Família real no Brasil...

José Murilo de Carvalho e Kenneth Maxwell defendem que a vinda da família real foi o marco zero da existência política do Brasil; já para Evaldo Cabral de Mello, "herdamos desse período o pior" que havia...

"O Brasil não existiria", afirma Carvalho
Syvia Colombo
Família real no BrasilAutor de uma biografia do imperador dom Pedro 2º ("Dom Pedro 2º -Ser ou Não Ser", Cia. das Letras) que passou meses nas listas de livros mais vendidos, o historiador mineiro José Murilo de Carvalho acredita que a unidade territorial é uma das questões mais importantes a serem debatidas na efeméride dos 200 anos da vinda da família real. Ela teria sido responsável pelo "Brasil de hoje". Mas, ao ponderar sobre se isso é bom ou ruim, Carvalho prefere evocar Guimarães Rosa: "pãos ou pães, questão de opiniães". Leia abaixo trechos da entrevista que o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro concedeu à Folha, por e-mail.

FOLHA - As celebrações dos 200 anos da vinda da família real estão começando a tomar espaço na mídia e na academia. Que aspectos o sr. acredita serem mais importante levantar para a discussão sobre esse episódio hoje?
JOSÉ MURILO DE CARVALHO - Há dois momentos distintos igualmente importantes. O primeiro, a vinda da corte em si. O segundo, as conseqüências dessa vinda. Em nenhum dos dois casos houve determinismos históricos. O príncipe dom João podia ter decidido ficar em Portugal. Nesse caso, o Brasil com certeza não existiria. A colônia se fragmentaria, como se fragmentou a parte espanhola da América. Teríamos, em vez do Brasil de hoje, cinco ou seis países distintos. Uma vez decidida a vinda, as coisas também poderiam ter tomado caminhos distintos, inclusive a fragmentação. Discutir essas alternativas e os fatores que conduziram os acontecimentos para a direção que tomaram me parece ser um tema relevante.

FOLHA - Quais incorreções nas interpretações sobre essa passagem da história deveriam ser revistas?
CARVALHO - Há excessiva, quase exclusiva, ênfase na decisão de dom João 6º de fugir da Europa. Ora, o grau de liberdade que tinha era mínimo. Toda sua ação foi pautada pelo conflito europeu, pela rivalidade entre a França napoleônica e o Reino Unido. Suas únicas opções, grandes opções sem dúvida, eram fugir ou não fugir. Sem a França, ele não teria pensado em sair. Sem o Reino Unido, ele não teria conseguido sair. O estudo desse condicionamento está quase totalmente abandonado. É positiva a recuperação das imagens de dom João 6º e de Carlota Joaquina e seu resgate em relação às abordagens caricatas do tipo exibido no filme de Carla Camurati ("Carlota Joaquina - Princesa do Brazil", 1995). A respeito desta, o trabalho foi feito pela historiadora Francisca de Azevedo [autora de "Carlota Joaquina na Corte do Brasil" (Civilização Brasileira) e organizadora da correspondência da princesa, recém-lançada pela Casa da Palavra].

FOLHA - Do ponto de vista da academia, o sr. acredita que a efeméride trará um elemento novo ao debate, que possa contemporizar vertentes historiográficas diferentes? A saber: os historiadores mais ligados ao marxismo, que acreditam que o processo de ruptura do Antigo Regime levaria o Brasil à Independência, inevitavelmente, e, por outro lado, os historiadores que privilegiam a dinâmica interna na constituição do Brasil livre. Há conciliação possível?
CARVALHO - Creio que o debate a que você se refere tem a ver com ênfases distintas em diferentes determinações do processo e da natureza da Independência: fatores externos ou internos, econômicos ou políticos. As diferenças continuarão. Quanto a mim, não concebo história sem ação humana e não concebo ação humana sem contexto histórico. Daí não acreditar em determinismos nem em aleatoriedade. Sobre a Independência, o importante é discutir como ela se deu. A grande diferença em relação à América espanhola foi a manutenção da unidade da colônia portuguesa e a monarquia. Daí veio o Brasil de hoje. Se para o bem ou para o mal, é [o escritor] Guimarães Rosa quem decide: "Pãos ou pães, questão de opiniães".

FOLHA - Seu livro sobre dom Pedro 2º é um best-seller. A que o sr. atribui esse sucesso? O que tem atraído tanto a atenção dos leitores?
CARVALHO - Creio que a boa recepção do livro tem a ver com o momento histórico.Depois do mensalão e de outras bandalheiras políticas, da conseqüente desmoralização dos poderes constitucionais, sobretudo do Congresso, da predominância na vida pública do interesse privado e da ausência de virtude republicana os cidadãos estavam em busca de exemplos de governantes com espírito público.

"Isso é armação de carioca", diz Cabral de Mello
D. JoãoEssa história de comemoração da vinda da corte ao Brasil é armação de carioca para promover o Rio de Janeiro." Destoando do alvoroço em que se encontram historiadores, prefeitura do Rio, monarquistas e festeiros de plantão, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello diz que não existem comemorações históricas autênticas e que a efeméride dos 200 anos pode servir para reforçar interpretações equivocadas sobre o período joanino e a Independência. Leia, abaixo, trechos da entrevista que o autor de "A Fronda dos Mazombos" (ed. 34) e "Rubro Veio" (ed. Topbooks) concedeu à Folha, por telefone.

