Teoria da Evolução: 150 anos

Teoria da Evolução, uma das idéias mais importantes do pensamento ocidental, nasceu há 150 anos, mas seu real impacto passou despercebido na ocasião.

Quase ninguém notou na hora, mas o mundo mudou no dia 1º de julho de 1858. Há 150 anos, um grupo de naturalistas reunidos na Sociedade Lineana de Londres ouviu a leitura conjunta de três textos. Seus autores eram o galês Alfred Russel Wallace e o inglês Charles Robert Darwin. Os documentos delineavam uma "teoria muito engenhosa" para explicar "o aparecimento e a perpetuação de variedades e formas específicas no nosso planeta". Nascia a teoria da evolução pela seleção natural. Depois dela, o pensamento ocidental e a biologia nunca mais foram os mesmos.
Os membros do clubinho dos naturalistas não se deram conta do tamanho da revolução que testemunhavam. Estavam assoberbados com cinco outros trabalhos lidos na mesma ocasião, entre eles uma carta "sobre a vegetação em Angola" e a descrição de um novo gênero da família das abobrinhas. Questionado sobre o que havia sido publicado naquele ano, Thomas Bell, presidente da Sociedade Lineana, respondeu: "Nada de revolucionário".
Bell se arrependeria de seu julgamento no ano seguinte, quando Darwin detalhou a teoria evolutiva no livro "A Origem das Espécies". Na Inglaterra vitoriana, dominada pelo pensamento cristão, a obra caiu como uma bomba. Nela Darwin sugeria que todos os organismos da Terra, da mais humilde ameba até os seres humanos, descendiam de um único antepassado. Homem e macaco, na imagem mais ilustre, partilhavam um ancestral comum (mais tarde, o bispo de Oxford perguntaria a Thomas Huxley, amigo de Darwin, se ele descendia de um macaco por parte de avô ou de avó).
Mais importante, no entanto, foi a maneira como Darwin e Wallace solucionaram o "problema das espécies". A teoria postulava que a variedade entre os indivíduos numa população surge ao acaso. Indivíduos possuidores de características que os favoreçam na "luta pela sobrevivência" na natureza tenderão a deixar mais descendentes, modificando uma população. O acúmulo dessas modificações ao longo das eras acaba produzindo novas espécies. Não há, portanto, a necessidade de invocar a atuação divina na criação de todas as espécies. A teoria eliminou o sobrenatural da biologia, criando um cisma que se aprofundaria nas décadas posteriores.
No ano que vem, o mundo comemora o "Ano de Darwin", com os 150 anos da "Origem" e o bicentenário do nascimento do naturalista (1809-1888). Mas a revolução darwinista teve seu início de forma acanhada, no "não-evento" científico de julho de 1858 - no qual o próprio Darwin foi um mero coadjuvante.

Teoria está mais jovem do que nunca

Preceitos centrais do darwinimso tornaram-se o eixo de toda pesquisa biomédica moderna

Diz-se que, ao ouvir sobre a teoria de Darwin, uma senhora da sociedade vitoriana resumiu assim seu desconforto: "Vamos torcer para que o Sr. Darwin esteja errado. Mas, se estiver certo, vamos torcer para que essas idéias não se espalhem muito".
Darwin, mais do que ninguém, entendia as implicações desalentadoras de sua teoria para a noção de que os humanos ocupam uma posição especial na natureza. "É como confessar um crime" dizia.
Foram necessários 70 anos para provar que Darwin estivera certo desde o início.Vários remendos foram necessários à teoria evolutiva original. O mais importante deles foi o reconhecimento de outras forças evolutivas além da seleção natural. No que é conhecido como "deriva genética", é amplamente aceito que várias características genéticas podem se disseminar em uma população puramente ao acaso, sem que a seleção natural precise ficar "escrutinando dia e noite cada variação", como escreveu Darwin na "Origem das Espécies".
Curiosamente, há um recente clamor, especialmente nas ciências sociais, de que uma mudança radical nas nossas idéias sobre hereditariedade e evolução se faz mister, frente a supostas descobertas bombásticas na biologia molecular que traem os preceitos "genocêntricos" do darwinismo.
Entre estas, a descrição de que certos traços podem ser herdados de uma geração para outra sem correspondente variação no DNA - fenômeno chamado de "epigenética" -, ou que modificações ou surgimento de certos traços às vezes precedem variação genética nessas populações, violando o preceito de que evolução se dá exclusivamente em variações genéticas preexistentes, randômicas. Acredita-se, por exemplo, que variações genéticas que tornaram humanos adultos tolerantes à lactose podem ter aparecido somente depois de estes terem instituído o consumo de leite, há cerca de 10 mil anos.
Se esses são os melhores argumentos justificando tal revolução conceitual, a cruzada é quixotesca, e o exército, maltrapilho. Esses novos mecanismos e conceitos vêm simplesmente agregar-se a um sem número de outras descobertas, que se tornaram possíveis nas últimas quatro décadas com o advento da biologia molecular.
O verdadeiro testemunho da herança de Charles Darwin pode ser aferido ao andar-se pelos corredores de qualquer departamento de biologia moderno.
Rapidamente se verá que o anseio da senhora inglesa de abafar as idéias sobre evolução não se concretizou. Os preceitos centrais de teoria evolutiva tornaram-se o eixo de virtualmente toda a pesquisa biomédica.
Graças às teorias de genética e evolução de populações, uma nova forma de medicina, chamada farmacogenética ou "medicina individualizada", tem rapidamente se desenvolvido nos últimos anos. Hoje já é possível analisar diferenças genéticas entre pessoas e usar essa informação para escolher que remédios serão mais eficazes e terão menos efeitos colaterais para cada paciente em uma série de doenças.
Evolução e seleção natural são o motivo pelo qual ainda não existe uma cura para a Aids e pelo qual estamos perdendo a guerra contra bactérias resistentes a antibióticos. Mas são também os conceitos que têm nos permitido procurar novas formas de combater essas doenças -por exemplo, tentando entender o que na genética faz com que algumas pessoas que são verdadeiras cartilhas ambulantes de fatores de risco nunca adoecem. Desvendados esses mecanismos, novas estratégias terapêuticas poderão ser desenvolvidas.
A procura das causas genéticas de doenças é hoje pesquisada usando os genomas de múltiplas espécies e procurando trechos de DNA que foram mantidos intactos durante longos períodos evolutivos.
O entendimento de como as proteínas -os produtos dos genes- interagem em redes complexas para desenvolver uma função biológica é também amplamente sustentado pela teoria evolutiva. São novos rearranjos e interações entre proteínas que promovem o aparecimento de "novidades" evolutivas em espécies. Assim, uma esponja-do-mar já tem a maioria dos genes que são responsáveis pela organização do plano corporal humano. Os genes que são usados para formar dentes em peixes foram recrutados para funções diferentes quando nossos ancestrais saíram da água. Esses mesmos genes hoje coordenam a formação de estruturas aparentemente distintas como pele, glândulas mamárias e penas em aves.
Tentar descrever qualquer fenômeno biológico fora da esfera conceitual de evolução de Darwin equivale a conceber personagens sem um enredo que os contextualize e una.


MARCELO NÓBREGA é professor-assistente do Departamento de Genética Humana da Universidade de Chicago, EUA

Por que Darwin rejeitou o design inteligente

Britânico chegou às Galápagos imbuído da mentalidade criacionista, que lhe impediu de enxergar evidências da evolução

