto, se prontificaram as descascar as batatas. Ali, outros índios da etnia dos Embera Katio, com o rosto pintado, cozinharam sua refeição por meio de uma fogueira de lenha.

Quem organizou a logística do imenso cortejo? "Cada uma das comunidades indígenas tomou as suas providências, de maneira a provir às necessidades materiais dos seus membros", explicou Auxiliadora Franco, 58 anos, ela também uma governadora. Apenas 47 habitantes da sua aldeia participaram da viagem. "Todos eles queriam tomar parte do protesto, mas a viagem custa dinheiro e era necessário que alguns dentre nós permanecessem no local para cuidar dos animais de criação e das culturas", confidenciou.

"Nós demonstramos para o país e para o mundo inteiro que nós não somos nem terroristas, nem uma população manipulada pela guerrilha, ao contrário do que afirmou o governo", declarou Daniel Pinacué, do Conselho Regional Indígena do Cauca (CRIC), que esteve na origem da manifestação.

"Os índios estão nos proporcionando, mais uma vez, uma lição de disciplina e de organização", sublinhou Alberto Ruiz, um sindicalista. Dezenas de organizações sociais se juntaram ao movimento e convocaram seus filiados para participarem da manifestação na sexta-feira, junto com eles. "A sua extraordinária mobilização está abrindo para as forças da oposição um espaço político que extrapola amplamente as reivindicações indígenas", acrescentou Jesus Maria Zapata, do comitê de defesa dos prisioneiros políticos.

Ayda Quilcue, a primeira conselheira do Conselho Regional Indígena de Cauca, comemorou este apoio das organizações sociais, lembrando que "a questão da terra na Colômbia não constitui exclusivamente um problema indígena, e que a questão das violações dos direitos humanos também diz respeito aos índios". Ela espera que o governo, que não ratificou a declaração dos direitos das populações indígenas que foi adotada pelas Nações Unidas em setembro de 2007, acabe cedendo, "ao menos em relação a este ponto".

Tradução: ?
[Le Monde, 21/11/2008]

Da Banalidade do Mal

'Não existe essa coisa de mal absoluto', diz Jacques Vergès, o 'advogado do diabo'

Brita Sandberg e Eric Follath

Ele se encontrou com Mao Tsé-tung, Pol Pot e Che Guevara. Ele defendeu 'Carlos, o Chacal' e o criminoso de guerra nazista Klaus Barbie. Jacques Vergès, 83 anos, provavelmente é o advogado mais famoso do mundo. Seu mais recente cliente é Khieu Samphan, o ex-chefe de Estado do Camboja sob o Khmer Vermelho, que está sendo julgado por crimes de guerra.

Spiegel: Sr. Vergès, o senhor é atraído pelo mal?
Jacques Vergès: A natureza é selvagem, imprevisível e terrivelmente sem sentido. O que distingue os seres humanos dos animais é sua capacidade de falar em prol do mal. O crime é um símbolo de nossa liberdade.

Spiegel: Esta é uma visão de mundo cínica.
Vergès: Uma realista.

Spiegel: O senhor defendeu alguns dos piores assassinos em massa na história recente e foi chamado de "o advogado do diabo". Por que se sente atraído por clientes como Carlos e Klaus Barbie?
Vergès: Eu acredito que qualquer um, independente do que possa ter feito, tem direito a um julgamento justo. O público é sempre rápido a atribuir o rótulo de "monstro". Mas monstros não existem, não existe essa coisa de mal absoluto. Meus clientes são seres humanos, pessoas com dois olhos, duas mãos, um gênero e emoções. Isso é o que os torna tão sinistros.

Spiegel: O que quer dizer?
Vergès: O que era tão chocante a respeito de Hitler, o "monstro", é que ele amava muito a sua cadela e beijava as mãos de suas secretárias - como sabemos a partir da literatura do Terceiro Reich e do filme "Der Untergang" ("A Queda"). O interessante a respeito dos meus clientes é descobrir o que os leva a cometer estas coisas horríveis. Minha ambição é iluminar o caminho que os levou a cometer esses atos. Um bom julgamento é como uma peça de Shakespeare, uma obra de arte.

Spiegel: O senhor está atualmente no palco no Teatro Madeleine, em Paris, como o principal personagem de um monólogo que você escreveu.
Vergès: É a respeito de mim, é claro, sobre a profissão de advogado e a natureza dos julgamentos. Em cada julgamento, um drama se desdobra diante do público, um duelo entre a defesa e a acusação. Ambas contam histórias que não são necessariamente verdadeiras, mas possíveis. No final uma é declarada a vitoriosa, mas isso não necessariamente tem algo a ver com justiça.

Spiegel: Existe alguém que o senhor não defenderia por princípio?
Vergès: Um dos meus princípios é não ter princípios. Este é o motivo para eu não recusar ninguém.

Spiegel: Digamos, Adolf Hitler...
Vergès: Eu teria defendido Hitler. Eu também aceitaria Osama Bin Laden como cliente, até mesmo (o presidente dos Estados Unidos) George W. Bush - desde que se declarasse culpado.

Spiegel: O senhor não pode mencionar seriamente Hitler, Bin Laden e Bush, e seus erros, na mesma frase.
Vergès: Todo crime é único, assim como cada criminoso. Isso por si só torna as comparações impossíveis.

Spiegel: Seu mais recente cliente é Khieu Samphan, o ex-chefe de Estado do infame reino do Khmer Vermelho, um homem com o qual o senhor está ligado por um passado espantoso. O senhor o conheceu em Paris há mais de 55 anos, onde ambos pertenciam a um grupo comunista. Khieu Samphan deverá ser julgado em breve em Phnom Penh, onde enfrentará acusações de genocídio.
Vergès: Não ocorreu genocídio no Camboja.

Spiegel: Sério? Cerca de 1,7 milhão de pessoas morreram em menos de quatro anos em conseqüência do reinado de terror do Khmer Vermelho.
Vergès: Esses números são exagerados. Ocorreram muitos homicídios, e alguns deles são imperdoáveis, o que é algo que meu cliente também diz. E também ocorreu tortura, o que é indesculpável. Todavia, é errado definir isso como genocídio deliberado. A maioria das pessoas morreu em conseqüência de fome e doença.

Spiegel: Mas o regime é o único responsável por essas dificuldades.
Vergès: Isto precisamente não é o caso. Foi conseqüência da política de embargo dos Estados Unidos. A história do Camboja não começou quando o Khmer Vermelho chegou ao poder em 1975. Houve um prólogo sangrento para este processo: os americanos, sob o presidente Richard Nixon e o conselheiro de segurança nacional, Henry Kissinger, sujeitaram a população civil do Camboja a um bombardeio brutal no início dos anos 70.

Spiegel: O senhor poderia convocar Henry Kissinger como testemunha no julgamento do Khmer Vermelho.
Vergès: E me reservo o direito de fazê-lo, mas duvido que ele apareceria. Além disso, nem sei ao certo se o julgamento em Phnom Penh ocorrerá.

Spiegel: Como o senhor pode dizer isso? A ONU e o governo do Camboja já gastaram mais de US$ 50 milhões nos preparativos para o julgamento. O julgamento de Kaing Guek Eav, também conhecido como camarada Duch, que comandou a pior prisão de tortura do Khmer Vermelho, deverá começar em breve.
Vergès: Pode ser que o julgamento do Duch comece em breve, mas não os julgamentos contra os outros quatro prisioneiros: o ex-segundo em comando do Khmer Vermelho, Nuon Chea, os ex-ministros Ieng Sary e Ieng Thirith, e o ex-chefe de Estado, Khieu Samphan. O caso nem chegará a julgamento, porque o tribunal em Phnom Penh já perdeu sua credibilidade e legitimidade.

Spiegel: Por quê?
Vergès: Aqui estão dois exemplos do diletantismo dos promotores: Ieng Sary já foi sentenciado por um tribunal cambojano e perdoado por decreto real em 1996. Colocá-lo em julgamento uma segunda vez, pelos mesmos crimes, contradiz todos os padrões legais. E meu cliente deve ser solto, porque o tribunal ignorou regras básicas de defesa. Apesar de o tribunal reconhecer as três línguas do processo como sendo equivalentes, ele não considerou necessário traduzir para o francês mais que um fragmento dos documentos escritos em khmer. É impossível para mim defender meu cliente sem conhecimento desta evidência...

Spiegel: ...o que o senhor expressou de forma estridente no tribunal de Phnom Penh, antes de abandonar a audiência e bater a porta atrás de você.
Vergès: E até mesmo tive que ouvir um juiz recomendar que meu cliente considerasse a contratação de um novo advogado. Um ultraje!

Spiegel: O senhor é fundamentalmente contrário a políticos serem julgados por assassinato em massa ou violação da lei internacional?
Vergès: Este não é o problema principal. O julgamento, perante o Tribunal de Crimes de Guerra em Haia, de (Slobodan) Milosevic (o ex-presidente sérvio)...

Spiegel: ...criminoso de guerra sérvio, ao qual o senhor também prestou consultoria legal...
Vergès: ...era uma farsa. Este tipo de coisa sempre cheira a justiça do vitorioso. A mesma coisa se aplica aos Julgamentos de Nuremberg, mas pelo menos certas regras foram seguidas a risca lá. Por exemplo, Hjalmar Schacht, o ex-ministro da economia do Reich alemão, foi absolvido de todas as acusações. Meu cliente Khieu Samphan também era responsável pelos assuntos econômicos, mas em comparação a Nuremberg, nós nos vemos em um estado de total ilegalidade perante o tribunal em Phnom Penh. O que está acontecendo aqui beira um linchamento.

Spiegel: Sua grande simpatia visível pelo Khmer Vermelho teria algo a ver com sua história pessoal? O senhor conheceu (o líder do Khmer Vermelho) Pol Pot e Khieu Samphan em Paris, nos anos 50.
Vergès: Eu fui um líder estudantil comunista na época, e estava em contato com muitos estudantes estrangeiros dentro do meio esquerdista. É verdade que também conheci Saloth Sar, que posteriormente passou a se chamar Pol Pot. Ele era um jovem que adorava Rimbaud e ficava profundamente comovido com seus poemas. Ele também tinha senso de humor.