FOLHA - O que o sr. está achando da comemoração dos 200 anos da vinda da corte ao Brasil?
EVALDO CABRAL DE MELLO - Não gosto de celebrações de efemérides em geral. Não acredito em comemorações históricas que sejam autênticas. Não quis me envolver nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento, por exemplo. Essa coisa de fazer festa em torno de dom João 6º é armação de carioca para promover o Rio.

FOLHA - Que problemas o sr. vê no modo como esse debate está vindo à tona?
MELLO - Há no Brasil uma insistência em reforçar o lugar-comum segundo o qual foi dom João 6º o responsável pela unidade do país. É até difícil reagir contra a historiografia que celebra a manutenção dessa integridade como resultado da vinda da família real. Isso não é verdade. A unidade do Brasil foi construída ao longo do tempo e é, antes de tudo, uma fabricação da coroa, mas não com o objetivo de que se criasse a partir dela um país independente.Ela está relacionada à situação de Portugal no contexto europeu daquela época. Os poderosos eram a França e a Inglaterra e era preciso pensar estratégias para garantir o futuro do país naquele panorama.A idéia de que era preciso fortalecer um império com os territórios de Portugal e Brasil começou no século 18, com dom Luís da Cunha [1662-1740, influente diplomata português que viveu em Londres, Madri e Paris], e foi desenvolvida depois com o Conde de Linhares, dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812). Além disso, é um absurdo que hoje se celebre a unidade antes de tudo -quando se pensa nesse momento da nossa história-, em vez de discutir que tipo de instituições republicanas e constitucionais estavam surgindo. Parece que herdamos o complexo de pequenez de Portugal para valorizar tanto essa questão.

FOLHA - O Brasil não melhorou depois da vinda da família real?
MELLO - A corte portuguesa que aqui chegou era uma corte parasita, que explorava as Províncias para manter a mesma estrutura que tinha na Europa. Nem sequer houve um esforço de adaptar a máquina administrativa a uma nova situação, a uma extensão territorial tão grande. Estando aqui, dom João 6º foi levando as coisas com a barriga. Só um raciocínio tortuoso pode relacionar suas atitudes diretamente com a questão da unidade. Quando os historiadores pensam assim, não estão distinguindo os resultados das ações de dom João 6º das conseqüências inesperadas que elas provocaram. Em geral, aqueles que se dedicam a esse tema não deixam claro o que era intencional e o que não era, por parte do rei. Também ninguém dá importância ao fato de que dom João 6º esvaziou nosso erário antes de partir. Todos lembram que ele fundou o Banco do Brasil, mas nunca que deixou o Brasil falido quando foi embora daqui. A verdade é que nós herdamos desse período o pior, uma monarquia unitária que todo o país teve de sustentar. A própria urbanização do Rio se deu às custas das Províncias. Deve-se lembrar que, nos primeiros tempos, a corte desalojou os moradores da cidade para que os nobres tivessem onde viver. No período joanino, o Rio virou uma cidade portuguesa, um corpo estranho dentro do Brasil. E as outras regiões é que pagaram a conta. Foi só depois de muito tempo que o Rio foi se tornar uma cidade brasileira.

FOLHA - E quanto à relação entre a vinda da família e a Independência?
MELLO - Nunca se reconheceu que a Independência foi uma manobra contra-revolucionária encabeçada por dom Pedro 1º, cuja intenção era imunizar o Brasil do contágio da onda liberal que estava tomando Portugal [com a revolta constitucionalista do Porto, em 1820]. Originalmente, os problemas no Rio se deram entre portugueses liberais e absolutistas. Estes queriam impedir que aqui se passasse o mesmo que estava sucedendo em Portugal. Depois é que os brasileiros se integraram ao processo. É muito pertinente a idéia de "interiorização da metrópole", formulada por Maria Odila Leite da Silva Dias ["A Interiorização da Metrópole e Outros Estudos", ed. Alameda].

FOLHA - Vê um viés conservador no resgate que está sendo feito dos personagens da monarquia?
MELLO - Sim, isso existe. E os personagens são todos lamentáveis, de uma mediocridade impressionante. E agora ficam com essa história de que dom João 6º se apaixonou pelo Brasil, pelo Rio, por São Cristóvão... É tudo de um sentimentalismo muito besta e apelativo.


Para Maxwell, país não permite leituras "convencionais"
Marcos Strecker
Embarque da família real para o BrasilFoi um dos momentos fundadores mais decisivos na formação do Brasil", diz o brasilianista Kenneth Maxwell, diretor do Programa de Estudos Brasileiros na Universidade Harvard (EUA), sobre a chegada da família real, há 200 anos. Para o historiador britânico, esse acontecimento foi essencial para o desenvolvimento do Brasil no século 19 e para diferenciar a história brasileira em relação à América espanhola. Para ele, o movimento de independência da década de 1820 "não aconteceu no Brasil, mas em Portugal". Para o autor de "A Devassa da Devassa" (Paz e Terra), que está em São Paulo a convite da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o interesse atual pelas grandes figuras históricas não é um fenômeno brasileiro. Também nos EUA, segundo ele, a historiografia biográfica está em alta.

FOLHA - A chegada da família real em 1808 foi um momento fundador para o país?
KENNETH MAXWELL - Sim. Na minha opinião, foi um dos momentos fundadores mais decisivos na formação do Brasil. Principalmente porque, com a chegada de uma corte européia na América, algo que não aconteceu em nenhum outro lugar, houve uma transferência de legitimidade para um governo localizado numa colônia na América, transformado-o assim, imediatamente, no centro de um império global, como de fato o Brasil era depois de 1808.