U m dos sinais de uma teoria científica verdadeiramente revolucionária é o fato de demorar muito para ser aceita pela maioria das pessoas. Foi apenas recentemente que o Vaticano admitiu ter errado na infame condenação a Galileu, em 1633, por sua defesa da teoria de que a Terra gira em torno do Sol. Do mesmo modo, hoje, 150 anos após primeiro serem publicadas, as teorias de Charles Darwin continuam a suscitar hostilidade em muitos países, devido à rejeição por Darwin da idéia de que a vida manifesta um propósito inteligente.
É irônico o fato de que o próprio Darwin, em certa época, esteve fascinado pela teoria de que todas as espécies surgem em função de um design inteligente -a mesma teoria que, mais tarde, ele procurou eliminar da ciência em seu livro "A Origem das Espécies" (1859).
Popularizada no século 17, essa doutrina buscava unir uma celebração da obra de Deus com o estudo da ciência. Esses argumentos alcançaram seu ápice nos escritos do reverendo William Paley, que expôs suas idéias em "Teologia Natural" (1802). As muitas provas que ele apresentou em favor do design inteligente fascinaram e convenceram o jovem Darwin.
O que desencadeou a dramática mudança de opinião de Darwin em relação à origem das espécies foi a viagem de cinco anos que ele fez em volta ao mundo no navio "HMS Beagle", e, especialmente, sua visita de cinco semanas às ilhas Galápagos em setembro e outubro de 1835. Reza a lenda que Darwin converteu-se à teoria da evolução durante essa visita breve, vivendo algo como um momento "eureca!". A história real da conversão de Darwin, que só se deu um ano e meio mais tarde, após seu retorno à Inglaterra, nos diz muito mais sobre como a ciência é feita de fato, especialmente sobre como a teoria guia a observação e prepara a mente e como é necessária persistência obstinada para transformar teorias controversas em fatos aceitos.
Durante a permanência de Darwin nas Galápagos, a teoria criacionista o preparou para aquilo que ele observou e compreendeu nas ilhas. Essa teoria também ditou o que ele deixou de observar e compreender. Num primeiro momento, ele esforçou-se com diligência para conciliar com o paradigma criacionista as criaturas novas e estranhas que encontrou naquele arquipélago isolado. Segundo essa teoria, diferentes "centros de criação" explicavam por que a flora e a fauna da Terra diferiam de uma região a outra -ou de um continente a outro. Darwin ainda não se dera conta de que uma parcela do planeta tão minúscula quanto o arquipélago de Galápagos poderia ser, ela própria, um "centro de criação".
Certos fatos inesperados relativos a Galápagos solaparam a credibilidade de qualquer explicação criacionista daquilo que Darwin, mais tarde, descreveria como "o mistério dos mistérios -o primeiro surgimento de novos seres nesta terra". Em particular, várias espécies distintas evoluíram ao longo do tempo em cada uma das ilhas do grupo das Galápagos, de acordo com o povoamento dessas ilhas por colonos ocasionais que ali conseguiram chegar desde a América Central ou do Sul. Darwin foi alertado para essa possibilidade pelo vice-governador das ilhas, Nicholas Lawson, que insistiu que "as tartarugas das diferentes ilhas diferem entre elas, e que ele poderá perceber com certeza de que ilha qualquer uma for trazida".
Num primeiro momento, Darwin não deu atenção às observações de Lawson, ainda tendo a mente dominada pela teoria criacionista. Ela dizia que as espécies podem modificar-se, e se modificam, reagindo aos ambientes locais. Como um elástico que resiste ao ser esticado, qualquer modificação do tipo específico e supostamente imutável que fosse verificada entre as variedades era vista como desvio temporário.
Devido à sua visão criacionista, durante sua estadia nas Galápagos, Darwin não coletou um espécime sequer de tartaruga-gigante para finalidades científicas. Em vez disso, as 48 tartarugas capturadas pelo Beagle na ilha de San Cristóbal foram mais tarde comidas por Darwin e seus companheiros de navio, sendo suas carapaças atiradas ao mar.
Essa mesma mentalidade criacionista ajuda a explicar porque, num primeiro momento, Darwin deixou de compreender o mais célebre exemplo das Galápagos da evolução em ação: os famosos tentilhões de Darwin. Quatorze espécies de tentilhões se desenvolveram nas Galápagos a partir da forma ancestral encontrada nas Américas Central e do Sul. Nos últimos 2 milhões de anos, esse processo de evolução resultou numa radiação adaptativa tão impressionante em nichos ecológicos diversos que algumas dessas espécies não se parecem com tentilhões típicos. Num primeiro momento, Darwin pensou que algumas delas nem sequer fossem tentilhões.
O caso dos tentilhões-das-galápagos confundiu Darwin a tal ponto que, no momento em que capturou os pássaros, ele não se deu conta de que todas as espécies eram estreitamente aparentadas ou que o número de espécies em um grupo de aves poderia resultar do fato de elas terem evoluído em ilhas diferentes. Por isso, ele não fez qualquer esforço para classificar suas coleções ornitológicas por ilha -um erro que lamentou sinceramente mais tarde.
Darwin tampouco teve a oportunidade de observar esses tentilhões de maneira suficientemente detalhada para aperceber-se de que os tamanhos e formatos de seus bicos guardavam relação estreita com suas dietas -um "insight" importante que a lenda equivocadamente lhe atribui.
Apesar de ter estado armado de uma teoria inadequada durante sua estadia em Galápagos, Darwin era um naturalista bom demais para não observar que os quatro espécimes de "mockingbirds" que coletou, cada uma de uma ilha diferente, ou eram variedades ou espécies distintas. Não sendo ornitólogo, Darwin não sabia ao certo como interpretar essa anomalia. Em julho de 1836, nove meses após sua visita às Galápagos, ele refletiu sobre o caso dos "mockingbirds" e recordou o que lhe tinha sido dito sobre as tartarugas:
"Quando vejo essas ilhas visíveis umas desde as outras e possuindo apenas uma quantidade escassa de animais, habitadas por essas aves mas ligeiramente distintas em sua estrutura e ocupando o mesmo lugar na natureza, devo suspeitar de que são apenas variedades ... Se existe fundamento para essas observações, então a zoologia dos arquipélagos valerá a pena ser examinada, pois tais fatos enfraqueceriam a estabilidade das espécies."
A chave para interpretar esse trecho célebre -que aventa a revolução darwinista mas em seguida afasta-se dela- está na frase "devo suspeitar de que são apenas variedades", premissa que Darwin compreendia ser plenamente coerente com a teoria criacionista.
O que o impedia de dar o passo crucial da ortodoxia científica para a heterodoxia era a ausência de informações sobre a classificação ornitológica correta, algo que só lhe estaria disponível após seu retorno à Inglaterra.
Darwin retornou à Inglaterra em 2 de outubro de 1836. Três meses depois, deixou suas coleções de aves com John Gould, ornitólogo da Sociedade Zoológica de Londres. Gould imediatamente se deu conta da natureza extraordinária dos espécimes colhidos por Darwin nas Galápagos. Em março de 1837, Gould informou Darwin de que três de seus quatro espécimes de "mockingbird" eram espécies distintas, até então desconhecidas da ciência. Gould também informou a Darwin que sua coleção incluía 13 ou possivelmente 14 espécies de tentilhões muito incomuns. De repente, após as análises taxonômicas de Gould, as Galápagos se haviam convertido num "centro de criação" distinto.
As conclusões de Gould parecem ter deixado Darwin estarrecido. Ele rapidamente se deu conta de que, se Gould estivesse certo, a barreira entre as espécies distintas tinha sido de alguma maneira rompida por esses pássaros, isolados nas diferentes ilhas. A evolução gradual graças ao isolamento geográfico era a única explicação plausível, a não ser que se pensasse que Deus, como um jardineiro obsessivo-compulsivo, tivesse ido de uma ilha a outra no arquipélago, caprichosamente criando espécies separadas mas estreitamente aliadas, com a intenção de ocupar os mesmos nichos ecológicos.
Reforçado por uma perspectiva evolutiva da natureza, Darwin foi capaz de enxergar os tentilhões sob uma ótica radicalmente nova. Apenas agora ele passou a compreender a extensão de seu descuido anterior, quando deixou de rotular por ilha a maior parte das aves que trouxera das Galápagos.
Felizmente, Darwin sabia que três outros colecionadores que tinham viajado no Beagle (o capitão FitzRoy entre eles) também tinham coletado espécimes. E todos esses espécimes tinham sido rotulados segundo a ilha de sua procedência. É sintomático que tenham sido os não-cientistas do Beagle, que não eram movidos por uma teoria, como Darwin, que registraram as evidências científicas que Darwin, partindo de uma abordagem criacionista, havia visto como sendo supérfluas.
Darwin passou a entender que o isolamento geográfico era uma parte crucial da resposta quanto a como as espécies se transformam no decorrer o tempo. Mas o isolamento, por si só, não bastava para explicar as adaptações das espécies a seus ambientes locais.

Malthus explica
Depois de estudar e rejeitar uma série de hipóteses, Darwin, em setembro de 1838, leu por acaso a edição de 1826 de "Ensaio sobre o Princípio da População", de Thomas Malthus. Este argumentava que as populações têm a tendência inata a crescer geometricamente. Na natureza, porém, a oferta de alimentos é limitada, de modo que a maioria da prole não sobrevive, sendo morta por predadores, fome e doenças.
Ao ler o livro de Malthus, Darwin se deu conta imediatamente de que, na eterna luta pela sobrevivência, variações ligeiras benéficas tenderiam a ser naturalmente selecionadas, levando à sobrevivência maior e, com isso, a um aumento nas características adaptativas, do mesmo modo em que o criador de animais domesticados obtém características desejadas selecionando as qualidades valorizadas nos animais. "Aqui, então, finalmente encontrei uma teoria com a qual trabalhar", observou Darwin em sua "Autobiografia". Ali, também, estava uma resposta digna de crédito a William Paley. Darwin percebeu que a seleção natural não era outra coisa senão o "projetista" de Paley.
Olhando através da lente poderosa da evolução pela seleção natural, Darwin então começou a reexaminar as premissas básicas do criacionismo e a comparar as previsões que se fariam com base nessas duas teorias radicalmente distintas.
Quanto mais extenso se tornava seu reestudo, mais ele foi compreendendo que o design inteligente era contradito de maneira avassaladora pelas evidências disponíveis. A reavaliação feita por Darwin atingiu seu ápice 22 anos mais tarde com "Sobre a Origem das Espécies por Meio da Seleção Natural", livro que o próprio Darwin descreveu, corretamente, perto de seu final, como "um só longo argumento". Era igualmente um argumento contra o criacionismo e, especialmente, contra o design inteligente.
As evidências relativas à distribuição geográfica, especialmente das ilhas oceânicas e suas relações biológicas com os continentes mais próximos, desempenham papel substancial no argumento de Darwin.
As ilhas Galápagos, por exemplo, abrigam várias espécies de animais e plantas estreitamente aparentadas com as do vizinho continente americano; no entanto, as características ambientais dessas ilhas não se assemelham em nada às das partes mais próximas do continente, que são tropicais.
Contrastando com isso, o árido ambiente vulcânico das Galápagos se assemelha estreitamente ao das ilhas de Cabo Verde, a 650 km da África. No entanto, a flora e a fauna de Cabo Verde guardam mais semelhança com espécies que vivem no continente africano, não com as das Galápagos. Por que um possível projetista inteligente, indagou Darwin, colocaria dois carimbos criativos completamente diferentes -um africano e outro americano- sobre espécies que vivem em ambientes quase idênticos e ocupam nichos ecológicos semelhantes? Não fazia sentido.
Como Darwin trabalhou durante 20 anos sobre rascunhos da obra que acabaria virando "A Origem das Espécies", ele conseguiu explicar o mundo natural de uma maneira como ninguém nunca fizera antes. Em última análise, o que sua transformação de criacionista em evolucionista revela sobre ela -e sobre a ciência, de modo mais geral- é que a melhor ciência é feita a serviço de uma teoria realmente boa.


FRANK J. SULLOWAY é historiador da ciência, estudioso de Darwin e professor visitante do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Berkeley. Em 1968, refez a viagem do Beagle para produzir um documentário. Este texto foi primeiro publicado, em formato diferente, pela Vintage Books em "Intelligent Thought", editado por John Brockman

[Folha de São Paulo, 29/06/2008]

Melhores do mundo...