Spiegel: Humor? Ele foi um assassino em massa. Fora Hitler, Mao e Stalin, provavelmente o pior do último século.
Vergès: Uma coisa é clara, que Khieu Samphan era o mais intelectual dos estudantes khmer que estudavam em Paris com bolsas fornecidas pelo rei Sihanouk. Ele escreveu uma dissertação inteligente sobre o desenvolvimento econômico no Camboja. É verdade que eu contribuí, de certa forma, para sua politização. Saloth Sar e Khieu Samphan, como outros, estavam à procura de modelos para conduzir a luta anticolonial em seu país de origem. Khieu Samphan se tornou um marxista.

Spiegel: Quando o senhor o viu de novo?
Vergès: Apenas após 2004. Ele me disse, na época, que esperava enfrentar as acusações. Então fui ao Camboja e nos sentamos por quatro dias em sua casa, próxima da fronteira tailandesa, para chegarmos a uma estratégia de defesa.

Spiegel: E que linha ela segue?
Vergès: Simplesmente, meu cliente nunca ocupou uma posição de autoridade na polícia ou forças de segurança do país. Seu papel era meramente técnico. Como chefe de Estado, ele representava o país, mas não foi responsável pela repressão. Ele é uma pessoa gentil. Ele é inocente.

Spiegel: O senhor realmente acredita nisso?
Vergès: Sim, é claro. Tudo o que ele queria fazer era abolir uma casta política, não os cidadãos que faziam parte dela. Ele era um idealista que buscava idéias revolucionárias. Você sabe, o Ocidente está constantemente tentando censurar a todos, mas deveria fazê-lo quando, como no caso dos Estados Unidos, matou milhares de civis em guerras com a suposta meta de disseminar a democracia, e quando é responsável por coisas como Guantánamo e Abu Ghraib? Ou quando um país como a França está envolvido em tamanha sujeira como na Argélia?

Spiegel: Em 1957, o senhor defendeu muitos membros da Frente Nacional de Libertação (FNL) argelina, ganhando renome como advogado. Seus clientes usavam métodos de terror e revolta contra seus mestres coloniais franceses. O senhor declarou sua solidariedade a eles.
Vergès: Sim, eu lhes disse na época: eu entendo sua raiva, eu entendo sua luta, e apóio o que estão fazendo. Eu também endossei a violência que empregaram. Eu via a FNL como uma agente de resistência.

Spiegel: O senhor sofreu tanto em sua vida a ponto de demonstrar tamanho entendimento dos atos de violência?
Vergès: Sabe, parece estar na moda usar a própria condição de vítima como justificativa para as ações de alguém. Eu abomino isso! É verdade que meu pai teve que renunciar ao seu posto de cônsul na Indochina colonial por ter se casado com uma mulher vietnamita. Ele então nos levou a Reunião, a um departamento de ultramar francês além da costa africana, onde trabalhou como médico. Eu sou uma criatura de origem dual, mas não tive uma existência torturada. Eu não nasci com raiva nas minhas entranhas. Eu apenas adquiri essa raiva sozinho.

Spiegel: Todavia, os filhos protegidos das famílias de Paris provavelmente tiveram experiências diferentes.
Vergès: É claro. Eu conheço discriminação desde minha infância. Certa vez, em Madagascar, eu vi um casal europeu incrivelmente gordo sendo puxado em um riquixá por um homem esquelético local. Quando queriam parar, eles simplesmente chutavam o homem. Eles não tratariam uma mula daquela forma. Eu experimentei o significado do colonialismo desde a infância. E desprezo ele desde pequeno.

Spiegel: O senhor embarcou em um navio com destino à Europa em 1942 e se juntou à resistência francesa contra os nazistas. Por quê?
Vergès: Aos 17 anos, em 1942, eu lutei com as Forças Francesas Livres de Charles de Gaulle contra a ocupação nazista. Porque eu queria defender a França que, fora a França que eu desprezo como potência colonial, eu passei a valorizar e amar: a França de Montaigne, Diderot, Robespierre e da Revolução. E gostei muito de servir sob De Gaulle, sob alguém que tinha sido sentenciado à morte pelo governo francês. Nós fomos treinados na Inglaterra e na Argélia, e lutamos na Itália e na França.

Spiegel: Não foi algo extremamente perigoso?
Vergès: Sim, no princípio foi. Mas eu sofri apenas um único ferimento naquela época, um corte profundo na mão, bem aqui, que aconteceu enquanto eu estava abrindo ostras além da Ile d'Oléron.

Spiegel: O senhor aparentemente tinha um anjo da guarda.
Vergès: Eu sou imune a balas, vamos colocar desta forma.

Spiegel: Em seu primeiro grande julgamento como advogado, o senhor assumiu um caso perdido em 1957: a defesa da combatente da resistência argelina Djamila Bouhired, que foi acusada de realizar atentados a bomba que também mataram civis.
Vergès: Eu estava completamente do lado dela. Ela era uma patriota. Ela foi brutalmente torturada na prisão.

Spiegel: No julgamento, o senhor introduziu, pela primeira vez, sua agora famosa estratégia de ruptura, ou "defesa de ruptura", o princípio de lançar uma defesa com um contra-ataque político. Por quê?
Vergès: Os outros advogados franceses que estavam encarregados da defesa em Argel tentaram abrir um diálogo com os juízes militares de lá. Os juízes viam a FNL como um grupo criminoso. Mas os réus argelinos viam seus ataques como um ato necessário de resistência. Em outras palavras, não havia consenso em torno dos princípios que deviam ser aplicados para se chegar a um veredicto. Para mim, significava que eu tinha que transferir os eventos para fora da sala do tribunal e conquistar a opinião pública para os réus.

Spiegel: Funcionou. Após uma campanha internacional que o senhor ajudou a organizar, Bouhired, que foi sentenciada à morte, foi solta, e posteriormente se tornou sua esposa. Em março de 1963, o senhor foi à China acompanhado dela para beber chá com Mao Tsé-tung. Como o senhor conseguiu uma audiência com o Grande Timoneiro?
Vergès: Na época eu dirigia um jornal na Argélia, o "Révolution Africaine", que era apoiado pela FNL. Os chineses convidaram membros da equipe editorial para irem a Pequim. Nós tivemos muitas discussões políticas sérias. Mas o lado humano de Mao me surpreendeu. Havia algo tocando nele. Ele me perguntou, com toda a seriedade, se pretendia me casar com Djamila. Eu disse que sim, e ele respondeu: "Faça isso. Certamente será um relacionamento difícil, mas o amor é uma força subversiva".

Spiegel: O senhor ainda se sente tão positivo em relação a Mao, dado o conhecimento que temos hoje, o conhecimento das 30 milhões de mortes por fome pelas quais ele já era responsável na época, em conseqüência de seu "Grande Salto à Frente"?
Vergès: Eu acredito que todo mundo tem qualidades e fraquezas. Eu tive a sorte de conhecer apenas o lado positivo de Mao.

Spiegel: O senhor também conheceu Che Guevara.
Vergès: Sim, em Paris. Ele estava retornando de uma viagem à Suíça. A primeira esposa dele trabalhava em nossa redação. Ele era impressionante, um homem com um carisma incrível.

Spiegel: O senhor posteriormente foi suspeito de ter ajudado pessoalmente terroristas. Isso foi verdade? O senhor já pensou em se juntar às causas de seus clientes?
Vergès: Eu tenho respeito pelo que muitos deles fizeram, mas não o faria pessoalmente.

Spiegel: Respeito por terroristas? Como é possível conciliar isso com sua consciência, com sua percepção da lei?
Vergès: Magdalena Kopp, por exemplo, a parceira de vida de Carlos por muitos anos, era uma jovem alemã que estudou fotografia e queria se tornar jornalista. Então ela abandonou tudo e foi ao Oriente Médio lutar ao lado dos palestinos oprimidos. Aquele foi um ato extremamente abnegado, pelo qual só posso sentir simpatia.

Spiegel: Mas, como advogado, o senhor não está cruzando uma linha vermelha com esses sentimentos?
Vergès: O que exatamente essa linha vermelha significa? É minha obrigação, como advogado, defender qualquer um, especialmente aqueles com as acusações mais sérias contra eles. Segundo, eu não posso me identificar com esses atos. Se meu cliente Klaus Barbie me pedisse para defender a superioridade da raça ariana em meus argumentos finais, eu teria dito a ele: sinto muito, não posso fazer isso. Eu sou Maître Vergès, um advogado com licença para praticar em Paris, não um Obersturmführer.

Spiegel: O senhor hesitou bastante antes de aceitar a defesa de Klaus Barbie, o ex-chefe da Gestapo, o "Açougueiro de Lyon"?
Vergès: Nem um segundo. No julgamento de Barbie em Lyon, em 1987, eu enfrentei 39 advogados no lado oposto e o juiz. Isso por si só era motivo suficiente para assumir a defesa de Barbie.

Spiegel: O senhor precisou de proteção policial após apontar um espelho para a França na sala do tribunal e acusar muitos franceses de terem colaborado com os nazistas.
Vergès: A beleza de um julgamento pode ser medida pelo rastro que deixa para trás, muito após a sentença ter sido pronunciada.

Spiegel: E qual foi sua impressão de Barbie?
Vergès: Ele era um homem surpreendentemente comum, sem personalidade notável. Mas, é claro, é preciso não esquecer que se passaram mais de 40 anos entre os crimes que ele cometeu e o julgamento. Ele não era mais o mesmo homem.

Spiegel: O senhor deve saber, já que também desapareceu sem deixar traço nos anos 70. Sem nem mesmo avisar sua família, o senhor sumiu por oito anos. Até hoje, ninguém sabe onde o senhor esteve naquela época.
Vergès: André Malraux já disse que a verdade sobre um homem está principalmente naquilo que ele não diz...

Spiegel: ...em outras palavras, o senhor não tem intenção de algum dia esclarecer este mistério?
Vergès: E por que deveria? É extremamente divertido o fato de ninguém, em nosso moderno Estado policial, não conseguir saber onde estive por quase 10 anos. Já foi conjeturado que passei algum tempo com o Khmer Vermelho no Camboja, na Palestina, na China e na França. Eu adorei ler meus obituários. Eles falavam de um jovem altamente dotado que tinha partido deste mundo.