FOLHA - Quais são os principais pontos positivos e negativos da transferência da corte?
MAXWELL - O ponto mais positivo foi que o Brasil não enfrentou uma alienação entre a monarquia e o povo, no sentido de que houve um período de afastamento total entre a monarquia espanhola e a América espanhola, depois das invasões napoleônicas. A América espanhola ficou sem ligação com a metrópole no sentido de governança, foi necessário inventar novas formas de representação. Em muitas partes isso provocou grandes problemas de legitimidade e guerras internas sangrentas por mais de 20 anos, com grande destruição de infra-estrutura, de instituições e de riquezas. No Brasil, em contraste, houve uma continuidade. As instituições novas foram criadas pela própria coroa portuguesa, e a maioria delas foi estabelecida no Rio de Janeiro, que assim assumiu um papel centralizador dentro de uma América portuguesa que antes era muito fragmentada no sentido administrativo. Houve resistência a isso, claro, principalmente no Nordeste (Pernambuco, por exemplo). Mas, no fim, o poder central foi mantido. Por outro lado, essa institucionalização no Brasil de um regime monárquico, arcaico, europeu, teve conseqüências negativas para o desenvolvimento do país, ao trazer da Europa uma aristocracia e burocracia parasíticas, corruptas e ineficientes, além de ambições dinásticas e expansionistas. De fato, acho que uma das causas do fracasso da idéia de um império luso-brasileiro baseado no Brasil foi a pretensão imperialista na América do Sul do regime no Rio de Janeiro, que provocou guerras no sul -principalmente na região onde o Uruguai está agora estabelecido- e também tentativas de expansão ao norte, na Guiana, contra os franceses. No norte, isso foi devido a pressões britânicas, em conseqüência do conflito com Napoleão na Europa. No sul foi por conseqüência de ambições de Carlota Joaquina para restabelecer a presença espanhola no rio da Prata, com ela como chefe. Isso trouxe grandes danos financeiros para o regime de dom João 6º.

FOLHA - O que explica a atenção que temas ligados à família real estão despertando? Livros como "1808" (ed. Planeta), do jornalista Laurentino Gomes, e a biografia "Dom Pedro 2º" (Cia. das Letras), do historiador José Murilo de Carvalho, viraram fenômenos editoriais...
MAXWELL - São bons livros, bem escritos, e um reflexo do interesse recente do público brasileiro por sua própria história. Mas também fazem parte de um fenômeno global, em que há um novo florescimento de uma historiografia biográfica. Por exemplo, nos EUA há neste momento um enorme interesse em biografias dos fundadores da República americana. Muitos são best-sellers. A problemática do monarquismo e a maneira com o reinado de dom Pedro 2º funcionou na prática são os assuntos principais dos muitos trabalhos de José Murilo de Carvalho e de Lilia Moritz Schwarcz. A contraparte disso, também importantíssima, está focalizada na importância dos regionalismos brasileiros, com contribuições fundamentais de Evaldo Cabral de Mello.

FOLHA - Estamos vivendo um momento de novas interpretações em relação ao período imperial?
MAXWELL - A minha visão é um pouco mais globalizada, com foco limitado no período de 1808 até 1820. A razão é que o Brasil tentou na época ser o centro do império luso-brasileiro e devemos definir um pouco melhor como esse império foi construído e as causas de sua derrota.Por exemplo, na minha opinião, o movimento de independência da década de 1820 não aconteceu no Brasil, mas em Portugal. Foram os portugueses que não quiseram ser dominados por uma monarquia baseada na América.Com a rejeição da dominação brasileira, eles atraíram muitos dos problemas de fragmentação, guerras civis e descontinuidade que são parecidos com aqueles que estavam acontecendo na América espanhola.É sempre importante, ao pensar a história do Brasil, considerar que ela não se encaixa em interpretações convencionais. É sempre necessário pensar um pouco de forma contrafactual, porque a história brasileira não segue a mesma trajetória de outras histórias das Américas. O rei estava aqui, a revolução liberal estava lá. A continuidade estava aqui, a descontinuidade estava lá.Acho que isto explica muito das coisas que aconteceram depois no Brasil, no século 19.

[Folha de São Paulo, 25/11/2007]

Paz no Oriente Médio: A verdadeira solução de dois Estados

O encontro de paz promovido pelo presidente Bush para israelenses e palestinos ignora uma verdade dolorosa - uma que já estamos vivendo no Oriente Médio

Aluf Benn, em Tel Aviv
Barreira construída por Israel na Cisjordânia separando judeus e palestinosNesta semana, o presidente Bush reunirá uma conferência internacional em Annapolis, Maryland, para promover a "solução de dois Estados" para israelenses e palestinos. As reuniões e proclamações nobres visando tal meta, entretanto, terão pouca relação com a realidade aqui no Oriente Médio. Basicamente, Bush está atrasado demais. Para a maioria dos israelenses, a solução de dois Estados já existe.