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O centenário de Salvador Allende

O significado republicano do centenário de Salvador Allende
No dia 26 de julho de 1908 nasceu em Valparaiso o chileno Salvador Allende, uma das mais importantes lideranças políticas da América Latina.
O seu centenário não pode ser esquecido no Brasil, pois reescrever a sua história significa mais do que a lembraça de uma efeméride da esquerda, mas um conteúdo vivo da memória da região, e a retomada da escrita da História do próprio continente.
Por Oswaldo Munteal, O Globo Online, 26/06/2008 [clique na imagem para ler]

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Chile: Governo reprime nova revolta contra uso de verba pública para educação privada

Tarde de Santiago na última quinta-feira [26/06]. Enquanto no Palácio La Moneda preparavam a abertura da exposição em homenagem ao centenário de Salvador Allende (1908-1973), ouviam-se sirenes de carros da polícia ali perto, onde ficam algumas das principais faculdades e colégios públicos.
Era mais um round dos confrontos entre estudantes universitários e secundaristas contra a lei de reforma educacional proposta pelo governo -e já aprovada na Câmara-, que consideram uma maquiagem na legislação da ditadura.
Os enfrentamentos aconteciam um dia após 4.500 estudantes marcharem na capital, reprimidos pelos truculentos carabineiros, a polícia militarizada, que os dispersava com jato de água e gás lacrimogêneo.
No fim de maio de 2006, menos de dois meses depois do início do governo Bachelet, os secundaristas protagonizaram a maior mobilização desde o fim da ditadura em 1990, imediatamente batizada com simpatia de "rebelião dos pingüins", por causa da gravata do uniforme.
O governo criou uma comissão, com participação dos alunos, para discutir a nova LGE (Lei Geral de Educação). Os estudantes deixaram a instância alegando não serem ouvidos.
O tema de fundo é o repasse de recursos estatais a administradores privados de colégios, que podem cobrar uma pequena soma ou nada dos alunos que acolhem. Além disso, os colégios possuem critérios próprios de seleção.
Os estudantes, apoiados pelo sindicatos dos professores, exigem que a subvenção seja eliminada e que o país priorize a educação pública.
Com divisões na própria base e sem maioria no Congresso, o governo negociou com a direita, defensora das subvenções, e passou a lei na Câmara. Falta ainda o Senado.
A nova LGE não elimina o repasse, mas aumenta a fiscalização da educação sob gerência privada e acaba com ao processo de seleção nesses colégios.
Segundo o jornal "La Nación", o governo repassa anualmente US$ 3 bilhões à rede de ensino, US$ 1,1 bilhão às escolas públicas e US$ 1,6 bilhão à rede subvencionada, que atende 500 mil alunos a mais do que a primeira. A diferença equivale a 34% a mais.
"Sabemos que no sistema neoliberal é impossível que a educação seja só pública. Mas o que não aceitamos é dar dinheiro aos privados", diz Rubén Azócar, 18, que a Folha reencontrou depois depois de dois anos, igualmente participando de uma assembléia estudantil.
Já fora da escola secundária pública e fazendo cursinho pago -"faltaram só cinco pontos para eu entrar em direito"-, cabelo crescido, Azócar tinha aparência abatida.
"Não nos resta opção a não ser continuar mobilizados. O governo fala de melhora do índice de pobreza, do analfabetismo. Mas é só massificação. Queremos qualidade."

Plebiscito
Alunos e professores preparam um plebiscito como última tentativa de pressionar e parar a tramitação do projeto, já que a volta dos "pingüins" às ruas não tem tanto apelo midiático como ocorreu em 2006.
O senador Juan Pablo Letelier, que pertence à ala à esquerda do Partido Socialista, parou na última quinta-feira para falar com estudantes que protestavam. Depois, falou à Folha. "A lei da ditadura me causa um mal-estar físico. É uma aberração. Mas o que os estudantes não entendem é matemática. Não temos os votos para fazer uma mudança profunda."
O senador é filho do diplomata Orlando Letelier, assassinado em Washington em 1976 pela polícia política do regime de Augusto Pinochet. (FM)

[Folha de São Paulo, 29/06/2008]

Como especuladores estão causando a alta do custo de vida

Após investir em ações de alta tecnologia e financiamento de imóveis por anos, legiões de especuladores agora descobriram commodities como petróleo e gás, trigo e arroz. Seus bilhões estão pressionando os preços a níveis estratosféricos - com sérias conseqüências para a qualidade de vida das pessoas
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Obscura face humana

Historiadora e psicanalista, a francesa Elisabeth Roudinesco narra toda a trajetória dos perversos, cuja existência justifica a distinção entre o bem e o mal, tema de sua mesa na Flip
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Sobre o amanhã que nos espera

Economista e autor francês, Jacques Attali faz previsões alarmantes em Uma Breve História do Futuro
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Democracia argentina ainda é frágil, 25 anos após fim da ditadura

País já está no nono presidente e governo de Cristina Kirchner começa a sofrer efeitos do hiperpresidencialismo

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E D. João resolve... ficar!

Um exercício imaginário sobre os destinos do Brasil caso a Corte não tivesse vindo. Aliás, que Brasil?
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O retorno de Malthus

Os problemas ambientais e a velocidade do crescimento populacional, principalmente nas cidades, trazem de volta a preocupação de quantos seres humanos o planeta é capaz de alimentar
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Após 30 anos, argentinos têm visão crítica da Copa da ditadura

Cercada de suspeita, conquista marcou auge do poder do general Videla, enquanto desaparecidos já chegavam a 20 mil
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Uma visão sobre as guerras do futuro

Blackwater, de Jeremy Scahill, assegura: batalhas serão travadas por contingentes reduzidos e especializados de mercenários
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Um presidente negro que a história esqueceu

Se tivesse nascido uns trinta ou quarenta anos antes, Lobato provavelmente teria sido convidado para fazer parte da Fabian Society, que tinha entre seus membros H. G. Wells e Bernard Shaw, pregava o socialismo científico ou utópico e previa o progresso da humanidade por meio da ciência

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A Revolta dos Pobres

por Márcia Pinheiro e Phydia de Athayde

A falta de alimentos gera protestos e novo embate entre ricos e emergentes...
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Países pobres são a nova aposta dos laboratórios farmacêuticos

Yves Mamou
Os laboratórios farmacêuticos europeus fazem mais esforços que os americanos para ajudar os países pobres a ter acesso aos medicamentos. É o que se deduz da classificação publicada na última segunda-feira (16) pela fundação holandesa Access to Medicine, em colaboração com o órgão de estudos especializado Innovest.

O laboratório britânico GlaxoSmithKline (GSK, nº 2 mundial) fica no topo, a uma boa distância do dinamarquês Novo Nordisk, um laboratório de porte médio especializado em diabetes. Vêm depois o suíço Novartis (nº 3 mundial) e o francês Sanofi-Aventis (4º lugar). O único americano que entra no jogo é o Merck, terceiro classificado. Mas o primeiro lugar mundial em termos de faturamento, o laboratório Pfizer, fica nas profundezas da classificação, em 17º lugar. Da mesma maneira, o Abbott, que teve freqüentes disputas com associações de doentes de Aids, se classifica em 12º.

Detalhe interessante, três fabricantes de genéricos, os indianos Cipla (14º) e Ranbaxy (16º), assim como o israelense Teva Pharmaceutical (19º), integram a classificação. Por outro lado, laboratórios prestigiosos de biotecnologia como Amgen ou Genentech estão ausentes, enquanto um menor como o Gilead Sciences (inventor do Tamiflu) integra a lista em 15º lugar.

Facilitar o acesso dos países em desenvolvimento aos medicamentos e à saúde nunca fez parte do "core business" (atividade estratégica) das farmacêuticas. Mas o aumento das preocupações humanitárias nos países do norte (desenvolvimento sustentável, antiglobalização, comércio eqüitativo...) e principalmente a onda de choque nascida em 2001 do processo tentado pelos grandes laboratórios contra a África do Sul, para impedi-la de fabricar medicamentos anti-Aids patenteados, mudaram a situação.

Conscientes de que são considerados parcialmente responsáveis pela decadência sanitária de certas regiões do mundo, percebendo -com atraso- que essa percepção pode ter conseqüências nefastas para sua atividade principal nos países desenvolvidos, os laboratórios farmacêuticos repensaram sua atitude em relação aos países em desenvolvimento. Eles não se limitam mais a uma política de caridade (socorro de emergência e doações regulares de medicamentos) como muitos faziam antes. Todos ou quase todos implantaram uma administração ligada à direção geral e estabeleceram uma estratégia específica.

Financiamentos complementares
A classificação levou em conta oito critérios que vão de uma política de preços diferenciados à suspensão provisória das patentes, passando por acordos de licença sem royalties com fabricantes de genéricos, uma pesquisa dedicada a certas doenças tropicais, subvenções dadas a organizações não-governamentais e a associações humanitárias.

É a soma dos pontos obtidos por cada laboratório em cada um desses critérios que leva o inglês GSK a encabeçar a classificação geral. Mas um laboratório como o Eli Lilly, 10º na classificação geral, pode ser o número 1 no critério da transparência de sua política sobre o assunto.

Em todo caso, o estudo mostra que a ação da maioria dos laboratórios em relação aos países pobres deixou a órbita da caridade para integrar uma dimensão maior e mais estratégica. Assim, constata-se que todos os laboratórios da lista, incluindo os fabricantes de genéricos, dedicam orçamentos de pesquisa e desenvolvimento à descoberta de novos tratamentos contra doenças antes negligenciadas, como a dengue, malária, esquistossomose, etc. O interesse dos laboratórios pelas doenças negligenciadas foi dinamizado pelos financiamentos complementares de grandes fundações humanitárias como a de Bill e Melinda Gates. A filantropia de alguns e as capacidades de pesquisa de outros dão uma esperança para as populações deserdadas da África e da Ásia.

GSK, Novartis e Sanofi-Aventis estão empatados em primeiro lugar em termos de pesquisa e desenvolvimento. Em relação às patentes, o GSK é o número 1 juntamente com Merck e Gilead pela qualidade dos acordos de licença feitos com certos fabricantes de genéricos, com o objetivo de melhorar o acesso das populações desfavorecidas aos medicamentos. Os piores classificados nesse sentido são Abbott e Pfizer.

Para enfrentar o flagelo da falsificação de remédios na África e na Ásia, alguns laboratórios ajudam os países em desenvolvimento a fabricar e distribuir medicamentos, assim como a formar pessoal de saúde local. Merck e o alemão Bayer estão no topo nesse critério, seguidos de perto por Eli Lilly e GSK.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[Le Monde, 17/06/2008]

Cildo Meirelles, o artista que combateu a ditadura brasileira com garrafas de Coca Cola

Isabel Lafont
Em 1970, Cildo Meireles (nascido no Rio de Janeiro em 1948) estampou um eloqüente "Yankees go home" em várias garrafas de Coca-Cola. A obra foi completada com um gesto: o artista devolveu os vasilhames como se fossem simples garrafas. Cinco anos depois também gravou um acusador "Quem matou Herzog?" em notas de cruzeiros que, novamente, pôs em circulação. O jornalista Vladimir Herzog havia morrido nesse mesmo ano ("suicídio", segundo a versão oficial) depois de ser submetido a torturas.

Nesses projetos, intitulados "Inserções em circuitos ideológicos", Meireles, que na segunda-feira recebeu na Espanha o Prêmio Velázquez de Artes Plásticas 2008, uniu duas de suas pulsões. Experimentou com os meandros da arte conceitual, com a idéia -e não o objeto- da obra de arte. E ao mesmo tempo encontrou uma linguagem para o protesto político (o golpe de Estado de 1º de abril de 1964 deu início no Brasil a uma ditadura militar que durou até 1985). "A partir de 1969 me senti impelido a fazer peças políticas", explicou Meireles em Madri. "Creio que há trabalhos meus que são mais conceituais e outros que têm uma leitura política mais visível, mas sempre tive cuidado para não cair no panfletário", esclarece.