Spiegel: O senhor assume muitos de seus casos sem pagamento. O senhor defendeu prostitutas e crianças pobres. Como o senhor financia seu escritório de advocacia?
Vergès: Não se preocupe. Eu também represento algumas empresas industriais e elas me pagam muito bem, então certamente há algum dinheiro sobrando.

Spiegel: Também há rumores de que o senhor está na folha de pagamento de potentados africanos ou lhes prestando consultoria. O político congolês Moise Tshombé, que esteve envolvido no assassinato de (Patrice) Lumumba (o ex-primeiro-ministro congolês), seria um deles, e que o senhor teria processado a Anistia Internacional em nome do violento ex-presidente de Togo, Gnassingbé Eyadéma?
Vergès: ...porque ela alegou coisas que não eram verdadeiras. Mesmo boas organizações devem respeitar certos limites.

Spiegel: Eyadéma, Tschombé e sua laia... não são pessoas sobre as quais o senhor poderia dizer: eu não quero ter nada a ver com elas?
Vergès: Sim, eu poderia fazer isso, mas seria a mesma coisa que um médico dizer ao seu paciente: "Sabe de uma coisa, você tem Aids, mas não gosto de negros. Eu acho que são criminosos e isso me enoja, então não vou tratar você".

Spiegel: Um médico deve fornecer ajuda, mas como advogado, o senhor não é obrigado a aceitar todo cliente.
Vergès: Se você encontrar um médico que não consegue ver sangue, pus ou ferimentos abertos, ele está na profissão errada. Se você encontrar um advogado que não goste de criminosos ou ditadores, é a mesma coisa.

Spiegel: "Minha moral e estar contra toda moral, porque ela busca amarrar a vida", o senhor escreveu certa vez.
Vergès: Sim, em um livro autobiográfico ao qual batizei como um jornalista certa vez me chamou, "Le Salaud lumineux", ou "O Bastardo Brilhante".

Spiegel: Pode ser que o senhor use sua profissão principalmente como uma permanente provocação intelectual.
Vergès: Eu a uso principalmente para permanente enriquecimento intelectual. Nossa visão de mundo muda com o tempo, porque o vemos sob diferentes pontos de vista. Graças à minha profissão, eu agora estou familiarizado com a visão de mundo do ponto de vista do terrorista e do policial, do criminoso e do idiota, do virgem e do ninfomaníaco. E posso lhe dizer que isso aprimora a visão própria de uma pessoa.

Spiegel: Maître Vergès, obrigado por esta entrevista.

Tradução: George El Khouri Andolfato
[Der Spiegel, 22/11/2008]

20 de novembro: Dia da Consciência Negra



"A luta de Palmares não era contra a iniqüidade desumanizadora da escravidão. Era apenas recusa da escravidão própria, mas não da escravidão alheia.[...]" (José de Souza Martins, Divisões Perigosas, p. 99).

Imperialismo tupiniquim

Novos estudos sobre a Guerra do Paraguai atribuem o conflito ao desejo expansionista do Brasil

A Guerra do Paraguai desperta interesse crescente de historiadores de diferentes países, como demonstram os seminários sobre o tema realizados em Paris (2005), Montevidéu (2008) e, entre 3 e 5 deste mês, Buenos Aires. Este intitulou-se "A Guerra do Paraguai - Historiografias, Representações, Contextos", foi organizado pelo Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Nacional de San Martín e contou com a presença de especialistas de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, França, Paraguai, Peru e Uruguai.
Na ocasião, foi lançado o livro "Epistolário Inédito (1864-1883) - Juan Bautista Alberdi-Gregorio Benites" (Fondec, Academia Paraguaia de História, Universidade Nacional de San Martín e Biblioteca Furt, 1.726 págs.), em três volumes, com estudos introdutórios dos historiadores Liliana Brezzo, argentina, e Ricardo Scavone Yegros, paraguaio.
Brezzo é uma das maiores especialistas em história paraguaia e publicou importantes artigos e livros sobre o tema, a partir de pesquisas em arquivos argentinos e paraguaios. No seminário, fez uma apresentação intitulada "A Grande Polêmica Continua! Discursos e Repercussões da Disputa entre Cecilio Báez e Juan O'Leary sobre a Guerra do Paraguai" e, na ocasião, concedeu à Folha a entrevista abaixo.


FOLHA - Poderia apresentar Alberdi e Benites ao leitor brasileiro? Quem foram eles?
LILIANA BREZZO - O argentino Juan Bautista Alberdi (1810-84) e o paraguaio Gregorio Benites (1834-1909) foram escritores e expoentes da vida política no rio da Prata na segunda metade do século 19. Foram representantes diplomáticos de seus países perante os governos europeus e seus escritos influenciaram fortemente as elites políticas argentina e paraguaia, particularmente no contexto de formação dos respectivos Estados nacionais e de suas relações exteriores. Seus vínculos de amizade se iniciaram às vésperas da Guerra da Tríplice Aliança, ou Guerra do Paraguai, diante da qual Alberdi assumiu posição de defesa intelectual da causa paraguaia, enquanto Benites era o secretário da legação paraguaia na Europa, com sede em Paris.

FOLHA - O que é o "Epistolário Alberdi-Benites?"
BREZZO - O "Epistolário" traz a correspondência inédita entre esses dois importantes intelectuais e homens públicos americanos. Compreendendo o período de 1864 a 1883, esse intercâmbio epistolar contém valiosa informação para compreender a essência de acontecimentos históricos do rio da Prata. O principal momento dessa correspondência é o dos anos da Guerra do Paraguai e o pós-guerra. Esses documentos -mais de 800 cartas provenientes de arquivos do Paraguai e da Argentina- constituem testemunhos de uma teia de significados que motivaram os atos políticos que foram construindo projetos de nação e de integração regional. A obra, publicada em três tomos, é o resultado de uma pesquisa desenvolvida ao longo de cinco anos, na qual trabalharam historiadores e filólogos argentinos e paraguaios procedentes do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), da Universidade Nacional de San Martín, da Universidade Católica Argentina e da Academia Paraguaia de História.

FOLHA - Como Alberdi via o Império do Brasil?
BREZZO - Acredito que as idéias de Alberdi sobre o Império do Brasil e, particularmente, sobre a política regional ficam bem definidas no contexto da Guerra da Tríplice Aliança. Ele escreveu, entre 1865 e 1869, seis de suas principais obras que mostram seu universo intelectual em relação ao conflito: "Las Disensiones de las Repúblicas del Plata y las Maquinaciones del Brasil" (março de 1865); "Los Intereses Argentinos en la Guerra del Paraguay con el Brasil" (julho de 1865); "La Crisis de 1866 y los Efectos de la Guerra de los Aliados en el Orden Económico y Político de las Repúblicas del Plata" (fevereiro de 1866); "Tratado de la Alianza Contra el Paraguay" (abril de 1866); "Las Dos Guerras del Plata y su Filiación en 1867" (1867); e "El Imperio del Brasil ante las Democracias de América" (1869). Alberdi atribui a responsabilidade da guerra à ambição brasileira, da qual acusava de cúmplice o presidente argentino Bartolomé Mitre. Por exemplo, no livro "El Império del Brasil ante las Democracias de América", escreve: "O fato é que a questão de fundo que se disfarça com a Guerra do Paraguai se reduz à reconstrução do Império do Brasil". Já no ensaio "Las Dos Guerras del Plata y su Filiación en 1867", Alberdi afirma: "As manifestações de simpatia em relação ao Paraguai durante a guerra não foram insultos à República Argentina, mas, sim, o doloroso e oportuno protesto contra uma aliança que faz dos povos argentinos os instrumentos do Brasil em prejuízo deles mesmos: foram as manifestações a oposição necessária, imposta ao patriotismo argentino pela aliança bastarda com o Brasil".

FOLHA - Como a sra. analisa os novos estudos sobre a guerra e suas repercussões?
BREZZO - Uma observação cuidadosa do movimento intelectual sobre o assunto, neste início do século 21, mostra que, apesar das controvérsias e discussões, das querelas e duelos retóricos e de se ter escrito sobre o tema grande quantidade de livros, a Guerra da Tríplice Aliança continua sendo objeto de pesquisas não só por parte de historiadores dos quatro países que nela atuaram, mas também por pesquisadores de outros lugares -não só no resto da América Latina, mas também nos EUA e na Europa. Uma prova disso são os encontros internacionais sobre a Guerra do Paraguai realizados recentemente em Paris, em Montevidéu e, agora, em Buenos Aires. Nos últimos anos, publicou-se mais de uma dezena de livros que abordam tanto o desenvolvimento militar da guerra quanto aspectos e personagens vinculados diretamente a ela. O resultado é promissor: nas entrelinhas dessa produção recente se percebe o impulso de historiar a guerra de modo novo, que o diferencia das interpretações que nos ofereceram as diversas reconstruções, reinterpretações feitas desde finais do século 19 sobre o tema. Essa produção recente é definida, a meu ver, ao menos por três características: o esforço de superar uma interpretação nacionalista do acontecimento bélico; a inclusão de assuntos considerados tabus, não abordados em trabalhos anteriores; a presença de estudos que mostram a conexão entre a guerra e a cultura.

Francisco Doratioto é professor de história na Universidade de Brasília.

[Folha de São Paulo, 16/11/2008]

Do the Evolution...



Pearl JamDo the Evolution, do álbum Yield (1998).