Quando eu cresci perto de Tel Aviv nos anos 70, os palestinos da Cisjordânia e de Gaza eram uma parte indispensável do ambiente. Muitos deles trabalhavam em construções, ajudando a transformar as plantações de morango de minha cidade natal em um subúrbio moderno. Outros permaneciam toda manhã em uma fila no cruzamento da estrada da cidade -uma visão comum nas cidades israelenses na época- aguardando pela chance de conseguirem um trabalho diário. Os palestinos com mais sorte conseguiam trabalho de frentista em postos de gasolina, de lavadores de pratos em bares e restaurantes ou como mecânicos em oficinas de automóveis. Eles serviam clientes israelenses e recebiam alcunhas hebraicas por seus empregadores. Assim, Ghazi se tornou "Roni" e Mustafa se transformou em "Moti". Apesar do problemático sistema de classes, muitos destes trabalhadores experimentavam ao menos um certo grau de integração.

"Os árabes", como eram chamados, preencheram o setor de serviços do país por duas décadas depois de Israel ter ocupado a Cisjordânia e Gaza em junho de 1967. Mas privada de direitos civis e políticos, esta classe inferior se rebelou em dezembro de 1987. Chamada de primeira intifada, o levante palestino mudou abruptamente a realidade de Israel. Os trabalhadores palestinos desapareceram de vista, primeiro os jovens, depois os mais velhos.

Nascida poucos meses depois do estouro da primeira intifada, minha filha cresceu em um ambiente muito diferente do que o meu. Ela nunca conheceu um palestino da Cisjordânia ou de Gaza. Atualmente com 19 anos, ela vê nossos vizinhos palestinos apenas na TV e os vê apenas como estranhos. Ela está muito mais familiarizada com nomes conhecidos e personagens de sitcom americanos do que com as pessoas que vivem a 24 quilômetros ao leste de sua casa em Tel Aviv.

Minha filha está longe de ser única com tal experiência. Os israelenses de hoje que vivem confortavelmente na área de Tel Aviv raramente cruzaram a "Linha Verde" que separa Israel da Cisjordânia. Nos tempos pré-intifada, muitos israelenses viajavam a curta distância até as colinas para comprar móveis baratos em Bidyah ou para consertar seus carros em oficinas baratas em Jenin. Não mais. Desde que a muito mais sangrenta segunda intifada estourou em setembro de 2000, todas as cidades e aldeias palestinas ficaram fora dos limites para os israelenses. Além disso, poucos israelenses visitam mesmo os controversos assentamentos israelenses nas colinas. (Igualmente, seus habitantes religiosos, altamente ideológicos, se sentiriam deslocados em Tel Aviv, assim como os palestinos.) Agora, o único motivo para ir a Nablus ou Ramallah, ou para algum assentamento israelense nos arredores delas, seria em serviço militar. Caso contrário, entrar nestas cidades é uma perspectiva com risco de vida para israelenses.

Mesmo a Cidade Velha de Jerusalém, oficialmente uma parte soberana de Israel, perdeu seu apelo para a maioria dos israelenses. Na infância e adolescência, eu percorri os becos, mercado e lugares sagrados da Cidade Velha inúmeras vezes com minha família, colegas de classe e amigos. Nós caminhávamos até o topo do muro otomano, ou comíamos homus no Abu Shukri e tomávamos chá no bairro cristão. Imagine visitar uma das maravilhas mais exóticas do mundo a menos de uma hora de carro de casa! Mas poucos israelenses que cresceram na realidade pós-intifada sequer reconheceriam esses lugares agora. Atualmente, eu visito o mercado apenas quando tenho visitantes estrangeiros. Para muitos dos meus pares em Tel Aviv, a Cidade Velha é ainda mais remota que Nova York, Londres ou a Tailândia. Para eles, a parte judaica da cidade é suficiente. Eles consideram Jerusalém Oriental, com seus moradores palestinos, estranha e assustadora demais para visitar.

A verdade é, o divórcio popular que se consolidou entre israelenses e palestinos tem um profundo significado político. Se você não vai para a Cisjordânia ou Gaza exceto a serviço militar, então, para todos os fins práticos, estes lugares estão do outro lado da fronteira. Estado oficial ou não -não importa. Apenas esquerdistas radicais e fãs ardorosos do processo de paz ainda falam sobre "a ocupação". A maioria dos israelenses, que nunca testemunhou suas feias manifestações - os checkpoints, as proibições de viagem, as demolições de casas - mal se dá ao trabalho de pensar em ocupação.

Esta paralaxe política explica um paradoxo na opinião pública israelense. As pesquisas indicam um forte apoio entre os israelenses pelo estabelecimento de um Estado palestino na Cisjordânia e em Gaza. Mas este apoio da maioria não se traduz em ação. Os últimos três primeiros-ministros israelenses - Ehud Barak, Ariel Sharon e o atual, Ehud Olmert - declararam que um Estado palestino é do interesse de Israel. Mas na realidade sua criação parece mais remota do que nunca. A Cisjordânia é governada de forma híbrida: pelas forças de segurança israelenses, que também controlam as fronteiras externas; pelos colonos israelenses e seus órgãos municipais; pela disfuncional Autoridade Palestina, que presta os serviços públicos; e pelos grupos terroristas. Gaza atualmente é controlada pelo Hamas, mas com Israel basicamente fornecendo serviços básicos como alimentos e eletricidade. É uma mistura complicada, uma colcha de retalhos de autoridades e responsabilidades. Mas, por mais carentes que algumas partes das áreas palestinas estejam atualmente, para a maioria dos israelenses a situação parece de alguma forma estar funcionando.