Mesmo em suas obras mais políticas Meireles, que deu continuidade a um movimento artístico iniciado no Brasil nos anos 1950 por nomes como Hélio Oiticica, Lygia Pape ou Lygia Clark, sempre indagou questões de linguagem e formais, a autoria, o anonimato... "Claro que há um discurso político! Eu escolhi as garrafas para fazer o que fiz, e não para fazer flores com elas. Mas também foi uma conquista da arte preservar e ampliar essa liberdade de expressão: quando se é artista, não se deve dar satisfação a ninguém".

Meireles foge do que chama de "literatite": "Esse excesso verbal, essa coisa aborrecida. Houve um momento em que ir a uma exposição de arte conceitual era um suplício", afirma. Por isso acredita que a arte "não pode abdicar da sedução". É o risco que surge quando a interpretação é superior à obra, "um retrocesso para a arte".

Por isso busca a interação, a relação sensorial com o público, e declara sua aspiração a superar o estritamente visual: "A verdadeira arte é a que se apresenta a um cego. O ser humano usa a todo instante outros sentidos, e alguns são mais importantes para a sobrevivência que a visão".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 12/06/2008]

Amazônia...

A contestação da soberania brasileira sobre a Amazônia não é recente. Declarações feitas por influentes personalidades mundiais, nas duas últimas décadas, dão o tom das pressões. Abaixo uma amostra:

1. “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós.” (Al Gore, como vice-presidente dos EUA)

2. “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia.” (François Mitterrand, como presidente da França)

3. “As campanhas ecológicas internacionais sobre a região amazônica estão deixando a fase propagandística para dar início a uma fase operativa que pode definitivamente ensejar intervenções militares diretas sobre a região.” (John Major, como primeiro-ministro da Grã-Bretanha)

4. “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes.” (Mikhail Gorbachev, como presidente da extinta União Soviética)

5. “Os países industrializados não poderão viver da maneira como existiram até hoje se não tiverem à sua disposição os recursos naturais não renováveis do planeta. Terão de montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidores da consecução de seus intentos.” (Henri Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA)

6. “Atualmente avançamos em uma ampla gama de políticas, negociações e tratados de colaboração com programas das Nações Unidas (...) e crescente participação da CIA em atividades de inteligência ambiental.” (Madeleine Albright, como secretária de Estado dos EUA)

7. “Caso o Brasil resolva fazer um uso da Amazônia que ponha em risco o meio ambiente dos Estados Unidos, temos de estar prontos para interromper este processo imediatamente.” (general Patrick Hughes, ex-chefe do Órgão Central de Informações das Forças Armadas dos EUA)

8. “A Amazônia e as outras florestas tropicais do planeta deveriam ser consideradas bens públicos mundiais e submetidas à gestão coletiva, ou seja, gestão de comunidades internacionais.” (Pascal Lamy, como Comissário da União Européia na ONU)

9. “Essa parte do Brasil (Amazônia) é muito importante para deixar para os brasileiros. Se perdermos as florestas, perderemos a luta contra o aquecimento global.” (The Independent/editorial)

10. “O que uns vêem como a salvação da soberania pode ser a destruição da floresta (...) as restrições refletem um debate maior sobre os direitos à soberania versus patrimônio do mundo.” (The New York Times/editorial)

[Maurício Dias, Carta Capital, 09/06/2008]

Migrações Sul-Sul já são metade do total

Surgimento de ilhas de prosperidade em meio à miséria faz de países que antes eram escalas o destino final
SAMY ADGHIRNI

As recentes cenas de caça aos imigrantes na África do Sul jogaram luz sobre um fenômeno incontrolável e pouco estudado ainda: o das migrações entre países em desenvolvimento.
Os contornos do problema só começaram a ser definidos em 2007, quando o Banco Mundial publicou o primeiro levantamento já feito sobre as chamadas migrações Sul-Sul, essencialmente clandestinas.
O estudo mostrou que esses fluxos aumentaram em 75% desde os anos 70, segundo estimativas que levaram em conta avaliações de organismos internacionais e dados colhidos em 56 países.
O mesmo documento avalia que as migrações Sul-Sul representam hoje metade de todos os movimentos migratórios. A Organização Internacional para Migração (OIM) diz que 70% desses fluxos ocorrem entre países em desenvolvimento.
Parte desse avanço se deve à fragmentação da antiga União Soviética em novos países, o que transformou em migrações internacionais deslocamentos antes considerados internos.
Conflitos e catástrofes naturais também causam grandes movimentos transnacionais, principalmente na África e na Ásia. Mas o salto nas migrações Sul-Sul se deve principalmente à criação pela economia globalizada de ilhas de prosperidade em regiões miseráveis.
A violência antiimigrante das últimas semanas fez da África do Sul o exemplo mais eloqüente. Estima-se que pelo menos mil pessoas cruzem a cada dia as porosas fronteiras que separam o razoavelmente próspero país de seus vizinhos. A maior parte dos clandestinos é de zimbabuanos, alguns com diplomas universitários, que aceitam todo tipo de emprego, de guardador de carro a serviços domésticos.
Problema semelhante ocorre em países como Índia, Malásia e até mesmo Brasil, transformados pelo crescimento econômico em "eldorado" aos olhos dos vizinhos mais pobres.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) encara o problema como uma equação laboral entre oferta e demanda. "Em alguns países cuja economia cresce, há setores que precisam de mão-de-obra, e os imigrantes estão dispostos a preencher esses espaços", diz Rodrigo Penna, da OIT.
Especialista no assunto, a filipina Dovelyn Agunias afirma que "as pessoas vão para onde os empregos estão".
O porta-voz da OIM, Jean-Philippe Chauzy, cita como exemplo a criação de camarão na Tailândia, um trabalho árduo geralmente feito por imigrantes do Laos e do Vietnã.

Mudança de rumo
O desenvolvimento econômico transformou países que antes eram plataformas de trânsito rumo ao mundo rico em cobiçados destinos finais. O norte do Marrocos está repleto de acampamentos de imigrantes subsaarianos que desistiram de tentar chegar à Europa pelo estreito de Gibraltar e hoje alimentam a economia informal do país africano.
No México, há grandes populações de trabalhadores do Caribe e da América Central que já não pensam em migrar aos Estados Unidos.
Na maioria das vezes, os imigrantes enfrentam a rejeição da população e a repressão das autoridades, a exemplo do que ocorre na Europa e nos EUA. Agressões e até assassinatos são freqüentes na Rússia. Em alguns países árabes, clandestinos não denunciam o trabalho em condições desumanas por medo de serem deportados.
"Essas pessoas sofrem muito e carecem de amparo até para retornar a seus países de origem", relata Chauzy, da OIM.

Bons anfitriões
Na contramão dessa tendência, a Venezuela permite que estrangeiros recebam assistência oficial do Estado, inclusive na área de saúde. O Brasil também é tido como tolerante com os trabalhadores bolivianos e paraguaios.
Mas é no golfo Pérsico que vigora a mais bem sucedida política de assimilação da mão de obra imigrante. As monarquias petrolíferas fornecem desde a década de 70 contratos de trabalho de até dois anos a milhares de filipinos e malaios dispostos a trabalhar nas áreas de serviço e construção.
As atitudes benevolentes de alguns governos reforçam a tese defendida pelo Banco Mundial de que as migrações geram crescimento econômico tanto para o país de origem como para o país de destino.

[Folha de São Paulo, 08/06/2008]

Êxito econômico de Dubai esconde sistema de trabalho com características de escravidão