Números que falam

Clóvis Rossi

Zander Navarro, notável acadêmico, hoje na universidade britânica de Sussex, manda e-mail com o que chama de "ilustração dramática" do "ritmo desenfreado de apropriação da riqueza nas últimas décadas, o que gerou aumento na desigualdade".
Alguns números: 1 - A renda dos 1.125 bilionários do planeta (US$ 4,4 trilhões) supera a renda somada de metade da população adulta do planeta. Se se quiser comparar com o Brasil, 1.125 bilionários têm uma renda que é quatro vezes tudo o que 180 milhões de brasileiros produzem de bens e serviços.
2 - Segundo o Instituto para Estudos de Política, os executivos-chefes das 500 maiores corporações dos EUA ganharam em 2007, em média, US$ 10,5 milhões, 344 vezes o pagamento do trabalhador norte-americano típico.
Já os gerentes dos 50 fundos de hedge e de "private equity" receberam cada um US$ 588 milhões, mais do que 19 mil vezes o salário-tipo do norte-americano.
3 - Em agosto de 2008, a Exxon, a maior companhia do planeta, registrava lucros recordes à taxa de US$ 90 mil POR MINUTO. Os rendimentos do Wal-Mart batiam, em 2007, o produto nacional bruto da Grécia; os da Toyota superavam o da Venezuela.
Não pense que o Brasil escapa, não. Por muito que o governo cultive a lenda da queda da desigualdade, o Ipea acaba de divulgar estudo mostrando que só em 2011 o rendimento do trabalho voltará a ter a participação na riqueza nacional que tinha em 1990 (45,4%).
Mesmo que volte, continuará atrás do capital, embora o número de capitalistas seja obviamente bem inferior ao de assalariados.
No governo Lula, aliás, a queda da participação do trabalho no bolo da riqueza nacional acentuou-se até 2004, só começando a se recuperar a partir de 2005.
Todos esses números dispensam opinião. Falam sozinhos.

[Folha de São Paulo, 13/11/2008]

Do Diplo...

TERREMOTO FINANCEIRA
Reflexões de outubro
A intervenção de grandes potências manteve em funcionamento as funções vitais do sistema, mas não pode impedir o efeito contágio da crise. Turbulências sociais regressivas poderão ocorrer na Europa do Leste, Ásia Central e África - onde assumiriam formas dramáticas
José Luís Fiori - [clique aqui para ler]


CIVILIZAÇÕES
Para uma retomada da razão no mundo árabe-islâmico
Na Espanha islâmica do século 12, marcada por notável desenvolvimento cultural e científico, O filósofo Averróis interpretava Aristóteles, defendia a liberdade da razão e a importância das rupturas. Resgatá-lo pode ser caminho para livrar o Islâ de seu longo culto ao imobilismo.
Rodrigo Novaes de Almeida - [clique aqui para ler]


CRISE FINANCEIRA
Nada será como antes
As instituições do Estado não podem permanecer imóveis diante de uma sociedade em plena mutação e em um mundo globalizado. Torna-se urgente redefinir o papel do Estado que, nos últimos anos, na Europa e América Latina, foi enfraquecido pelo lobby da governança mundial das agências internacionais. O Estado deve se fortalecer para responder aos desafios da crise estrutural deixada pela ideologia neoliberal
Marilza de Melo Foucher - [clique aqui para ler]

Em livro de memórias, diplomata chileno remove as luvas brancas

Neil MacFarquhar, na ONU

Haroldo Muñoz pesou o dilema quando se sentou para escrever sobre seu passado, que incluía percorrer furtivamente Santiago, Chile, com instáveis bananas de dinamite presas ao seu peito, preparando uma insurreição que nunca se materializou contra o infame golpe militar de 1973.

Nas décadas que se seguiram, Muñoz se tornou não apenas representante permanente do Chile na ONU, mas também chefe do comitê antiterrorismo do Conselho de Segurança. Diplomatas consumados não devem empregar verbos explosivos, muito menos dinamite de fato.

Mas ao escrever "The Dictator's Shadow: Life Under Augusto Pinochet" (a sombra do ditador: a vida sob Augusto Pinochet), um livro de memórias lançado recentemente, o embaixador decidiu que apenas a história completa seria suficiente.

"Naquela época, e é difícil dizer, eu estava pronto para morrer porque estava defendendo um governo constitucional e uma causa", disse Muñoz, 60 anos, em uma entrevista em seu arejado escritório de esquina com vista para o prédio da ONU e o Rio Leste. "Esta é a minha vida, e um tempo em que todos estavam loucos no mundo."

Ele superou sua relutância inicial em escrever o livro, ele disse, quando percebeu que Pinochet afetou toda uma geração no Chile e em todo o mundo - políticos esquerdistas proeminentes e defensores lhe disseram que a luta pelo Chile os inspirou a entrar na vida pública e ainda molda a percepção deles. Foram necessários dois anos de noites e fins de semana escrevendo para conclusão do trabalho.

Além disso, Muñoz queria examinar a questão sobre se o milagre econômico do livre mercado do Chile foi realmente fruto do período Pinochet - como ainda afirmam os defensores de Pinochet - ou se poderia ter ocorrido sem um regime brutalmente anti-socialista.

Apesar de Pinochet ter adotado políticas de livre mercado inspiradas pelos "meninos de Chicago", jovens discípulos chilenos de Milton Friedman e da Escola de Chicago de economia, o ditador foi forçado a recuar e até mesmo nacionalizar grande parte do setor bancário com um resgate de US$ 7 bilhões, no início dos anos 80.

Foi apenas após a derrota de Pinochet em um plebiscito de 1988 e o estabelecimento da democracia que o verdadeiro boom econômico ocorreu, argumenta Muñoz no livro, com o nível de pobreza no Chile caindo de 40% em 1990 para 13,7% em 2007.

Mas Patricio Navia, que leciona estudos latino-americanos na Universidade de Nova York, diz que o livro minimiza o quanto o Chile moderno é um fruto daquilo que Pinochet forjou. "O Chile atual é muito mais o que Pinochet tinha em mente do que o que Allende tinha em mente", ele disse, se referindo a Salvador Allende, o presidente socialista do Chile que foi derrubado no golpe de 1973.

Paul E. Sigmund, um professor emérito de Princeton e um especialista em política chilena, disse que o maior valor do livro está em suas descrições detalhadas das lutas políticas da era Pinochet. "Ele é uma combinação notável de ativista político e observador político", disse Sigmund a respeito do embaixador.

No Chile, Muñoz tem a reputação de ser algo como um forasteiro reservado, em parte por ter passado grande parte do tempo distante nos vários postos diplomáticos, em parte por causa de suas origens humildes. Ele cresceu em um bairro operário de Santiago, onde seu pai era um pequeno comerciante que não concluiu o colégio.

Muñoz, o primeiro em sua família a cursar uma faculdade, obteve uma bolsa da Universidade Estadual de Nova York, em Oswego, em 1967. Ele nunca tinha ouvido falar dela, mas ao olhar para a minúscula versão do Estado de Nova York descrita em um mapa-múndi, ele imaginou que Oswego fosse um subúrbio de Manhattan, talvez a uma hora de distância da cidade cosmopolita de seus sonhos. (Ela fica a 360 quilômetros de distância.)

Ele passou seus anos ao longo do Lago Ontario protestando contra a Guerra do Vietnã e organizando trabalhadores rurais imigrantes. Ele voltou correndo ao Chile após obter seu diploma e se envolveu na efervescência política provocada em 1970, quando Allende foi eleito presidente.

Ele levou consigo sua namorada americana, Pamela Quick, que nunca tinha estado mais longe de sua terra natal do que Montreal. Horas depois do casamento deles em 1972, ele a arrastou para um comício de Allende em um país cada vez mais polarizado. "Minha mãe ainda não me perdoa por isso: 'Como você pode ser tão não-romântico e tão politicamente obcecado?'" disse Muñoz, rindo. "Nós estávamos fazendo a revolução, nós queríamos mudança e não havia tempo a perder."

Apenas 36 pessoas morreram durante o golpe de Pinochet, em setembro de 1973, nota o livro, mas no ano seguinte, esquadrões da morte mataram cerca de 1.900 pessoas enquanto o ditador buscava eliminar todos os inimigos, reais e imaginários. Muñoz se recorda do tempo em que ele e Pamela espiavam com ansiedade pelas cortinas enquanto seus companheiros esquerdistas eram levados pelos capangas de Pinochet. Mas os soldados à procura de Muñoz invadiram a casa errada.

Ele fugiu para a Universidade de Denver para obter um Ph.D. em economia política internacional. Os dois melhores estudantes de cada ano recebiam um estágio no Congresso, e ele compartilhou a honra com Condoleezza Rice. Ele descreveu suas conversas atuais com Rice, a secretária de Estado americana, como estritamente profissionais, mas ele escreve sobre ela como "Condi".

Seus amigos em Nova York descrevem Muñoz - uma figura magra e aristocrática com cabelo grisalho e bigode - como um anfitrião charmoso, sereno, um promotor incansável dos vinhos chilenos e um torcedor fanático de futebol que ainda joga no time diplomático chileno. Diplomatas da ONU de outras missões latino-americanas dizem que ele é um meio-campista hábil e esperto, mas riem de forma abafada pela forma como manda em seu time como se fosse seu técnico. O protocolo não deve ceder, nem no campo.

"É aceitável porque ele é o embaixador jogando entre outros colegas", disse um diplomata latino-americano, seguindo seu próprio protocolo ao exigir anonimato. "Ele nunca é contestado."

Sua única cicatriz física dos anos Pinochet é o dedo médio torto na mão direita, uma lembrança da surra que recebeu quando voltou para casa, após concluir seu pós-graduação. As cicatrizes emocionais estão enterradas mais fundo, disse Muñoz.

"Ele não as exibe para obter solidariedade ou sendo amargo a respeito", disse sir Emyr Jones Parry, um ex-embaixador britânico na ONU. "Eu acho que há uma determinação de aço de que o que veio depois, o processo democrático, precisa ser defendido a todo custo."

Seu apoio ao direito de proteger, ao princípio de que uma nação tem direito de intervir em outra nação para proteger a população civil de genocídio, nem sempre lhe rende apreço entre os embaixadores dos países não alinhados. Mas Muñoz pode ser igualmente crítico dos Estados Unidos. Sem causar surpresa, Muñoz tem algumas palavras duras em seu livro para Henry A. Kissinger, o ex-secretário de Estado, do qual se queixa de ter encorajado a derrubada de Allende e feito vista grossa para o banho de sangue que se seguiu.

O livro de memórias sobre Pinochet não é o único que está sendo lançado por Muñoz. Ele também escreveu uma crítica à política americana no Iraque, chamada "A Solitary War" (uma guerra solitária), originalmente publicado em espanhol e extraído de seus dois anos no Conselho de Segurança. O livro principalmente lamenta o fato dos americanos não reconhecerem o valor da ONU em garantir aos Estados Unidos um papel central no mundo. Em um raro momento de franqueza não diplomática, ele até mesmo ri do sotaque espanhol do presidente Bush.