Segundo o ponto de vista da maioria dos israelenses, portanto, "se não está quebrado, não conserte". Apoiar o Estado palestino em princípio e defendê-lo em pesquisas de opinião não custa nada. Mas por que se dar ao trabalho de arcar com os custos de implementar de fato a solução de dois Estados se ela já existe de fato? Uma retirada israelenses da Cisjordânia, um pré-requisito para um Estado palestino lá, obrigaria a relocação de dezenas de milhares de colonos, que poderiam perturbar a ordem pública e mesmo recorrer à violência. Também significaria que as forças armadas israelenses teriam que ceder controle das colinas com vista para os centros populacionais israelenses e um aeroporto internacional, os expondo aos foguetes dos militantes palestinos e a homens-bomba.

Sob tais circunstâncias, mudar o status quo é pouco atraente, seja para melhor ou para pior.
O isolamento dos israelenses dos territórios ocupados não foi apenas uma reação voluntária à fúria, violência e aos ataques terroristas mortais dos palestinos. É um esforço deliberado do governo. Nos últimos 15 anos, todos os governos israelenses implementaram uma política de "separação", visando distanciar e proteger grande parte da sociedade israelense da realidade desagradável além da Linha Verde.

Em 24 de maio de 1992, Fouad el Umarin, um palestino de 18 anos de Gaza, atacou Helena Rapp, uma estudante israelense de 15 anos a caminho de sua escola em Bat Yam, perto de Tel Aviv, a apunhalando até a morte. Na época, Israel estava a apenas semanas de uma eleição crucial, na qual o líder trabalhista Yitzhak Rabin disputava com o primeiro-ministro em exercício, Yitzhak Shamir, o líder do Likud. Rabin prometia criar "autonomia" palestina na Cisjordânia e em Gaza, enquanto Shamir, o último crente na Grande Israel, defendia a manutenção dos territórios sob plena ocupação israelense. Sua idéia de resposta à primeira intifada foi a construção de mais assentamentos judeus na Cisjordânia.

O assassinato de Helena Rapp foi seguido por três dias de violentos protestos antipalestinos em Bat Yam. Turbas destruíram propriedades e bateram em transeuntes que pareciam árabes. Isto deu à campanha de Rabin um ás. "Nós temos que tirar Gaza de Tel Aviv", declarou o ex-líder militar, que era respeitado pelos israelenses como "Sr. Segurança".

Em agosto de 1993, o recém-eleito Rabin assinou o acordo de Oslo com o líder palestino Iasser Arafat. A Autoridade Palestina, sob a liderança de Arafat, foi formada em Gaza e em partes da Cisjordânia, enquanto Israel mantinha sua responsabilidade pela segurança, incluindo a dos assentamentos judeus ali. O Hamas, que era contrário ao processo de paz, lançou uma onda de terror - primeiro com facas, depois com homens -bomba.

A resposta de Rabin foi acelerar o processo de separação. Mesmo antes de Oslo, seu governo declarou um "fechamento completo", proibindo palestinos de entrarem em Israel e trabalharem lá. Então construiu estradas especiais para os colonos judeus, os poupando da viagem desagradável e cada vez mais perigosa pelas cidades palestinas vizinhas. (Nos últimos anos, Israel criou dois sistemas rodoviários separados na Cisjordânia, proibindo os palestinos de usarem as estradas "israelenses".) Uma cerca foi construída ao redor da Faixa de Gaza, a isolando de Israel, que ainda mantinha mais de 20 assentamentos israelenses do outro lado.

Essas medidas provaram ser irreversíveis. Em uma mudança chave, Israel começou a importar trabalhadores da Tailândia, Romênia e China para substituir os palestinos nos campos e nos andaimes. Independente da mão-de-obra palestina, assim como mais aceita globalmente graças ao processo de paz de Oslo, a economia de Israel se voltou rapidamente para o Ocidente e novos mercados se abriram para ela na Ásia e no antigo Bloco Soviético. Seus laços remanescentes com a economia palestina, que estava minguando, envolvia exportações de produtos e serviços básicos.

Uma segunda rodada de separação ocorreu sob a liderança de Ariel Sharon, que assumiu o governo em 2001. Sharon foi um pária político por muitos anos, mas sua eleição foi a resposta dos israelenses furiosos e ameaçados ao colapso do processo de paz e à segunda intifada, que, diferente do furioso atirar de pedras da primeira, estourou com armas e atentados a bomba suicidas. Foi uma ironia histórica de primeira o fato de Sharon, um arquiteto do projeto de assentamentos e do controle a longo prazo de Israel sobre os territórios ocupados, ter feito mais que seus pares para reduzi-la. Enfrentando a pior onda de atentados suicidas em 2002, Sharon concordou de forma contrariada a construir uma barreira de segurança para separar Israel da Cisjordânia. Apesar de sua rota, que deixa um décimo do território da Cisjordânia no ocidente, assim como lado israelense de forma controversa fora de Israel, a maioria dos israelenses vêem "a cerca" como uma bênção. Sua construção coincidiu com uma redução acentuada nos atentados suicidas, dando aos israelenses uma sensação renovada de segurança. Mais importante, ela criou uma divisão física entre os dois lados. À medida que se aproxima de sua conclusão, a obra torna cada vez mais impossível simplesmente cruzar as colinas até a Cisjordânia e vice-versa.