Andy Robinson
Frustrado com suas dificuldades de comunicação verbal, um dos trabalhadores indianos que relatou suas experiências em Dubai na frente da unidade 32 do acampamento de expatriados de Sonapur, pegou minha caderneta e escreveu em inglês: "Dubai Mall, maior centro comercial do mundo. Ao lado de Burj Dubai, o edifício mais alto do mundo... 468". Ele não se referia aos metros já construídos do enorme arranha-céu de Dubai (já são 640), mas sim ao salário de um operário da construção: 468 dirhams, o equivalente a 90 euros por mês, sem incluir horas extras.
O operário aponta para o logotipo em seu macacão, da empresa emirado-britânica Dutco Balfour Beatty, que administra a obra do Dubai Mall, e mostra que o vale alimentação é no valor de 75 dirhams (14 euros). Com esse dinheiro, há seis meses atrás se podia comprar 60 quilos de arroz; agora, nem 20. "75 dirhams são três dias de alimentação num hotel de Dubai. Para os operários isso deve durar o mês todo!", disse, revelando que desconhece a outra Dubai, a de David Beckham e Posh Spice, e o suntuoso hotel Burj Al Arab, onde um robalo ao champanhe custa 360 dirhams.
As megatendências da economia mundial convergiram em Sonapur, um conjunto imenso de barracões no deserto, a 30 quilômetros do centro de Dubai onde cerca de 150 mil trabalhadores da Índia, Paquistão e Bangladesh se acomodam em dormitórios coletivos. O barril de petróleo a 130 dólares transformou Dubai e Abu Dhabi em pólos da construção, gerando emprego para cerca de 700 mil imigrantes. Mas a desvalorização do dólar - e do dirham, que oscila de acordo com a moeda americana - reduziu em 10% ou mais as remessas enviadas a seus familiares. O encarecimento dos alimentos básicos dizima o seu poder aquisitivo.
Em Sonapur - que significa cidade do ouro em hindu, mas que estava parcialmente inundada por um charco pestilento de esgoto durante a nossa visita -, o golpe econômico triplo se soma às marcas peculiares do feudalismo pós-moderno dos Emirados. Marcas que negam o direito de formar um sindicato, de fazer greve ou de mudar de empresa. "Quero sair da companhia, mas eles têm meu passaporte", disse Rajashwar, de 39 anos, eletricista de Madras. Ao assinar um contrato de trabalho, o imigrante quase sempre entrega seu passaporte à empresa e não pode recuperá-lo até que termine o contrato, em geral depois de dois anos. Muitos trabalhadores endividados para pagar sua passagem e documentação - e que chegam a dever até 3 mil dólares para traficantes - são, além disso, vítimas das empresas que com freqüência atrasam os pagamentos.
Ilhados nos acampamentos, sem transporte público, os trabalhadores só vêem as duas metrópoles do petrodólar do alto dos andaimes.
"Os táxis não param aqui", diz Yooosaf, paquistanês que é funcionário de armazém, cuja unidade está inundada. Indianos, paquistaneses e bengalis constituem quase 50% da população dos Emirados.
É uma situação desoladora. Mas na Índia e no Paquistão suas famílias têm problemas piores. O Banco Asiático de Desenvolvimento calcula que a cada aumento de 10% no preço dos alimentos básicos - sobretudo do arroz - agrega sete ou oito milhões aos 30 milhões de pobres do Paquistão. Por isso, os trabalhadores mandam o restante dos salários às suas famílias, tirando o que gastam com comida e transporte.
Os paradoxos se multiplicam em Sonapur. O motivo da imigração é a crise rural na Índia, resultante do aumento dos preços dos pesticidas que dispararam com a subida do petróleo. Essa crise causou uma epidemia de suicídios de camponeses (que ingerem pesticidas para se matar). O suicídio se transferiu para acampamentos como Sonapur. O consulado indiano crê que a cada quatro dias um imigrante se suicide.
O êxito da petroeconomia dos Emirados esconde do mundo um sistema de trabalho "com características de escravidão", diz Nick McGeehan, da ONG Mafiwasta, especializada em abusos aos trabalhadores nos Emirados. Multinacionais respeitáveis que operam em Dubai são responsáveis por esses abusos.
Cada vez há mais protestos. No ano passado, um grupo de trabalhadores fechou a ponte de acesso a Dubai por duas horas. Em março, cerca de 1,5 mil trabalhadores atearam fogo a ônibus da construtora norte-americana Drake & Skulle e 2,5 mil trabalhadores que construíam a torre Burj Dubai fizeram greve. Outros consideram deixar o país se as autoridades permitirem. Uma saída em massa de imigrantes criaria problemas para os Emirados.
O governo anunciou reformas que permitiriam alguns direitos sindicais. Mas McGeehan diz que "há um abismo gigantesco entre a retórica e a realidade".
A esse ponto, as construtoras ocidentais que lucram bastante no Golfo já se acostumaram ao modelo Dubai. Elas registram aumentos fabulosos de benefícios: Balfour Beatty teve lucros de 48% em 2007; a matriz da Drake and Scull Emcor, 186%. Ante à perspectiva de uma nova lei que proíbe que os operários trabalhem nas horas de sol forte - a mais de 50 graus -, a companhia européia Jan de Nul, que participa do megaprojeto da Saadiyat Island em Abu Dhabi (com os arquitetos Frank Gehry, Jean Nouvel ou Norman Foster), pediu uma isenção "para terminar a obra de acordo com o cronograma, para o bem do turismo e de Abu Dhabi".
Tradução: Eloise De Vylder

[La Vanguardia, 09/06/2008]

Discurso no limbo

"A Fome dos Outros", de Rodrigo Labriola, estuda a crônica espanhola da conquista da América

LUIZ COSTA LIMA

Internacionalmente, o auge da reflexão teórica dos estudos literários teve um curto apogeu: concentrou-se entre 1960 e 1980. Baste-me aqui a constatação.
O mesmo faço com seu complemento: do ponto de vista brasileiro, aquele apogeu teve uma repercussão mínima, sendo antes freqüente a incompreensão e hostilidade que causou.
Mesmo por essa razão, ressalta a singularidade do ensaio "A Fome dos Outros - Literatura, Comida e Alteridade no Século 16". De autoria do argentino radicado no Rio Rodrigo Labriola, o livro tem por tema a crônica espanhola da conquista, concentrando-se na "Historia General de las Cosas de la Nueva España", do frade franciscano Bernardino de Sahagún.
A riqueza de sua análise permitiria vários modos de abordagem. Entre eles, privilegiarei a abordagem do ponto de vista discursivo, porque, embora referido com freqüência, no sentido técnico, o termo "discurso" está longe de um entendimento suficiente.
Será preciso, portanto, esclarecer que "discurso" significa o modo peculiar como o mundo dos eventos é disposto e trabalhado em certo tipo de texto.
Tal modo peculiar se diferencia como um certo protocolo ou, se se preferir, como um certo ritual, a ser cumprido, para que o objeto textual seja reconhecido como literário, filosófico, historiográfico etc.
Embora rudimentar, o esclarecimento deve ser bastante para que se acrescente: a abordagem empreendida por Labriola mostra que, do ponto de vista historiográfico, a crônica espanhola, composta durante o século 16, hoje habita uma espécie de limbo discursivo.
Isto é, nem se confunde com a crônica medieval, nem muito menos poderia ser tomada como similar ao discurso historiográfico, legitimado a partir do século 18.
A afirmação tem por esteio principal a diferença epistemológica que Michel Foucault estabeleceu em "As Palavras e as Coisas" [ed. Martins Fontes]: à diferença da concepção medieval, os tempos modernos partem do suposto que entre as palavras e as coisas por elas nomeadas não há nenhum vínculo natural.
Daí decorre não somente que o signo seja concebido como arbitrário, isto é, não motivado por traços ou propriedades daquilo a que aponta, como se cria o problema do referente. É este que particularmente aqui importa.
Enquanto se considerava a palavra motivada pela coisa a que remetia, seu referente era basicamente justificado pelo contexto bíblico. A Bíblia era o termo ausente que estabelecia o enlace entre o fato e sua presumida veracidade. Criava-se assim um círculo vicioso, especialmente prejudicial para o discurso da história: um evento histórico qualquer era considerado verdadeiro à medida que estava de acordo com o ponto de vista cristão -em princípio, biblicamente justificado.
É daí que resulta a crônica espanhola da conquista encontrar-se hoje em uma terra de ninguém: seu referente era retoricamente concebido, e não efetivamente atestado.
Mas a afirmação não vale para a crônica da conquista em peso. Labriola mostra que, no interior das muitas crônicas espanholas, há de se distinguir entre aquelas nas quais domina uma visão retórico-religiosa, como a de Motolinía, "Sacrificios y Idolatrías", e a "Historia General", de Sahagún, em que, ao reconhecimento de que os mexicas são, no sentido pleno da palavra, um "outro", corresponde a busca de aprender sua língua, o náuatle, convertê-la em linguagem escrita, conhecer sua religião e costumes -é verdade que com o propósito de assim melhor conseguir sua conversão.
Em suma, do ponto de vista discursivo, a análise das crônicas referidas tem a propriedade de permitir que se observem duas concepções opostas sobre a relação entre linguagem e realidade e as conseqüências que, de imediato, daí decorrem.
Entre essas, uma é de interesse geral: enquanto a crônica de orientação retórico-religiosa tinha um caráter monológico -isto é, a visão cristã está previamente pronta para explicar o que se fazia no Novo Mundo-, a crônica de Sahagún assumia um caráter dialógico.

A busca do ouro
Monologia e dialogia são termos naturalmente extraídos da teorização de Mikhail Bakhtin sobre o romance.
Na impossibilidade de desenvolver-se a questão, a relacionemos com outro ângulo seu: a relação entre e a busca do ouro e a fome do outro, dela oriunda. As duas trilhas, bem acentua Labriola, são paralelas.
A trilha do ouro começava com os conquistadores famintos, "continuava com a ruminante Espanha e acabava nos estomacais países do norte".
Pois o ouro, recolhido no México e no Peru, era enviado para a Espanha -assim como, no século 18, o colonizador português o enviaria para Lisboa-, onde, em virtude dos obstáculos que impediam a implantação de um parque industrial, era rapidamente trocado pelos produtos industrializados de que a própria Espanha e sua imensa colônia careciam.
Assim o ouro e a prata vindos da América desempenharão um papel fundamental na acumulação primitiva do capital.
Isso talvez cause a alguns ainda tanta surpresa como para outros a verificação de que, pela análise discursiva, literatura e historiografia, sem se confundirem, demostram sua intensa inter-relação.

LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor na Universidade do Estado do RJ e na Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

A FOME DOS OUTROS - LITERATURA, COMIDA E ALTERIDADE NO SÉCULO 16
Autor: Rodrigo Labriola
Editora: Universidade Federal Fluminense, 254 págs.


[Folha de São Paulo, 01/06/2008]

Imprensa brasileira faz 200 anos

Brasil foi o 12º país da América Latina a receber uma tipografia; o México já possuía uma desde 1535
Hoje há 555 jornais diários no país; circulação daqueles que são auditados pelo IVC aumentou 10,7% em 2007 em relação ao ano anterior

Inaugurada em 1º de junho de 1808 com o lançamento do "Correio Braziliense", a imprensa brasileira completa hoje dois séculos. O Brasil havia acabado de acomodar no Rio a família real portuguesa expulsa de Lisboa pelas tropas de Napoleão e vivia os efeitos das mudanças que sacudiam a Europa.

Os jornais surgem neste ambiente de efervescência política e econômica e se tornam importantes no embate de idéias. Passados 200 anos, eles enfrentam hoje a concorrência acirradíssima de outros meios pela atenção dos leitores e um forte questionamento sobre seu papel na sociedade. Mas nos últimos anos encontraram fôlego na recuperação da circulação e no crescimento de sua participação no bolo publicitário.

O "Correio Braziliense", mensário publicado por Hipólito da Costa (1774-1823) em Londres, circulou de 1º de junho de 1808 a dezembro de 1822. Além dele, duas outras iniciativas marcaram 1808 como o começo de um novo ciclo de circulação de idéias no país.

Em 13 de maio foi instalada a tipografia da Impressão Régia, criada para imprimir as leis e decretos do gabinete de d. João 6º, mas que também editou romances, poesias, livros científicos, religiosos, didáticos e periódicos. Poucos meses depois, em 10 de setembro, houve o lançamento da "Gazeta do Rio de Janeiro", jornal oficial da corte que também editava notícias do Brasil e da Europa.

Os historiadores do período costumam destacar três características daquela imprensa incipiente. Primeiro, ela chegou tarde. Estudos mostram que o Brasil foi o 12º país da América Latina a receber uma tipografia, quando o México já tinha oficina desde 1535 e o Peru desde 1584. Buenos Aires tem sua primeira impressora em 1780.

O segundo aspecto é que esta imprensa nasce censurada. Em Portugal, os impressos eram submetidos a três ordens de vigilância: o Poder Real, a Inquisição e o bispo. No Brasil, havia a censura da Igreja Católica e a Mesa do Desembargo do Paço. A censura só foi abolida em 1821, no calor das revoltas que obrigaram d. João 6º a voltar a Lisboa. A terceira característica destacada pela maioria dos historiadores é o caráter áulico das primeiras publicações.