Até hoje, disse Muñoz, os chilenos de sua geração não confiam totalmente nos Estados Unidos como uma força em prol da mudança democrática no mundo. A luta para colocar um fim ao governo de Pinochet deixou uma marca permanente neles. "Simboliza um senso de propósito, lutar pelos direitos humanos e se tornar politicamente ativo, nunca esquecendo que a democracia é frágil a menos que possamos fortalecê-la", ele disse. "Esta é uma tarefa diária."

Tradução: George El Khouri Andolfato
[The New York Times, 15/11/2008]

Missão implausível

Michael Soussan

Eu acordei suando frio. Eu costumava pensar que Hollywood exagerava nas cenas pós-pesadelos. Isso foi antes de começar a trabalhar para a maior, mais incoerente e, por fim, mais corrupta operação humanitária da história da ONU. Foi no dia 28 de abril de 2004.

Em meu pesadelo, eu me dirigia a um pódio em uma sala ampla revestida de madeira na qual homens grisalhos usando ternos cinza estavam sentados em um semicírculo, como uma corte de anciãos. O sonho não era inteiramente absurdo. Na vida real, eu deveria testemunhar diante do Comitê de Relações Internacionais do Congresso americano naquela manhã. E deveria falar sobre o escândalo do programa "Alimento por Petróleo", da ONU.

O que tornou este sonho um pesadelo não foi a perspectiva de falar para um público de legisladores escandalizados. Eu não estava sendo levado até eles para ser julgado; fui convidado porque tinha denunciado certos aspectos da fraude. Estava suando por querer dizer algo útil sobre um assunto que confundiu gerações de diplomatas e acadêmicos desde a criação da ONU, em 1945. No sonho, quando eu cheguei ao pódio e abri meus papéis, descobri que tinha apenas um ponto: "A reforma da ONU".

Foi aí que eu acordei.

Criado em 1995 e em operação até 2003, o programa de petróleo por alimentos foi formulado para permitir que Saddam Hussein vendesse petróleo desde que a renda obtida fosse usada para as necessidades humanitárias do povo iraquiano, o que seria garantido pela ONU. Como coordenador do programa, eu era responsável por caçar informações de nove agências da ONU para os relatórios trimestrais do secretário-geral ao Conselho de Segurança.

Infelizmente, nós relutávamos em delatar qualquer fraude pelo regime iraquiano, mesmo quando estava diante de nós. Uma das razões era porque temíamos que o programa, que era a única linha de vida para o povo iraquiano da época, fosse interrompido. Outra, eu acredito, foi que nosso pessoal local no Iraque se sentia intimidado pelo regime de Saddam. O resultado final, entretanto, foi desastroso. Apesar do envolvimento da ONU, vários bilhões de dólares desapareceram enquanto o dinheiro da venda de petróleo era desviado de forma fraudulenta. O petróleo era vendido mais barato para políticos, negociantes e outras figuras estrangeiras influentes, que então o revendiam com lucro instantâneo. As empresas que vendiam bens para o Iraque sob o programa tinham instrução de rechear os contratos e pagar comissões para Saddam e seus colegas.

Nem tínhamos certeza quanto dinheiro estava faltando -as estimativas vão de US$ 1,3 bilhão até US$ 20 bilhões (entre R$ 2,6 bilhões e R$ 40 bilhões). No total, cerca de 2.300 empresas internacionais participaram da fraude e centenas de políticos de alto nível, diplomatas e grandes empresários da Austrália a Moscou. O povo iraquiano tinha sido roubado de uma grande parte do dinheiro que tínhamos garantido que seria para seu bem-estar.

"Opa" era a palavra operacional.

O escândalo do programa Alimento por Petróleo veio à luz quando o jornal iraquiano "Al Mada" (a madrugada) publicou a lista secreta que Saddam Hussein usava para controlar seus agentes corruptos, no dia 25 de janeiro de 2004. Esse documento foi um dos muitos encontrados após a invasão liderada pelos EUA em 2003. Em alguma parte da estrada, nossa missão de "supervisão" virou "negligência".

Quando eu entrei para a ONU, com 24 anos, sabia que a instituição tinha falhas. Mas eu também acreditava que poderia ser reformada, desde que as pessoas tivessem disposição de mudar e, acima de tudo, assumir a responsabilidade por suas ações.

No entanto, na manhã do meu testemunho, meu pesadelo me forçou a admitir uma questão incômoda. Será que a ONU é uma instituição capaz de reforma? No passado, esforços repetidos empacaram.

O escândalo que levou os congressistas a pedirem que "cabeças rolassem" na ONU teve menos a ver com o fato da corrupção em si do que com a falta de disposição da comunidade internacional de admitir que tinha ocorrido. E essa relutância nasceu da realização que ninguém se importava suficientemente com o bem-estar dos civis iraquianos para confrontar a corrupção crescente.

Eu me perguntava: seria o desafio realmente reformar ONU? Ou talvez fosse mais produtivo reformar nossas expectativas em relação a ela?

Franklin Roosevelt cunhou o termo "Nações Unidas" em 1942 e, depois da Segunda Guerra mundial, os EUA procuraram dar nova vida à idéia de uma organização mundial dedicada à preservação da paz. A aliança de guerra foi então transformada em uma instituição permanente -mas expandida para incluir todos os Estados independentes. Sua ambição era ser mais eficaz do que a Liga das Nações, que tinha desbotado e se tornado irrelevante diante da agressão fascista dos anos 30, e o Conserto da Europa, que seguiu as guerras napoleônicas devastadoras.

O Concerto, a Liga e a ONU eram intelectualmente enraizados na visão de Immanuel Kant, expressada em seu ensaio de 1795, "Paz Perpétua". A visão de Kant era um sistema internacional no qual Estados independentes, democráticos e responsáveis uniam-se e aderiam às regras para uma resolução pacífica de seus conflitos.

No entanto, em tentativas de replicar a visão de Kant em uma escala global, os criadores da Liga e da ONU se afastaram do plano original em um aspecto crucial: nos altos padrões para associação. No modelo de Kant, somente repúblicas democráticas poderiam se inscrever. Em vez disso, os arquitetos da ONU, desejando fazer um projeto verdadeiramente "universal", decidiram que qualquer nação independente deveria ser admitida, independente do estilo de governo.

Essa decisão é compreensível dado o contexto histórico. Os fundadores da ONU olharam para um mundo no qual os poderes políticos -mesmo que fossem nazistas ou poderes coloniais europeus- dominaram e algumas vezes tiranizaram os pequenos ou menos desenvolvidos. De fato, a descolonização deu à ONU sua primeira e mais bem sucedida missão. No entanto, essa política de admissão explica muitas das razões pelas quais a ONU tantas vezes não consegue cumprir seus próprios ideais.

Algumas vezes, apesar disso, os esforços de idealistas esperançosos fazem a diferença. É o caso das agências humanitárias como a Unicef ou o Programa de Alimento Mundial, que salvam vidas todos os dias. Mas essa defasagem entre a missão teórica central da ONU e sua capacidade de desempenho é problemática.

Foi isso que decidi dizer ao Congresso naquela manhã. E ao fazê-lo, fiz papel de tolo. As audiências eram, afinal, um confronto entre os críticos e os apologistas da ONU.

Terminei meu testemunho dizendo: "No final deste período, que custou um sério preço para a ONU, há uma oportunidade histórica de usar os erros e iniciar um verdadeiro debate sobre o futuro da organização e os princípios que devem guiar suas ações."

Um estranho silêncio se seguiu. Depois dos congressistas sussurrarem uns aos outros, um recesso foi convocado. Quando nos reencontramos, uma hora depois, a guerra entre os congressistas a favor e contra a ONU foi resumida. Eles não tinham perguntas para mim. Claramente, eu não tinha compreendido o ponto da reunião.

Talvez um dia o mundo esteja pronto para a aplicação global da visão de Kant, não temos desculpas hoje para fingir, ou esperar, que sua visão de paz democrática possa ser aplicada globalmente com sucesso.

Mas isso não absolve as democracias do mundo da responsabilidade de resolver seus problemas enquanto isso. O discurso de Barack Obama em Berlim exortando a necessidade de fortalecer a aliança democrática é consistente com a visão original de Kant. A escolha está entre tentar consertar uma instituição calcificada, antiquada e exageradamente ambiciosa ou começar a trabalhar em uma nova.

(O livro de Michael Soussan "Backstabbing for Beginners" será lançado este mês).

Tradução: Deborah Weinberg
[Prospect, 13/11/2008]

As bombas atômicas desaparecidas da Guerra Fria

Em um desastre de avião em 1968, as forças armadas dos Estados Unidos perderam uma bomba atômica no gelo ártico da Groenlândia. Mas este não foi um caso isolado. Acredita-se que até 50 ogivas nucleares tenham desaparecido durante a Guerra Fria, e nem todas elas estão em áreas desabitadas

Benjamin Maack

Naquele ano, ainda era meio cedo para nadar no Mediterrâneo. Mas no início de março de 1966, Manuel Fraga Iribarne, que na época era o ministro espanhol das Informações, e Biddle Duke, o embaixador norte-americano em Madri, juntamente com as respectivas famílias, mergulharam nas águas geladas da Costa Cálida. Jornalistas de todo o mundo reuniram-se na praia da pequena vila de Palomares para noticiar o banho de mar de primavera das duas famílias. Tal interesse seria surpreendente, se não fosse pelo fato de uma bomba de hidrogênio encontrar-se no fundo do oceano a apenas alguns quilômetros dali. Uma bomba dotada de uma potência explosiva mais de mil vezes superior a daquela que arrasou Hiroshima.

Apenas algumas semanas antes, em 17 de janeiro de 1966, o pior acidente com arma nuclear de toda a Guerra Fria tinha ocorrido na costa sudeste da Espanha. Durante uma manobra de abastecimento aéreo, um bombardeio B-52 e um avião-tanque KC-135 norte-americanos chocaram-se em pleno ar a uma altitude de 9.000 metros, e ambos os aviões explodiram em uma gigantesca bola de fogo sobre Palomares. Havia quatro bombas de hidrogênio no B-52. Uma caiu, intacta, em um campo de tomates perto da vila. Em duas outras o disparador não nuclear detonou, fazendo com que fragmentos e poeira de plutônio caíssem na área onde ocorreu o impacto. A quarta bomba caiu no mar, em algum lugar ao largo da costa, e ficou enterrada em vários metros de lodo. Mas onde exatamente ela caiu?