Em 2005, Sharon realizou seu empreendimento mais ousado, a "desocupação" de Gaza. Ele ordenou a remoção de todos os assentamentos israelenses e dos postos militares, recuando para a fronteira pré-1967. Apesar dessa medida ter sido apoiada pela maioria dos israelenses na época, muitos passaram a questioná-la posteriormente, quando a área evacuada se transformou em um bastião de simpatizantes do Hamas e uma base para ataques com foguetes contra as cidades e aldeias de fronteira israelenses. Todavia, a desocupação selou Gaza atrás de muros altos, e nos últimos dois anos Israel buscou cortar seus laços e responsabilidades remanescentes ali. O governo declarou Gaza "uma entidade hostil" e marcou as passagens como postos de fronteira.

As medidas de separação cada vez maiores, a independência econômica em relação aos palestinos e acima de tudo as barreiras físicas isolaram os israelenses como nunca antes do "outro lado". Isto permitiu a Israel florescer como um lugar de primeiro mundo, um enclave ocidental no coração de um mundo árabe altamente estagnado.

Mas esta situação tem um preço. Ao permitir que os israelenses ignorem seus vizinhos inamistosos e a viverem sob a ilusão de que seu país existe em algum lugar na Europa ou na América do Norte, o status quo reduz a motivação dos israelenses para se chegar a um meio termo e à paz com os palestinos. Para observadores da deterioração das condições dos palestinos nos territórios ocupados, tal sintoma de negação israelense pode parecer moralmente repugnante. E à medida que cresce a privação naquelas áreas, o status quo provavelmente não será sustentável -um caos ainda maior poderá surgir e se tornar um problema ainda maior para o governo e povo de Israel.

Talvez mais significativamente, o status quo solidificado impeça uma eventual aceitação do Estado judeu no Oriente Médio, uma meta já difícil. Em um momento em que o Irã e seus aliados buscam minar a legitimidade de Israel, e mesmo buscar ativamente sua destruição, o isolamento auto-imposto por Israel pode ser o maior risco de todos.
Tradução: George El Khouri Andolfato

[Der Spiegel, 27/11/2007]

Chávez e o rei: América dos punhos sem renda

Há um motivo para que a mídia tenha transformado em ícone a foto na qual o rei de Espanha pede a Chávez que se cale. Ela expressa o desconcerto das elites com um continente mestiço, onde está está cada vez mais difícil dizer às maiorias que reconheçam “o seu lugar”

Elizabeth Carvalho
O presidente venezuelano Hugo Chávez não veste o modelo de um lorde inglês e não tem em sua genealogia ascendentes com punho de renda. Baixinho, volumoso, olhos puxados e penetrantes se destacando nas feições rudes de cabloco meio branco, meio índio, e ainda um remoto vestígio certamente herdado de algum antepassado negro, ele é, ao mesmo tempo, espelho e símbolo mais contundente de algumas lideranças expressivas escolhidas democraticamente pelos povos latino-americano, à sua imagem e semelhança, para governá-los neste ainda tão novo século 21.

Para desgosto das nossas elites brancas-brancas, que sempre ditaram as regras do jogo e ainda hoje vivem, nessas terras tão desiguais, uma projeção do que até pouco tempo atrás era chamado de Primeiro Mundo, a Bolívia é governada por um índio. O Brasil, por um nordestino saído das fábricas do ABC paulista. A Argentina, que já foi tão sofisticada, acaba de eleger uma mulher classificada à boca pequena de cafona, casada com um presidente provinciano de maus modos. O Equador, é verdade, levou ao poder um líder de olhos azuis educado nas melhores escolas, mas identificado com a tendência continental crescente de reformar a Constituição para atender à massa dos excluídos. Tempos difíceis esses, para os “puros” com linha direta nas caravelas que despejaram os conquistadores europeus neste lado do mundo. Tempos de inversão de valores. Está cada vez mais difícil fazer com que as pessoas deste caldeirão racial cozido nos últimos 500 anos reconheçam “o seu lugar”.

Nada mais emblemático do desconforto e indignação das elites nesse nosso mundo periférico de hoje do que a foto e a legenda estampadas na primeira página de jornais de todo o mundo no dia 10 de setembro, registrando o início da cerimônia de encerramento da 12ª reunião da Cúpula Ibero-Americana, no Chile. De dedo em riste, o rei Juan Carlos, da Espanha, dirige-se a Chávez com a voz alterada e ordena: “Por que não te calas?” Irritado com as intervenções de Chávez ao discurso do presidente espanhol José Luiz Zapatero, o rei perde a paciência, grita e sai da sala.

Não há nenhuma novidade no fato de um histriônico e impetuoso presidente Chávez falar pelos cotovelos e se destacar numa reunião internacional como um elefante numa loja de louças, que ao menor movimento faz ruir das prateleiras porcelanas e cristais. A mídia, sempre atenta ao menor deslize dos punhos sem renda, é pródiga no trabalho de manter sua imagem política sob a forma de uma caricatura. Curiosamente nova pode ser a leitura simbólica que a foto proporciona nos gestos e atitudes de seus personagens: o rei de Espanha, figura maior do outrora império de dominação colonial na América, manda calar o presidente caboclo de um de seus antigos territórios vassalos, justamente de onde saiu, por uma ironia da história, o grande herói da independência latino-americana Simón Bolívar. Na foto, o rei aparece no centro, em primeiro plano, decidido, majestoso. Chávez, no canto, quase saindo de quadro, parece ter encolhido de tamanho.