Embora julgue correta essa caracterização, o historiador Marco Morel chama a atenção para o contexto político: "A ênfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos dos primeiros tempos da imprensa não é suficiente para dar conta da complexidade de suas características e das demais formas de comunicação numa sociedade em mutação, do absolutismo em crise".

São deste período "A Idade d'Ouro no Brasil" (1811), o segundo jornal a circular no Brasil e o primeiro na Província da Bahia, "Variedades" (1812), a primeira revista impressa no Brasil, e "O Patriota" (1813).

Hoje o Brasil tem 555 jornais diários, segundo a ANJ (Associação Nacional de Jornais). Após um longo período de crise econômica, a entidade festeja o crescimento de circulação e faturamento do setor. Os diários auditados pelo IVC (Instituto Verificador de Circulação) tiveram crescimento de circulação em 2007 de 10,7% em relação a 2006. Este índice se refere aos 88 jornais monitorados. A ANJ calcula que com a inclusão dos diários não auditados este crescimento tenha sido de 11,8%.

O faturamento publicitário dos jornais aumentou 23,72% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2007, índice acima do crescimento do mercado de comunicação, que foi de 15,48%. O crescimento em 2007 em relação a 2006 foi de 15,22%, enquanto o mercado cresceu 8,98%. A participação no bolo publicitário também melhorou. Passou de 15,46% para 16,38%. No primeiro trimestre deste ano chegou a 18,89%. A internet teve 2,77% de participação no mercado publicitário em 2007. A TV continua com a maior fatia do bolo: 59,21%.

[Folha de São Paulo, 01/06/2008]

Por que o petróleo está ficando caro? Escassez, especulação ou manipulação?

O aumento da negociação de contratos futuros de petróleo tem contribuído para a alta dos preços. Mas até o momento não há evidência de estocagem

Moira Herbst*

Especulação. Manipulação. Enquanto políticos, empresários e consumidores comuns tentam entender as causas e efeitos do aumento histórico nos preços do petróleo, a atenção se volta para as noções sombrias de manobras financeiras exploradoras.

Estarão investidores hábeis lucrando -ou até mesmo monopolizando uma parcela do mercado- e assim contribuindo para a alta dolorosa que está afetando a todos, de companhias aéreas a motoristas nas bombas de gasolina?

Adotando um tom populista em sua campanha presidencial, a senadora Hillary Clinton (democrata de Nova York) pediu por uma "repressão à especulação dos investidores em energia e à manipulação dos mercados de petróleo e gás". O vice-presidente sênior da ExxonMobil, J. Stephen Simon, tentando se esquivar das críticas aos lucros das companhias de petróleo, disse a um comitê do Senado, em 21 de maio, que a especulação, juntamente com instabilidade geopolítica e o dólar desvalorizado, criaram uma "desconexão" entre os padrões de preço do passado e o preço atual de US$ 131 o barril. Motivado por um desejo semelhante de desviar o ultraje para outra direção, o secretário-geral da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), Abdalla El Badri, também destacou o papel dos especuladores na alta dos preços.

Quando o petróleo sobe tanto quanto recentemente, dobrando desde maio de 2007, é natural presumir que algo significativo deve ter mudado. Alguns dizem que o mundo está ficando sem o produto; outros culpam a manipulação do mercado. A busca por um culpado é compreensível.

Mas evidência persuasiva da manipulação por investidores é, até o momento, inexistente. Especulação -fazer apostas nos preços futuros- é outra coisa. Há muito disso, e geralmente é legal. Na verdade, há um bom argumento, apesar de não haver prova conclusiva, de que a escalada acentuada no comércio de contratos futuros de petróleo tem contribuído para os aumentos dos preços. Mas é importante lembrar que a natureza do mercado de petróleo -especificamente, a extrema inflexibilidade tanto na oferta quanto na demanda- está amplificando qualquer influência que os especuladores estejam exercendo nos preços.

Pois para haver manipulação real, os especuladores teriam que manter quantidades substanciais de petróleo fora do mercado, planejando descarregá-lo no futuro. Jeff Bingaman, democrata do Novo México e presidente do Comitê de Energia do Senado, sugeriu que uma recente tendência dos investidores institucionais de adquirir capacidade de estocagem de petróleo cria "preocupações em relação a potenciais estratégias de manipulação do mercado". Em uma carta em 27 de maio, ele repreendeu as autoridades da Comissão de Comércio de Commodities e Futuros (CFTC) pelo seu depoimento "altamente incompleto" durante recentes audiências sobre especulação de petróleo. Ele exigiu mais informações sobre como a agência monitora o mercado.

Mas suspeita não é o mesmo que evidência. Até o momento, ninguém apontou para exemplos específicos de estocagem. Os especialistas da CFTC disseram que as forças do mercado estão elevando os preços. A agência disse que está trabalhando em uma resposta à carta de Bingaman.

O que pode ser corroborado é que fundos hedge, bancos de investimento, fundos de pensão e outros investidores profissionais estão despejando quantidades cada vez maiores de dinheiro em petróleo e outras commodities, buscando uma proteção contra a inflação e alternativas a um mercado de ações instável. Nos últimos cinco anos, o investimento em fundos de índices ligados aos preços das commodities cresceu de US$ 13 bilhões para US$ 260 bilhões. Mais de 630 fundos hedge de energia estão fazendo apostas, em comparação a apenas 180 em 2004, segundo Peter C. Fusaro, fundador do Energy Hedge Fund Center, um site de informação de investimento.

Os corretores de contratos futuros na IntercontinentalExchange fizeram apostas em petróleo em um valor total de US$ 8 trilhões em 2007, em comparação a US$ 1,7 trilhão em 2005, segundo dados da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos. No mesmo período, o volume de contratos futuros negociados na Bolsa Mercantil de Nova York mais que dobrou, apesar de números em dólares não estarem disponíveis. O mercado de balcão é ainda maior, mas difícil de medir.

Com o crescente aumento da demanda de energia pela China e com a oferta mundial estagnada, o afluxo de dinheiro tem contribuído para a alta dos preços. "Os fundos hedge e especuladores provocaram uma alta bem maior do que deveria", disse Malcolm M. Turner, presidente da Turner, Mason & Co., um firma de consultoria de refino, em Dallas.

Na maioria dos mercados, a alta dos preços resultaria em maior oferta e diminuição da demanda. Isto estabilizaria os preços. Mas o mercado de petróleo não está funcionando desta forma. A oferta está basicamente fixada a curto prazo, porque são necessários anos para encontrar novos campos e colocá-los em operação. Enquanto isso, a demanda também é fixa, já que não há pronto substituto para a gasolina, diesel e combustível para jatos. Cheios de dinheiro de investidores de todo tipo, os corretores atentos a estas condições têm apostado na alta dos preços.

É difícil calibrar a influência da especulação, porque grande parte do mercado de petróleo não é regulado. Essa nebulosidade quase que assegura que as teorias de conspiração continuarão proliferando.

*Peter Coy e Christopher Palmeri contribuíram com a reportagem

Tradução: George El Khouri Andolfato

[Der Spiegel]

Conheça Manuel Marulanda Vélez, o chefe histórico das Farc

De Marie Delcas

Ele era chamado de Tirofijo, "aquele que acerta na mosca". É um apelido que já diz muito sobre o personagem, também dotado de uma capacidade um tanto estranha. Esta terá permitido a Manuel Marulanda Vélez sobreviver por mais de meio-século travando combates no meio da selva. O chefe histórico das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, morreu, em 26 de março de 2008, de uma crise cardíaca. Ele tinha 78 anos.

O governo colombiano andou comemorando o falecimento do "instigador da violência armada". Desde então, os diferentes canais de televisão vêm exibindo programas nos quais são lembrados os inúmeros crimes atribuídos às suas tropas.

"Manuel Marulanda foi um grande guerreiro que conseguiu perder todas as oportunidades de fazer a paz que estiveram ao seu alcance", comenta Gustavo Petro, um senador de esquerda. "Quando a Colômbia estiver finalmente pacificada e se voltar para o passado, ela acabará aceitando a seguinte realidade: ele foi um personagem crucial da história do século 20".

Manuel Marulanda nasceu em 1930, perto da aldeia de Genova, situada no centro-oeste do país, no conturbado relevo da Cordilheira dos Andes. Do seu "território" no meio da selva, ele viu se sucederem mais de quinze presidentes da república.

"Eu não estive à procura da guerra, foi a guerra que veio me buscar. Quando não existe outra escolha entre a perspectiva de ser degolado e a de se refugiar no meio da selva, é preciso ser muito estúpido para ficar parado por aí, à espera dos seus carrascos", contou Marulanda numa entrevista concedida ao "Le Monde" em 2001. Naquela época, as Farc estavam comprometidas com um processo de paz na região. E, uma vez não faz costume, o velho guerrilheiro recebeu alguns jornalistas para um almoço.

Incansavelmente, Manuel Marulanda volta a falar a respeito da "Violencia", aquela guerra civil que tomou conta da Colômbia durante os anos 1950, deixando mais de 300 mil mortos, e que serviu como embasamento para a sua lenda. Fugindo das perseguições desencadeadas pelos conservadores então no poder, os camponeses liberais decidem refugiar-se na selva, onde iniciam um movimento de resistência. Desse mato, Manuel Marulanda nunca mais sairá. Junto com os seus primos e seus vizinhos, ele inventa a luta armada e aprende as técnicas de comando.

"Nós não tínhamos nem uma carabina sequer, naquela época; nós lutávamos apenas com flechas e lanças", recordou-se Manuel Marulanda, às gargalhadas.

Foi apenas dez anos mais tarde que ele aprenderia a existência e as idéias do filósofo Karl Marx (1818-1883). A revolução cubana projeta então as suas brasas sobre o continente. Em 1964, Manuel Marulanda funda as Farc, no que vem a ser a sua maneira de criar vínculos com o Partido Comunista. Mas o comandante guerrilheiro permanecerá um camponês, uma condição que impregna a sua alma. A última vez que ele viu uma cidade foi em 1963. A chegada de comandantes guerrilheiros de origem urbana em nada alterará a natureza da organização rebelde. Até hoje ainda, as Farc continuam se definindo e se considerando como um movimento de autodefesa camponês.