Nas semanas que se seguiram ao acidente, Palomares parecia o cenário de um filme sobre o apocalipse. Na terra, homens usando roupas de proteção e máscaras azuis manuseavam contadores Geiger para procurar indícios de radiação no solo. Os campos de cultivo foram interditados, e uma safra inteira de tomates apodreceu na plantação. O governo dos Estados Unidos escavou os campos e removeu 1.400 toneladas de terra. O solo contaminado foi transportado para os Estados Unidos para ser eliminado. Dezenas de navios de guerra norte-americanos patrulharam a área litorânea na qual um pescador afirmou ter visto a bomba cair na água. A recuperação da bomba nuclear, que estava em uma profundidade de 800 metros, demorou 81 dias. Expressando perplexidade com os acontecimentos na Espanha, um artigo do diário alemão de Hamburgo, "Abendlatt", disse o seguinte: "Mais do que qualquer cenário hipotético, este incidente deixa claro o que significa atualmente 'viver com a bomba'".

A bomba atômica perdida da Groenlândia
A possibilidade de haver uma bomba atômica perdida, e possivelmente danificada, em algum ponto do fundo do mar é realmente terrível. Atualmente a BBC está provocando um rebuliço com o relato da perda de uma bomba atômica norte-americana em 1968. Quando um bombardeiro norte-americano B-52 caiu no gelo ao largo da costa da Groenlândia, os explosivos convencionais das suas bombas detonaram, fazendo com que uma grande área ficasse contaminada com radiação de plutônio. Mas o que o governo dos Estados Unidos manteve em segredo durante décadas foi que o trabalho de reconstrução feito com os componentes das bombas encontrados no local revelou que faltava uma ogiva nuclear. Ao que parece ela perfurou o gelo e submergiu na Baía Estrela do Norte. A bomba jamais foi encontrada.

"A perda de bombas atômicas não é um acontecimento tão raro quanto seria de se esperar. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos confirmou a perda de 11 bombas atômicas", afirma Otfried Nassauer, especialistas em armamentos nucleares e diretor do Centro de Informações sobre Segurança Transatlântica, em Berlim. "Acredita-se que até 50 armas nucleares em todo o mundo tenham sido perdidas durante a Guerra Fria".

A maioria dessas armas extremamente perigosas ainda está no fundo do oceano. Em abril de 1989, um incêndio a bordo do submarino nuclear russo Komsomolez fez com que a embarcação afundasse em um local do Atlântico Norte cuja profundidade é de 1.700 metros, levando consigo dois torpedos e as suas ogivas nucleares. Em 22 de maio de 1968, um outro submarino nuclear, o USS Scorpion, afundou em uma região de 3.300 metros de profundidade cerca de 320 milhas náuticas ao sul do arquipélago dos Açores. Havia duas ogivas nucleares a bordo. Devido às grandes profundidades, nem os armamentos nem os reatores nucleares desses submarinos foram recuperados.

"Flecha quebrada" absurda
Um número muito maior de bombas atômicas desapareceu em desastres de avião sobre o mar aberto. "No período inicial da Guerra Fria, as aeronaves não contavam com autonomia suficiente para atravessar o Oceano Atlântico sem reabastecimento", explica Nassauer, especialista em armas nucleares. "Alguns bombardeiros colidiram com os aviões de abastecimento, e outros simplesmente não conseguiram fazer contato com estes aviões-tanques, e, após ficarem sem combustível, caíram no mar".

Entre o final da década de 1950 e meados da de 1960, o período mais crítico da Guerra Fria, bombardeiros norte-americanos armados com bombas nucleares estavam no ar 24 horas por dia, 365 dias por ano. As quatro rotas principais destas aeronaves passavam sobre a Groenlândia, a Espanha e o Mediterrâneo, o Japão e o Alasca. A freqüência dos acidentes só diminuiu quando os bombardeiros tornaram-se capazes de atravessar o Atlântico ou o Pacífico sem reabastecimento.

Provavelmente a mais absurda "flecha quebrada" ("broken arrow", o código norte-americano para acidentes envolvendo armas nucleares) ocorreu em 5 de dezembro de 1965, a bordo do USS Ticonderoga. O porta-aviões ia do Vietnã para Yokosuka, no Japão, quando um caça-bombardeiro que saía de um dos gigantescos elevadores que transportam as aeronaves do hangar interno ao convés da embarcação simplesmente mergulhou no mar. O piloto, o avião e a bomba nuclear que estava a bordo afundaram a uma profundidade de cinco quilômetros e jamais foram encontrados.

Esse incidente também foi mantido em segredo durante vários, anos, em parte porque, quando foi finalmente divulgado publicamente em 1981, ele provou que os norte-americanos mantinham mesmo armas nucleares no Vietnã. O episódio revelou também que os Estados Unidos violaram um tratado com o Japão, segundo o qual os norte-americanos concordaram em não trazer nenhuma arma nuclear para o território japonês.

Fusíveis queimados
A maneira displicente como os Estados Unidos lidam com os seus brinquedos mais perigosos não se limita a países estrangeiros. Na verdade, sete da 11 ogivas nucleares que estão oficialmente desaparecidas foram perdidas em território dos Estados Unidos. Em 5 de fevereiro de 1958, o piloto de bombardeiro Howard Richardson teve que lançar para fora da aeronave a bomba de hidrogênio que levava após ter se chocado com um avião de caça. A seguir, a bomba desapareceu nas águas rasas de Wassaw Sound, a cerca de 20 quilômetros de Savannah, na Geórgia, uma cidade de 100 mil habitantes. Richardson, um piloto experiente, mal conseguiu aterrissar a sua aeronave na pista próxima da Base de Hunter, do Exército dos Estados Unidos.

A tripulação do B-52 que explodiu em 24 de janeiro de 1961 devido a um sistema de combustível defeituoso teve menos sorte. Antes da aeronave partir-se, os homens conseguiram lançar para fora a carga perigosa. Uma das duas bombas de hidrogênio caiu de pára-quedas, sobre uma árvore, mas a outra foi parar em uma área pantanosa perto da pequena cidade de Goldsboro, na Carolina do Norte, onde afundou no lodo até uma profundidade estimada em 50 metros. A bomba permanece até hoje lá. O local do acidente continua sendo uma zona militar restrita.

Mas o que tornou este incidente famoso foi a bomba que caiu na árvore. Cinco dos seus seis fusíveis projetados para impedir uma detonação falharam, e apenas o último evitou uma explosão nuclear. Após este quase desastre, os sistemas de segurança nas armas nucleares dos Estados Unidos foram revistos, e Washington pediu à União Soviética que fizesse o mesmo.

Terroristas poderiam encontrar uma bomba nuclear?
Até hoje, estes dois incidentes são um tópico de muita polêmica entre especialistas, oficiais militares, adeptos das teorias conspiratórias e cidadãos preocupados de Savannah e de Goldsboro. Será que as duas bombas ainda representam perigo para os moradores dessas cidades? "É muito improvável que as bombas que estão no fundo do oceano explodam", diz Nassauer. "No entanto, talvez o risco seja maior no caso das bombas perdidas em terra. Mas praticamente não se sabe nada a respeito da probabilidade de tais bombas explodirem espontaneamente".

Um temor bem diferente surgiu após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. O que aconteceria se terroristas adquirissem uma das bombas perdidas? Segundo Nassauer, este é um medo sem fundamente, já que nem as forças armadas, após utilizarem todos os meios de que dispõem, conseguiram recuperar as bombas. "Várias dessas armas estão em locais que ainda são completamente inacessíveis com os recursos disponíveis atualmente", diz Nassauer. Os perigos reais residem na área em torno do local de um acidente, e entre eles está a possibilidade de explosão no momento do acidente e os efeitos da corrosão, que poderiam permitir o vazamento de radioatividade no decorrer das décadas.

Em Palomares, por exemplo, o pesadelo continua mais de quatro décadas depois. Depois do acidente essa cidadezinha sonolenta tornou-se parte da próspera indústria turística da região. Mas, em 2004, duas áreas contendo solo radioativo foram descobertas no local de futuros campos de golfe e hotéis de luxo. Estudos amplos do solo revelaram que outras áreas continuam contaminadas. O governo espanhol confiscou a terra afetada, e em 2009 tropas norte-americanas serão novamente enviadas para descontaminar a área. Mais de 40 anos após a primeira bomba ter caído em Palomares, milhares de toneladas de terra contaminada serão mais uma vez transportadas para os Estados Unidos.

Tradução: UOL
[Der Spiegel, 15/11/2008]

Casas Bahia sentem-se em casa na favela

Jonathan Wheatley

A música ao vivo é do grupo Exaltasamba, e, ao estrondar a sua voz nas pilhas de auto-falantes, o cantor faz com que as centenas de pessoas em frente à loja dancem, pulem e agitem os braços como se não houvesse um amanhã.

São 9h30, e o show foi organizado para a inauguração de uma nova unidade, em São Paulo, das Casas Bahia, uma rede varejista brasileira que vende móveis e eletrodomésticos.

A loja é uma das 550 da rede no Brasil e a primeira a ser inaugurada em uma favela - grandes aglomerados de barracos que surgem onde quer que haja algum espaço em torno das cidades do país.

"Os caminhões de entrega das Casa Bahia vão e vem todos os dias da semana", diz Carlos de Assis Silva, um cliente. Ele comprou a sua televisão, a maior parte da mobília e até uma serra de cortar pedras para o seu trabalho naquela que antes era a Casas Bahia mais próxima, no bairro de baixa classe média de Santo Amaro, que fica a cerca de meia hora de ônibus.

As Casas Bahia prosperam com pessoas como Silva. Embora os seus produtos não sejam mais baratos do que aqueles vendidos por muitas outras lojas que têm como alvo clientes mais ricos, ela é altamente popular entre os pobres porque permite que paguem em pequenas prestações - e com taxas de juros pesadas, que ficam, em média, em 4,5% ao mês, ou cerca de 70% ao ano. Os clientes recebem um carnê de pagamento e têm de ir até à loja para pagar as prestações. Isto faz com que eles continuem voltando e, geralmente, comprando - a menos que façam parte do grupo de 10% que atrasa os pagamentos.