Elevar a voz e bater em retirada, antes que a moda pegue e a quebradeira seja geral
Os fatos que desembocaram nesta cena são conhecidos. Chávez batera por duas ou três vezes, durante a reunião da cúpula, num mesmo bordão (é notória a sua tendência a ignorar a regra básica de que uma boa nota, se muito repetida, torna-se cansativa e incômoda). Insistira em criticar o ex-presidente espanhol José Maria Aznar, un conservador ligado à Opus Dei, que governou o país por dois períodos consecutivos antes de Zapatero, e claramente posicionou-se a favor do golpe contra o presidente venezuelano, em 2002. Hoje à frente da Fundação para a Análise e os Estudos Sociais (FAES), voltada para sistematização de um pensamento de direita nos países de língua espanhola, Aznar dedica-se a fazer incursões pela América Latina. Prega o ideário da superioridade da civilização ocidental cristã, sob a “grande liderança” dos Estados Unidos. Promove combate implacável aos três demônios que supostamente ameaçam essa civilização e querem acabar com a democracia no continente — o multiculturalismo, o “populismo” chavista e o indigenismo “racista”dos países andinos, que vai levar a América Latina ao retrocesso dos tempos dos incas.

Apesar de suas notórias diferenças com Aznar, o presidente Zapatero achou por bem passar por cima de suas convicções socialistas para prontamente defender as cores da bandeira da nação. Aznar, em que pesem as diferenças políticas, é acima de tudo um cidadão espanhol, dessa mesma Espanha que até o século 19 saqueou as riquezas do continente e que, como lembra o sociólogo Emir Sader, pôde participar das duras condições de competição no marco da integração européia graças aos investimentos de suas empresas neste mesmo continente, no alvorecer do século 21. Em que pesem as dificuldades causadas pelas medidas protecionistas justamente na Bolívia, na Argentina e na Venezuela dos punhos sem renda, os investimentos no ano passado ultrapassaram 20 milhões de euros.

A indignação do rei com as tentativas de Chávez de interromper a defesa que Zapatero fazia de Aznar em seu pronunciamento forneceu o caviar que faltava no interminável banquete de interpretações duvidosas sobre a atitude de líderes que trouxeram de volta ao discurso político latino-americano questões incômodas como soberania, igualdade social e defesa das riquezas nacionais. Até então, servia-se à mesa apenas o “deboche” com que Chávez contemplou a descoberta do megacampo de petróleo na bacia de Santos, cuja exploração pode aumentar em mais da metade as atuais reservas do país.

Ao saudar o presidente Lula como o “magnata do petróleo” e dizer que, pelo andar da carruagem, o Brasil pode acabar fazendo parte do seleto grupo da OPEP, o superlativo Chávez ofereceu à mídia um tira-gosto que teve ao menos o mérito de levar a público uma esperança otimista sobre o tamanho da descoberta, que o Brasil, na verdade continua ignorando. Afinal, se os países dos punhos sem renda não podem dar certo, melhor fazer acreditar que o governo exagera para esconder a gravidade de uma crise do gás que não se concretizou, ou tentar evitar a todo o custo que uma nova lei do petróleo garanta ao Estado brasileiro lucros futuros que deveriam ficar em mãos do capital privado. Ou fazer como o rei: elevar a voz e bater em retirada, antes que a moda do elefante pegue e a quebradeira seja geral.

[Le Monde diplomatique Brasil]

Heroísmo de massa

Maior impacto dos 40 anos da morte de Che do que os 90 anos da Revolução Russa revela os mecanismos da cultura popular

Moacyr Scliar
Este ano registrou, com um intervalo de tempo muito pequeno, dois aniversários que, sobretudo para a esquerda, são muito significativos. De um lado, 40 anos da morte de Ernesto Che Guevara. De outro, 90 anos da Revolução Russa. Em comum, o tema da revolução, da radical mudança de rumo.Contudo as repercussões dessas datas foram bem diferentes. Che Guevara foi lembrado, nem sempre positivamente, em programas de TV, em artigos, em reportagens. Já o 90º aniversário da Revolução de 1917 passou quase despercebido; apenas umas poucas pessoas participaram de uma demonstração em Moscou.
No entanto, do ponto de vista histórico, a revolução, ainda que seja agora simples lembrança, teve conseqüências muitíssimo maiores, e isso ao longo de quase todo o século 20. Guevara participou na Revolução Cubana, que também foi acontecimento marcante, mas, quando morreu, era um guerrilheiro que liderava apenas um pequeno grupo de insurgentes. A insurreição que tentou desencadear na Bolívia se revelou um fracasso.
No entanto a sua figura continua presente, em camisetas, em pôsteres, em livros. Não são poucos os que repetem a sua conhecida frase: "Hay que endurecer, pero sin perder la ternura". Pergunta: como é possível que um homem seja mais lembrado do que um um gigantesco movimento envolvendo milhões de pessoas e que correspondia à histórica aspiração de justiça e igualdade?
Resposta: é exatamente porque se trata de um homem, de um único homem. Revolucionário para muitos, vilão para outros, Guevara é a imagem do lutador solitário, do mártir, do herói. E nosso mundo precisa de lutadores solitários, de heróis e de mártires.
Se Guevara tivesse sido um vencedor, sua imagem seria diferente. E também seria diferente se houvesse morrido de morte natural. Heróis não morrem na cama. Morrem, como dizem os americanos, "with their boots on", com as botas calçadas, isto é, em combate.