Um grande estrategista, mas um péssimo orador
Será preciso esperar até o ano de 1982 para que a Colômbia descubra o rosto do guerrilheiro, quando o então presidente da república Belisario Betancourt tenta pela primeira vez negociar a paz. Na ocasião, a televisão entrevista um homem trajando uma camisa de pano xadrez que não olha para a câmera e se expressa num péssimo espanhol. Dizem que o comandante supremo das Farc é inteligente, ardiloso e um grande estrategista, mas ele revela ser um péssimo orador.

"Manuel Marulanda nunca pronunciou qualquer discurso, nem escreveu qualquer texto, até onde é possível se lembrar", sublinha o cientista político Ricardo Garcia. Entretanto, em momento algum a legitimidade do comandante guerrilheiro chegou a ser questionada pelos seus homens. Em momento algum as Farc ficaram divididas, e nunca um guerrilheiro se arriscou a tentar tomar o lugar de Manuel Marulanda. A este respeito, as fotos disponíveis da guerrilha são muito significativas: todos os guerrilheiros estão armados, exceto Tirofijo, que, há muito tempo deixou de carregar uma arma.

Manuel Marulanda assistiu, com a mais completa indiferença, à queda do muro de Berlim, em 1989. Ele tem mais o que fazer. O dinheiro e as armas afluem, proporcionados pelos seqüestros e pela cocaína. As Farc estão crescendo a olhos vistos e vão ampliando o seu controle do território. A organização armada mostra-se capaz então de reunir mais de 8.000 homens para infligir severas derrotas ao exército. O poder acaba cedendo e aceita criar uma zona desmilitarizada de 42 mil quilômetros no território com o objetivo de negociar a paz.

A partir daquele momento, a silhueta um pouco arqueada e o passo lento de Manuel Marulanda se tornarão familiares para a população. Todas as noites, os chefes guerrilheiros aparecem no jornal televisivo. Mas, num país já transformado pelo processo de urbanização, o seu discurso anacrônico não convence ninguém. Além disso, as exações da guerrilha se tornaram intoleráveis. Mas, Manuel Marulanda "não acredita nas pesquisas de opinião". Do seu ponto de vista, a insurreição popular está prestes a arrebentar, e ela conduzirá os seus homens ao poder. As negociações não saem da estaca zero. As Farc tiram proveito da trégua parcial para se reforçarem militarmente.

Em fevereiro de 2002, o governo resolve encerrar de uma vez por todas a farsa do processo de paz. Três semanas mais tarde, Ingrid Betancourt, então candidata à presidência da República, é seqüestrada. O mundo descobre então o drama dos seqüestros na Colômbia. As Farc passam a figurar nas listas das organizações terroristas. Manuel Marulanda não gosta nem um pouco desta novidade, ele que se considerava à frente de um exército de liberação nacional.

Cansados de um conflito que não faz o menor sentido para eles, os colombianos conduzem então ao poder um presidente "de pulso firme", Álvaro Uribe, que jura resolver de uma vez por todas o conflito com as Farc. O exército retoma a ofensiva e obriga os guerrilheiros a recuarem nas profundezas da selva e nas montanhas. Manuel Marulanda não reapareceu em público desde 2002. Em diversas ocasiões, a imprensa repercute diferentes rumores a respeito da sua saúde, da qual dizem que ela é periclitante. Os militares sugerem que haveria uma marginalização do veterano à frente das Farc.

Contudo, os documentos que foram apreendidos recentemente nos arquivos do computador de Raúl Reyes, o porta-voz das Farc que foi abatido em março, evidenciam que Manuel Marulanda dirigiu até o fim a sua organização. Os seus últimos e-mails remontam a fevereiro de 2008.

"Marulanda? É a figura paterna que mantém unida toda a grande família das Farc", explicou Olivo Saldaña, um desertor das Farc. Uma figura paterna que, havia anos continuava mantendo dezenas de reféns no meio da floresta.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde]

Soldados desconhecidos

Episódio crucial da história do Brasil, participação na Segunda Guerra ainda é pouco estudada

BORIS FAUSTO
A data de 8 de maio, que marca a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial em 1945, passou, mais uma vez, quase despercebida no Brasil.
No entanto ela merece ser lembrada, quando mais não fosse pela ativa participação do país no conflito, com o envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para lutar nos campos de batalha da Itália.
Essa história, que foi objeto de visões quase sempre maniqueístas, foi retomada com equilíbrio por historiadores voltados para uma revalorizada história militar, como é o caso de Luís Felipe da Silva Neves e Francisco César Alves Ferraz.
A participação do Brasil no conflito, vista com reservas pela Inglaterra, foi incentivada pelos EUA, em razão dos interesses continentais e também, embora em menor escala, da simpatia mútua que caracterizava as relações entre os presidentes Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt.
Curiosamente, na medida em que já se cogitava a formação de um organismo supranacional, que viria a ser a ONU, o Brasil esperava ter nela [na guerra] um papel significativo, contribuindo para a ordenação do mundo do pós-guerra.
Os primeiros contingentes brasileiros seguiram para a Itália em julho de 1944, somando, após novos envios, algo em torno de 25 mil homens.
O grosso das tropas foi recrutado entre as classes populares. Imaginar essa gente motivada por impulsos ideológicos seria um equívoco.
A maioria da população acompanhava, mal-e-mal, os acontecimentos internacionais e não tinha participação relevante nas manifestações entusiásticas da classe média urbana pela entrada do Brasil na guerra e pela instauração de um regime democrático no país. Conhecendo-se a popularidade de Vargas entre as camadas pobres, não é demais sugerir que o tema da luta pela democracia era estranho à maioria de nossos soldados.

Osso duro
Convocados para a guerra, impelidos assim pelas circunstâncias, os pracinhas demonstraram uma disposição e uma coragem heróicas, enfrentando um inimigo muito mais bem adestrado, em condições climáticas adversas, quando o inverno chegou.
Cerca de 460 brasileiros morreram no conflito, sem mencionar os feridos, sendo mais da metade das mortes decorrente da conquista, a duras penas, do Monte Castelo, na cordilheira dos Apeninos, onde se entrincheiravam os soldados alemães.
Na volta ao Brasil, os ex-combatentes foram recebidos com grande entusiasmo popular, expresso nas passeatas e homenagens. Mas, logo a seguir, muito deles, em especial os que sofreram os efeitos dos traumas da guerra, foram abandonados e esquecidos.
Em todo caso, pelas disposições transitórias da Constituição de 1946, os servidores públicos que participaram do conflito ganharam estabilidade, e o comandante da FEB, o então general Mascarenhas de Morais, recebeu as honras de marechal do Exército brasileiro.
A campanha das forças aliadas na Itália foi objeto de um livro recente, abordando o tema em grande detalhe.
Trata-se do estudo de Rick Atkinson, jornalista norte-americano especialista em história militar, com o título de "The Day of Battle - The War in Sicily and Italy, 1943-1944" (O Dia de Batalha - A Guerra na Sicília e na Itália, 1943-1944), publicado pela editora Henry Holt, em 2007. Valho-me aqui da resenha de Max Hastings, no "New York Review of Books", vol. 55, nº 5, 3/4/2008.
Em primeiro lugar, Atkinson destaca o fato de que, ao contrário do que pensava o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, defensor do desembarque na península, a Itália não era "o macio baixo-ventre da Europa", mas um osso duro de roer, defendido pelas tropas comandadas por Albert Kesselring, um general alemão extremamente talentoso.

Esforço conjunto
Além disso, a topografia peninsular, com seus rios e elevadas montanhas, facilitava a posição estratégica dos alemães e italianos e obrigava os aliados a estar sempre em movimento, expondo-se a pesadas perdas.
A batalha de Monte Castelo, descrita por ele, foi um típico exemplo dessas dificuldades. Outro aspecto lembrado pelo autor diz respeito à situação da guerra, quando as forças aliadas desembarcaram na Sicília, em julho de 1943.
Nessa altura, ao contrário do que às vezes se diz, a sorte da guerra não estava decidida, não obstante a derrota alemã em Stalingrado e uma série de outros reveses no Leste Europeu.
Entre a rendição alemã no norte da África, em maio de 1943, e o Dia D -o desembarque na Normandia, em junho de 1944-, a campanha da Itália concentrou o maior esforço terrestre de ingleses e norte-americanos para derrotar os exércitos de Hitler.
Entretanto, voltando agora ao Brasil e ao campo da história, como bem assinala Alves Ferraz, a participação da FEB e, especificamente, a atuação dos pracinhas na Segunda Guerra são temas que não alcançaram a relevância que merecem, nos estudos acadêmicos e nos livros didáticos mais recentes.
Desvalorização da história militar? Temor de incorrer em narrativas patrioteiras?
Sejam quais forem as razões, nada justifica o apagamento da memória desse episódio excepcional de nossa história, com repercussões relevantes no plano das relações internacionais do país assim como no plano interno.


[Folha de São Paulo, 01/06/2008]

Floresta ideológica

Para historiador do ambiente, significados antiquados sobre a Amazônia estão entranhados na opinião pública brasileira

ERNANE GUIMARÃES NETO

A Amazônia brasileira vive uma crise de identidade, pois é hoje uma região com significados conflitantes: última fronteira agrícola, área de risco para a soberania nacional, tesouro biológico, plataforma das novas ciências. Para o especialista em história ambiental José Augusto Pádua, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o melhor futuro do Brasil e do mundo depende da substituição dos velhos significados pelos novos.
Esses significados têm implicações no debate político -por exemplo, quando congressistas propõem alterar a reserva legal (percentual mínimo de floresta a ser preservado em propriedades rurais) na região, de 80% para 50%.
A "revolução científica" na floresta, defendida pela Academia Brasileira de Ciências em seu manifesto "Amazônia - Desafio Brasileiro do Século 21", que tem conseqüências no orçamento para pesquisa e educação, se baseia em novos entendimentos sobre o que significa a região. E, na floresta amazônica, o conflito retórico ganha contrapartida material envolvendo índios, caubóis, estrangeiros e armas.
Para o autor de "Um Sopro de Destruição" (ed. Jorge Zahar) o clima de faroeste na região mostra não só a baixa atuação do Estado como a necessidade de pensar a Amazônia de uma maneira atualizada. Pádua também aponta como engano a posição daqueles que, ao invés de louvarem o estabelecimento de reservas indígenas como garantia de preservação ambiental, fomentam teorias conspiratórias relacionadas à soberania nacional. "O vale-tudo e a ilegalidade predatória são as grandes ameaças à segurança da região, não as reservas indígenas."