A menção à crise econômica provoca sorrisos entre os consumidores que entram em grande quantidade quando as portas da loja se abrem. As Casas Bahia não preveêm nenhuma queda imediata das vendas. A rede espera que as vendas subam dos R$ 13 bilhões (? 4,5 bilhões, US$ 5,6 bilhões, £ 3,8 bilhões) registrados no ano passado para R$ 14 bilhões neste ano. A rede investiu R$ 2 milhões para abrir a nova loja. Outras 30 serão inauguradas no ano que vem, incluindo outras em favelas.

Silva mora em frente à loja, do outro lado da rua, de forma que agora poderá pagar as prestações restantes com mais facilidade. Ele é uma das 80 mil pessoas que moram em Paraisópolis, uma das maiores favelas brasileiras. O gerente da nova loja diz que 3.000 pessoas inscreveram-se para as 50 vagas de trabalho oferecidas. Destas, 50 - na verdade, todas, exceto as de gerência - foram preenchidas por moradores locais.

Isso será importante para construir um bom relacionamento com a comunidade. Em sua maioria as favelas são áreas terminantemente proibidas para gente de fora, sendo dominadas freqüentemente por traficantes de drogas e outros criminosos.

Paraisópolis não é muito diferente. Nos últimos anos, muitas áreas da favela passaram a contar com água encanada e rede de esgoto. As casas são vendidas por quantias que variam entre R$15 mil e R$ 400 mil, o que significa que muitos dos seus habitantes encaixam-se na crescente classe média brasileira.

Um jovem na multidão, que admite alegremente estar "ligado ao Paralelo" (o PCC, a organização criminosa que por um curto período de 2006 aterrorizou São Paulo com bombas e tiros), explica como o papel do crime organizado mudou nos últimos anos.

"Na década de 1990, quem tivesse negócios aqui tinha que pagar", explica ele. A favela era dominada por uma família do nordeste do Brasil. Eles extorquiam R$ 15 mil por ano, por exemplo, de quem tivesse um serviço de transporte com microônibus entre a favela e outras partes da cidade.

Na virada da década, o PCC entrou em cena. "Eles só ganham dinheiro com drogas", diz o jovem - embora nesta semana o PCC tenha também roubado bancos e explodido um posto policial, roubando drogas e armas. O PCC mantém-se popular por distribuir comida gratuitamente.

No dia nacional das crianças, no mês passado, a organização forneceu 12 mil brinquedos. "A extorsão não faz parte da filosofia do grupo. Se você quiser montar um negócio aqui, tudo bem", explica o homem. Os criminosos são menos tolerantes em relação aos ex-chefes de quadrilhas da área. Os poucos que sobreviveram à chegada do PCC fugiram rapidamente.

Como os negócios podem funcionar sem serem incomodados, várias outras redes preparam-se para juntar-se às Casas Bahia. Quem também estava na inauguração era Fauze Fares, cujo primo é dono de uma rede rival, especializada em móveis - uma das várias que procuram locais para se instalar em Paraisópolis.

"Nos últimos seis anos essas lojas têm se deslocado para além dos centros tradicionais da cidade, rumo às partes mais pobres", diz ele. "Esses indivíduos são grandes consumidores".

Silva afirma que o seu salário mensal fica geralmente entre R$ 1.800 e R$ 2.200. Muitos moradores locais trabalham em outras regiões em empregos de baixa qualificação, mas, segundo ele, outros abriram negócios em Paraisópolis, tornaram-se ricos e, ou mudaram-se ou construíram casas maiores na favela.

"As Casas Bahia demonstraram grande esperteza ao inaugurar uma loja aqui", diz Tânia Ribeiro de Barros, uma professora de inglês que faz trabalho voluntário em Paraisópolis. "Os moradores locais compram bastante, mas muitos não pagam. Agora a loja poderá vigiar mais de perto quem não paga as prestações".

Tradução: UOL
[Financial Times, 14/11/2008]

Pessimismo?

A casa branca

Ruy Castro

Em 1938, Billie Holiday, cantora negra americana, não era admitida nos hotéis que hospedavam seus colegas da orquestra branca de Artie Shaw. O liberal Shaw armava um bode na recepção e, se Billie não pudesse ficar com eles, marchavam todos para fora da espelunca e da cidade.
Na década de 40, Duke Ellington, já tido como um dos homens mais elegantes da América, também só podia hospedar-se com sua orquestra nos guetos das cidades em que se apresentavam. Outra cantora negra, Lena Horne, era um grande nome da MGM, mas, de tão perigosamente linda, sua parte nos filmes limitava-se a um número musical -que pudesse ser cortado nos Estados racistas, sem prejuízo da trama.
Em 1956, o programa semanal de Nat "King" Cole na TV americana nunca atraiu um patrocinador nacional, e a NBC só o manteve no ar durante 64 semanas porque astros como Frank Sinatra, Peggy Lee e Tony Bennett ofereciam-se para cantar nele quase de graça. Os empresários temiam que seus produtos fossem boicotados se patrocinassem o programa de um negro.
Nessa época, um hotel de Las Vegas mandou esvaziar e lavar a piscina em que a estrela de sua boate, a maravilhosa Dorothy Dandridge, nadara naquele dia. Dorothy não tinha quem a defendesse da ofensa, porque seu namorado branco, o cineasta Otto Preminger, não a assumia publicamente.
Em 1960, ao lado de Sinatra e Dean Martin, Sammy Davis Jr. trabalhou duro na campanha de John Kennedy à Presidência. Com Kennedy eleito, Sammy Davis foi "desconvidado" para a festa de posse na Casa Branca por estar namorando uma das mulheres mais desejadas do país, a louríssima Kim Novak.
Daí que, para os americanos, a presença de Barack Obama e sua família na Casa Branca é - como se diz mesmo? - emblemática.

[Folha de São Paulo, 08/11/2008]

"A mudança chegou aos Estados Unidos"?

YES!

O mundo respirou história nesta semana

Renato Janine Ribeiro

A MUDANÇA chegou aos Estados Unidos, disse Obama, na primeira frase de efeito de um discurso repleto de expressões bem escolhidas para entusiasmar o povo.
Quer dizer, a mudança veio de fora.
Quer dizer, os Estados Unidos estavam atrasados. Bush representava o atraso. A Europa, outros países, inclusive o nosso, escolheram a mudança antes deles. No século 19, a liberdade estendia seus braços para acolher no porto de Nova York os mal-amados do velho mundo. A "América" era pioneira. Hoje, com a eleição de seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos recebem uma mudança cujos ventos já sopravam em outras partes.
Mais para o fim do discurso, porém, Obama retoma a crença norte-americana de que seu país é líder do mundo, um "povo eleito" moderno: "Esse é o verdadeiro talento da América -a América é capaz de mudar". Sim, a mudança tardou, mas, quando chega lá, o mundo todo muda. A mudança começou em outros países, mas é quando vence na "América" que ela ganha escala e se torna mundial.
Bush, após o 11 de Setembro, para vencer a guerra "contra o terror", rogou a seu povo que consumisse mais, não menos. O usual nas guerras é pedir poupança e sacrifícios, canhões em vez de manteiga. Bush prometeu um Eldorado, só que feito de consumo, e não de valores. Como disse Michael Mandelbaum, seu governo foi um caso único de transferência de riqueza do futuro para o presente. Bush negou tudo o que é positivo nos próprios valores conservadores -austeridade, comedimento, poupança. Dilapidou dinheiro, sangue, fé e esperança. Gastou o futuro. Hipotecou até as vidas de quem ainda não nasceu.
Não sabemos como serão os próximos anos. Obama não prometeu maravilhas. Alertou que haverá atrasos e fracassos. Implicitamente, pregou a poupança, não a dilapidação. E foi depois dessa advertência que desenvolveu sua utopia, sua esperança num país de valores.
Há algo espantoso nisso. Com o avanço da campanha, a oposição entre valores da mudança e da esperança e valores da conservação e do medo foi se convertendo numa oposição entre o candidato dos valores e aquele que herdava a falta de valores.
McCain era o único candidato possível para o Partido Republicano justamente por ser o menos bushista dos republicanos. Mesmo assim, não conseguiu encarnar valores em que, seguramente, acredita. Não convenceu.
É curioso que o partido mais liberal, o dos nova-iorquinos afrescalhados que tomam "capuccino" (que George W. Bush condenou quatro anos atrás, porque não seria o da "verdadeira América"), acabasse sendo o único que sustenta valores. Porque o termo "valores" soa, com freqüência, conservador. Mas esse conservadorismo básico, que representa um compromisso com o país, com sua história, nenhum presidente dos Estados Unidos pode dispensar.
A diferença é que justamente o novo, o negro, o jovem, o candidato da internet (não a internet dos negócios, mas a da cidadania), tenha sido quem expressou os valores -e não o herói de guerra, o prisioneiro torturado no Vietnã, a derradeira reserva moral do Partido Republicano.
O simbolismo dessa vitória é duplo.
Está no fato de que os progressistas conquistaram o legado de uma preocupação ética que muitas vezes foi conservadora. As repercussões disso para a ética pública serão importantes. E também está na esperança despertada, na mobilização dos jovens, dos que votaram pela primeira vez, dos excluídos das urnas. Já em 2004 o governador Howard Dean mobilizara os jovens e usara a internet -mas não conseguiu a indicação democrata.
Dessa vez, a estratégia das "grassroots", da base mobilizada, deu certo.
Ora, quem se mexeu pela mudança não ficará parado em casa. Vai continuar participando. Vai exigir de Obama que ele aja. Não é casual a referência do novo presidente a Martin Luther King, e de seus eleitores à grande marcha dos negros em Washington, há 40 anos. É como se, finalmente, eles chegassem lá.
As pessoas respiraram a história.
Podem até se enganar, mas essa sensação se tem poucas vezes na vida -quando se tem. E ela estava presente nos Estados Unidos -e no mundo- nesta semana. Respiremos fundo. Ela pode não durar. Mas, também, pode.

RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Ética na Política", entre outras obras.

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NO!

O dia seguinte não é o bravo mundo novo

José Flávio Sombra Saraiva

A VITÓRIA da mudança foi eficaz bordão eleitoral e eficiente jargão midiático, com impacto avassalador sobre a insegura sociedade norte-americana. A confirmação da vitória acachapante de Obama não pode ser entendida sem a psicologia social do desespero, mais do que do altruísmo político.
Para os cidadãos comuns daquele país, crédulos nos velhos valores dos que fizeram nascer a pátria de Jefferson, embora dependentes hoje da exuberância artificial criada no início do século 21 pela obsessão do ganho fácil, a eleição de Obama veio a calhar.
Emerge a esperança de um bravo mundo novo e de uma nova página da história. Chega o salvador messiânico para restaurar o desígnio americano.
Algo semelhante aconteceu com Roosevelt no século 20.
Tal vetor, que se repete na história norte-americana, foi determinante na eleição de Obama ao assento mais importante da gestão do planeta. As noções de destino e saga desbravadora, em momentos difíceis, presidem a construção da nação de Monroe desde os inícios do século 19.
Mas agora a história é outra. Poucas variáveis sugerem que poderão ocorrer, em curto e médio prazo, mudanças substantivas nos EUA no plano interno e em sua projeção internacional. As determinações estruturais internas e externas à economia, à sociedade e à cultura política norte-americana entravam a vitória da mudança.
Em primeiro lugar, a margem de manobra do presidente que emerge é baixa ante a gigantesca expectativa criada ao seu redor. Obama virou panacéia na mídia norte-americana -também no Brasil. Mas o homem não tem os meios nem a liberdade de ação política de Roosevelt.
Como distinguir o homem Obama e seu poder real dos que o fizeram tão familiar e poderoso? A lista de demandas é incompatível com os meios disponíveis no momento para satisfazer a todos que construíram o totem.
As pressões sindicais, dos usuários de um sistema de saúde caótico e caro, bem como de forças poderosas, como as do complexo militar-tecnológico, sem falar de setores sociais marginais, como os afro-americanos, entre outros, tornarão sua administração difícil. Obama ofereceu uma palavra generosa. Agora, terá que oferecer fatos e resultados.
Em segundo lugar, não há tábua de salvação para uma economia que se fez gastadora depois de uma história bissecular de poupança. A capacidade de gerar riqueza real nova é modesta.
A elevação do capitalismo industrial produtivo na Ásia, ante o fenecer das engenharias dinâmicas do velho capitalismo norte-americano, é um desafio para a retomada da produção, da produtividade e do emprego. Eles lá se fizeram preguiçosos, à espera da especulação proveitosa. Terá Obama a força convocatória e os meios para lançar as bases de um novo capitalismo industrial naquele país?
Em terceiro lugar, não há brechas adicionais no plano internacional disponíveis para Obama. Terá que lidar com o recrudescimento do protecionismo comercial dos seus concidadãos do Partido Democrata, ávidos por manter o status de potência econômica. Há pouca garantia de que se possa avançar a Rodada Doha na administração Obama a partir de janeiro de 2009. É esse um capítulo que exigirá atenção redobrada do governo Lula e dos países de competitividade agrícola superior à dos EUA.
A complexa tomada de decisão das políticas comerciais e externa dos Estados Unidos é outro capítulo de distúrbio iminente para o novo habitante do Salão Oval da Casa Branca. Não é lá que se decide a política comercial, que será entregue a uma Câmara protecionista e ávida pela reinserção soberana dos Estados Unidos. Nem o Senado, por mais democrata que possa ser, acomodará de forma automática as iniciativas do presidente eleito.
Em outras palavras, os espetáculos patrocinados em várias partes do planeta, a envolver a própria África nesse jogo, de júbilo diante da vitória do salvador, cederão em breve a análises mais calibradas acerca das possibilidades. Sonhar é bom, liberta, reduz o medo. Mas também é arrojado pensar que o dia seguinte não é o bravo mundo novo, nem Obama é seu rei.

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA, 48, doutor em história pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília). É autor, entre outras obras, de "Relações Internacionais - Dois Séculos de História".

[Folha de São Paulo, 08/11/2008]

Por que a Argentina deixou Maradona experimentar como técnico

Simon Kuper

É claro que a Argentina não deveria ter deixado Maradona ser o técnico de sua seleção de futebol. Ele não vai durar muito na função. Ele já tem problemas demais para sair da cama, quanto mais para comparecer ao jogo contra a Escócia em Glasgow no dia 19 de novembro. Gordo, fumante e ex-viciado em cocaína com um coração geriátrico, poderá não participar nem mesmo da próxima Copa do Mundo.

Mas tudo isso não tem nada a ver. Uma seleção de futebol não existe apenas para ganhar. Ela também representa a nação. E ninguém no futebol encarna melhor seu país e seus torcedores do que Maradona.

Isso faz parte do gênio dele. Eis algumas cenas da vida de Maradona - e de dois filmes recentes sobre ele - que explicam por que a Argentina teve de escolhê-lo.

Cidade do México, 1986: Depois de dois gols lendários que tiraram a Inglaterra da Copa do Mundo, Maradona e seus companheiros fazem piada nos vestiários. Jorge Valdano o provoca: enquanto Maradona estava driblando seis jogadores ingleses, Valdano estava correndo do seu lado pedindo a bola. Por que Maradona não fez um passe?

Sim, diz Maradona, eu estava olhando para você e tinha a intenção de fazer o passe, mas os ingleses ficavam entrando na frente, e de repente eu tinha driblado todos, então eu simplesmente marquei o gol.

Valdano fica perplexo: "Enquanto marcava o gol você também estava olhando para mim? Velho, você está brincando comigo. Isso é impossível". E Hector Enrique diz: "Todos elogiam o gol. Mas depois do passe que eu dei, se ele não tivesse marcado, deveria ser morto!" Todo mundo ri. Como Maradona observa, Enrique tinha feito o passe na metade deles do campo.

É uma cena característica de Maradona: apesar de ter superado todos os seus colegas, ele sempre se sentiu parte da seleção. Quando perguntei a Valdano se ele gostava de Maradona, ele respondeu: "eu amo Maradona.
Sou do país de Maradona."

Buenos Aires, 2004: Maradona está na UTI, com o coração falhando. Há uma multidão de argentinos reunidos na porta do hospital. Eles acham que Maradona vai morrer jovem. É isso que acontece com os heróis
argentinos: Eva Perón, Che Guevara, Carlos Gardel, o cantor Rodrigo.
Na tradição católica, o herói morre para redimir os pecados de seu país.

Assim como Evita, Maradona é um tipo de santo folclórico argentino. No filme "A Estrada para San Diego", de Carlos Sorín, de 2006, um cortador de madeira analfabeto decide que uma arvore caída na floresta parece com Maradona comemorando. Ele esculpe a árvore e a transforma numa estátua de Maradona, e a carrega por toda a Argentina. Algumas pessoas que ele encontra riem dele, dizendo que a estátua não se parece em nada com o craque, mas muitos captam sua qualidade religiosa. "Santa Maradona", diz um motorista de caminhão.

No documentário de Emir Kusturica, "Maradona por Kusturica", multidões se formam em torno do jogador onde quer que ele vá, como se ele fosse uma imagem numa procissão católica. Parece exaustivo, mas Maradona entende a iconografia. Em suas entrevistas com Kusturica, ele usa uma grande cruz de prata e conta como Deus o salvou da UTI.

Qatar, 2005: Maradona e Pelé aparecem no lançamento de alguma coisa.
Depois, escreve James Montague em seu novo livro "When Friday Comes"
("Quando Chega a Sexta-Feira", em português), a multidão invade o palco. Todos ignoram Pelé. Montague escreve: "Tudo o que consigo ver no meio da confusão é o topo do penteado afro desgrenhado de Diego, enterrado num mar de fãs fervorosos". Agustín Pichot, ex-capitão de rúgbi da argentina, explica que as pessoas amam Maradona porque ele é "autêntico". Sentimos que o conhecemos, ele tem falhas, como nós.

Em parte é porque Maradona parece uma pessoa ordinária. Nunca um grande atleta se pareceu menos com um grande atleta. No filme de Sorín, passado no interior da Argentina, vemos pessoas com rostos enrugados em ônibus desconjuntados - uma prostituta, um vendedor de bilhetes de loteria cego - que reconhecem a si mesmos no ex-morador de favela baixinho e gordinho. Ele é o elo que os liga à grandeza.

Alemanha, Copa do Mundo de 2006: Maradona está presente como torcedor. Ele senta nas arquibancadas usando uma réplica da camisa da Argentina, pulando ritmadamente com outros torcedores argentinos. Pelé ou Franz Beckenbauer não fariam isso. Mas Maradona encarna a Argentina.

Cinemas, 2008: O filme de Kusturica é propaganda política para Fidel Castro, Hugo Chavez e Emir Kusturica. Ainda assim ele captura uma verdade sobre Maradona e a Argentina: o jogador vinga as frustrações do país em relação ao seu lugar no mundo. O filme inclui uma versão em desenho animado do gol de Maradona contra a Inglaterra, na qual ele dribla Margaret Thatcher (que é decapitada), uma rainha Elizabeth carregando uma bolsinha de mão, um Tony Blair de chifres que morde o tornozelo de Maradona antes de cair no inferno, e um George W. Bush armado.

Kusturica chama o gol de "um dos raros momentos em que um país com muita dívida no FMI triunfou sobre um dos governantes do mundo". Isso, com certeza, é honra demais para se falar da Inglaterra. Todavia, Maradona e muitos argentinos viveram o gol exatamente assim. Se você quiser entender por que a América Latina está indo para a esquerda política, olhe para Maradona. Ele personifica o ressentimento chavista.

Na última cena do filme de Kusturica, dois músicos de rua argentinos cantam a música popular: "Seu eu fosse Maradona..." De repente Maradona está de pé ao lado deles, e começa a chorar. Ele sabe como os torcedores se sentem. Ele também é um deles. A seleção argentina sempre pertenceu a ele.

Tradução: Eloise De Vylder

[Financial Times, 09/11/2008]