FOLHA - O poder público está ausente da Amazônia brasileira?
JOSÉ AUGUSTO PÁDUA - Isso é consensual. É fundamental a imposição do Estado de Direito e, mais ainda, de um novo modelo de ocupação, não a repetição de modelos tradicionais da história brasileira.
A grande questão de fundo sobre a Amazônia é um conflito de significado: o que significa essa região no Brasil e no contexto planetário?
Não há dúvida de que a consolidação de um território tão grande e unificado, desde o período colonial, é uma realização histórica impressionante.
Mas a Amazônia aparece com muita força, quando se pensa o futuro da Terra, por quatro razões que não estavam colocadas tradicionalmente.
Em primeiro lugar, há a biodiversidade -tanto em termos científicos quanto econômicos, com a biotecnologia.
Depois, a água doce -questão mais imediata e urgente, pois já se desenha escassez de água, com potenciais conflitos por acesso a ela.
Também o clima -tanto o que a Amazônia representa em termos de armazenamento de carbono quanto sua influência sobre o sistema de chuvas. Mais de 60% do vapor de água para as chuvas do Brasil vem da floresta, portanto a Amazônia é fundamental para a agricultura do Brasil como um todo. E a biomassa, uma das alternativas mais concretas para um mundo pós-petróleo.
Tradicionalmente, a Amazônia seria uma última fronteira, conquistada passo a passo, principalmente por pecuária e agricultura. Muitos dos atores sociais que estão presentes no caldeirão social da Amazônia continuam tendo esse significado na cabeça.

FOLHA - Quem são?
PÁDUA - Mais do que tudo os pecuaristas. Houve uma explosão do gado bovino na Amazônia. De 37 milhões de cabeças em 1996 para 76 milhões em 2006, crescimento muito maior do que a média nacional [que esteve próxima de 30%].
Muitos atores -pecuaristas, fazendeiros e políticos ligados a esses setores- têm uma visão muito antiga. É necessário que haja uma revisão do que significa a Amazônia planetariamente, o tesouro que as vicissitudes da história colocaram em nossas mãos.

FOLHA - Com a palavra "planetariamente", o sr. quer dizer que a Amazônia não é só do Brasil?
PÁDUA - Não vejo garantia de ganho ambiental com a internacionalização da Amazônia. A performance ambiental de países poderosos no atual cenário não é positiva, e a ONU não tem tido a capacidade de evitar, por exemplo, a falta de responsabilidade dos EUA ao não assinarem o protocolo de Kyoto.
Não existe um questionamento sério da soberania do Brasil ou dos outros países da região a respeito da Amazônia. Há eventualmente declarações levianas. Há paranóia e muita ideologia.

FOLHA - Que ideologia?
PÁDUA - Há uma confluência de interesses muito locais, como aqueles dos arrozeiros, por exemplo, e de visões paranóicas (mesmo que às vezes sinceramente patrióticas). Aqueles não teriam tanta relevância se não fosse pelo cultivo dessa visão da internacionalização, especialmente pelos meios militares.
Não descarto a possibilidade de uma ameaça desse tipo acontecer no futuro distante, em um contexto de grande deterioração e ruptura da ordem internacional. Alguns analistas pensam que as conseqüências do aquecimento global poderiam ser um fator importante na manifestação desse cenário altamente negativo. A preocupação com a defesa do território e do tesouro que é a Amazônia é razão para o fortalecimento das Forças Armadas -a região precisa de mais Estado, não menos.
Mas é lamentável a obsessão de muitos setores das Forças Armadas por terras indígenas, como se essas fossem a grande ameaça à soberania. Há problemas maiores, como o narcotráfico, o contrabando, guerrilhas dos países vizinhos, prostituição infantil, desrespeito à legislação ambiental.

FOLHA - Estamos vivendo o nosso faroeste, como ocorreu na expansão dos EUA?
PÁDUA - É importante esse paralelo: o processo de imposição do Estado de Direito no Velho Oeste americano teve atuação forte e determinada do Estado.
Por exemplo: o desarmamento do Velho Oeste não aconteceu por obra do acaso. Foi um processo político de imposição do Estado de Direito numa região de fronteira onde a violência era privada e descontrolada.

FOLHA - É possível o desenvolvimento dessa região sem agressão ambiental?
PÁDUA - É possível buscarmos ao máximo os modelos alternativos, dentro de uma ordem nacional que garanta a soberania. O "pulo do gato" é a mudança de mentalidade. Concordo com o documento da Academia Brasileira de Ciências, segundo o qual é preciso um investimento enorme em ciência e tecnologia, que faça jus à dimensão ecológica da região.
Mas o caminho não vai ser atingido reproduzindo modelos do passado. Hoje, para cada ser humano na Amazônia, já há 3,5 cabeças de gado.

FOLHA - Que tendências precisam retroceder na Amazônia? Algumas comunidades indígenas têm grandes rebanhos [na casa das dezenas de milhares de cabeças], não?
PÁDUA - Há pecuária nas áreas indígenas. Mas não chega aos pés do que há fora delas.
Há o que não pode retroceder: retroceder de 80% para 50% da propriedade a terra que deve ser reserva legal seria uma catástrofe. Essa legislação sinaliza o futuro, "só 20% podem ser utilizados com os velhos métodos". Novos métodos não ficam imobilizados.
A pecuária precisa retroceder. É mais apropriada para biomas mais abertos, como caatinga, cerrado e pampa.
A Amazônia precisa crescer com o rumo da economia do conhecimento, dar o salto para o futuro, não replicar o que se fez na Mata Atlântica. Não é idiossincrasia de Lula fazer demarcação contínua: vem da Constituição de 1988.
Essa política tinha diferentes objetivos. Um tem a ver com os direitos dos índios. Apesar das dificuldades, o aumento da população indígena é um indicador de que a demarcação das terras vem tendo resultados.
Mas há uma outra agenda: é uma política de reorganização de fronteira e de reapropriação pelo poder público das terras da Amazônia, onde ocorreu durante o regime militar um processo descontrolado de privatização de terras.
Os maiores países florestais do planeta, como o Canadá e a Rússia, têm controle muito maior sobre suas massas florestais do que o Brasil. O Estado cede o uso em regime de concessão. No Brasil houve uma privatização muito grande. Praticamente 36% da Amazônia é de terras privadas. Delas, só 4% têm títulos de propriedade com registro válido.
Há uma anarquia, uma quantidade enorme de grilagem.

FOLHA - Trata-se de uma "privatização gratuita"?
PÁDUA - Gratuita e ilegal. Quando se determina que cerca de 20% das terras da Amazônia serão terras indígenas, existe essa agenda implícita, que muitas vezes não fica clara para a opinião pública.
É a criação de reservas ecológicas, de áreas onde o Estado tem maior presença.
A demarcação passou por todos os rituais que a lei prevê, de forma que isso deveria ser considerado um ponto muito positivo do Brasil no debate ambiental internacional.
Cerca de 14% da Amazônia já está demarcada como reserva indígena, o que representa uma conquista bastante rápida -da Constituinte para cá. Acho curioso que a diplomacia brasileira, ao invés de usar isso como um "ativo", adote uma postura quase defensiva sobre o assunto. A sociedade brasileira deveria ver essas reservas também como ambientais.
Hoje há várias propriedades com mais de 1 milhão de hectares. Se um proprietário faz um acordo com o narcotráfico, é muito mais difícil o Estado controlar essas terras do que as indígenas, onde o Exército entra sem pedir licença, pois, por definição, são terras do Estado.

FOLHA - Como o sr. analisa o conflito, no governo, entre as demarcações e o desenvolvimentismo?
PÁDUA - Esse conflito é em grande parte ideológico, produzido na confluência de interesses nacionais, de desenvolvimento ou soberania, e interesses locais, pequenos, de atores que querem lucrar -os políticos locais usam isso como argumento eleitoral.
Vejamos um exemplo forte: protesta-se que Roraima vai ter 43% de seu território em reservas. Em primeiro lugar, é preciso perceber o estatuto especial desses novos Estados [Roraima e Amapá], criados pela Constituição de 1988.
Alguns analistas consideram que foi precipitada a transformação desses territórios em Estados. Foi decisão legítima, não há o que contestar. Mas há uma situação socioeconômica especial, com o Orçamento praticamente todo de recursos federais.
Mesmo assim, os 57% restantes são um território muito grande -há nove Estados brasileiros menores do que essa área. Não há como dizer que as reservas irão impedir o desenvolvimento do Estado.

FOLHA - Como vê os debates relacionados, por exemplo, à instalação de usinas elétricas?
PÁDUA - Esses debates são positivos para o desenvolvimento sustentável do país. A discussão democrática sobre determinada obra pública -por exemplo, uma represa com conseqüências ambientais e sociais grandes- não é um entrave, mas, sim, um aperfeiçoamento do processo como um todo.
[O historiador, 1886-1964] Karl Polanyi colocou muito bem: quando se tem um conflito entre dois setores, o resultado histórico não é uma vitória absoluta de um lado; ele é, na verdade, moldado pela dinâmica do conflito.
As represas serão construídas em condições tecnológicas muito melhores, de forma mais inteligente do ponto de vista ambiental.
Os setores que se opõem a obras não são derrotados, pois muitas de suas demandas serão incorporadas, e a própria concepção dos projetos futuros passará a incorporar preocupações ambientais que antes não existiam.
Se tivesse havido debate no passado, não teria sido construída a represa de Balbina [AM] como foi -um desastre ambiental e econômico.

FOLHA - Marina Silva deixou o cargo de ministra do Meio Ambiente num bom momento?
PÁDUA - Não do ponto de vista do governo. Ela renunciou num momento confuso, com a primeira-ministra alemã [Angela Merkel] no Brasil, o que deu maior visibilidade mundial ao acontecimento.
Mas foi bom o momento como atitude política, colocou a questão de volta ao centro das discussões, pôs o governo numa situação difícil de retroceder em política ambiental. Se fosse uma saída mais comportada, talvez não fosse escolhido como substituto alguém tão comprometido com a ecologia quanto Carlos Minc.

FOLHA - O Protocolo de Kyoto tem validade hoje?
PÁDUA - No contexto da comunidade internacional, o fato de ele existir já é um grande avanço, inclusive por reconhecer que houve graus diferenciados de impacto de cada país -uma inovação.
É um divisor de águas, mas está ficando ultrapassado, pois precisamos de mais ousadia em relação a questões como o aquecimento global.
Mas sou otimista. Em 1992 [quando houve a cúpula ambiental no RJ], havia preocupação global; desde então, houve retrocesso. Mas agora [a questão] está de volta aos jornais.
[Folha de São Paulo, 01/06/2008]