Teoria e práxis
A Revolução Russa teve poucos heróis. Quando Lênin chegou do exílio para chefiar os bolcheviques, rodeava-o uma aura lendária, mesmo porque era um grande orador, desses que arrebatam as multidões.Mas Lênin era, antes de mais nada, um teórico e um político, e foi pela teoria e pela práxis política que se consagrou. Seu sucessor poderia ser Leon Trótski, como ele um líder vibrante mas também um homem muito mais envolvido com manobras políticas.
Mas quem assumiu o poder foi o enigmático Stálin, que mandou matar o seu rival e muitos outros inimigos. Stálin estava longe de parecer um herói, de modo que a propaganda oficial tratou de transformá-lo num ídolo, mediante aquilo que ficou conhecido como culto à personalidade.
A União Soviética e os países comunistas eram redutos de poder militarizado. A regra era o chamado coletivismo ideológico: todos os comunistas deveriam, mediante férrea disciplina partidária, pensar igual e agir como o grande pai Stálin.
Fanatismo? Certamente, mas o comunismo proporcionava a seus adeptos um esquema de pensamento e um amparo emocional aos quais era difícil renunciar. Essa crença quase religiosa não resistiu aos fatos. Em 1956, Kruschev denunciou os crimes do stalinismo.
Seguiram-se os sucessivos fracassos econômicos do regime, resultantes em grande parte da economia de guerra que os governos comunistas se viam forçados a adotar para enfrentar a ameaça representada pelos Estados Unidos e seus aliados e também para fortificar seu próprio poder.
Os taciturnos líderes comunistas estavam cada vez mais longe da figura do herói clássico. Por fim o comunismo ruiu. Parafraseando o escritor T.S. Eliot, acabou, não com um estrondo, mas com um gemido.
Poucos lamentam a queda do comunismo, mas muitos choram por Guevara. Por quê? O motivo está sintetizado no título de um álbum lançado pela banda Megadeth em 2001, "O Mundo Precisa de Heróis".
Roqueiros sabem interpretar as ocultas motivações da cultura popular. Guevara corresponde ao mítico herói que vive na fantasia das pessoas.O comunismo não quis ou não soube ou não pôde produzir esses heróis. É por isso que Guevara é mais lembrado que a Revolução Russa.

[Folha de São Paulo, 18/11/2007]

EUA precisam ver o mundo real na TV

Roger Cohen, do "New York Times"
Na academia de ginástica da base da Otan em Cabul, soldados americanos andam em esteiras todas as manhãs enquanto assistem ao canal da Al Jazeera em inglês. Quando Osama bin Laden vira notícia, a fina flor dos militares americanos malha sob o olhar solene de seu inimigo mais procurado.
Isso soa como uma cena do inferno particular de Donald Rumsfeld. O ex-secretário da Defesa tachou a Al Jazeera de "porta-voz da Al Qaeda". Certa vez ele descreveu a rede, que pertence ao Qatar e tem lá sua sede, como "mal-intencionada, imprecisa e imperdoável".
Num indício do que o governo de George W. Bush pensa do jornalismo feito pela Al Jazeera (e também do habeas corpus), ela mantém um dos cinegrafistas da rede, Sami al Hajj, preso em Guantánamo há mais de cinco anos, sem acusação.
A liberdade do que assistir na academia da Otan é bem mais sábia do que as palavras de Rumsfeld ou o tratamento terrível de Hajj. Os EUA precisam assistir à Al Jazeera para entender como o mundo mudou.

Menos "soft power"
A primeira mudança que precisa ser compreendida é a redução da capacidade dos EUA de influenciar pessoas. O acesso global à informação hoje significa que existe um imenso menu à la carte. As redes fogem de qualquer controle, e os EUA podem facilmente parecer excludentes e menos relevantes.
A segunda mudança essencial é a erosão sofrida pelo poderio americano. O "hard power" dos EUA -seu poderio militar- tem sua força comprometida pelas guerras refratárias de contra-insurgência no Iraque e Afeganistão. Sua economia está sob pressão -haja vista a fraqueza cada vez maior do dólar. Seu "soft power" -a capacidade de a idéia americana ecoar no mundo- foi prejudicada por sua perda de legitimidade (Hajj na prisão) e sua incompetência (Iraque).
A terceira mudança crucial é a consolidação do antiamericanismo como idéia política. O islamismo jihadista é a expressão mais violenta dessa idéia, mas seus agentes se beneficiam por nadarem num mar de ressentimentos menos assassinos.
Em resposta a tudo isso, os EUA podem dizer: "Ao diabo com esse mundo ingrato". Esse caminho representa uma espiral descendente. Ou podem tentar entender o novo mundo.
Para a compreensão desse mundo, a Al Jazeera em inglês oferece uma cartilha útil. A emissora às vezes é tendenciosa de modos capazes de revirar nosso estômago. De forma geral, porém, seu esforço por reportagens equilibradas, apresentadas desde uma perspectiva própria, parece ser genuíno.
Um ano após seu lançamento, a rede já é vista por 100 milhões de residências espalhadas pelo mundo. Seu foco recai em "reportagens vindas do Sul político e endereçadas ao Norte político", como diz seu diretor administrativo, Nigel Parsons.
Entretanto, a rede vem sendo colocada de escanteio nos EUA. O deputado democrata Jim Moran, da Virgínia, disse-me: "Há definitivamente uma idéia aqui de que esses caras são o inimigo. Mas no Oriente Médio, na Ásia e na Europa eles gozam de uma credibilidade da qual os EUA precisam desesperadamente." Moran teve um encontro com executivos da Al Jazeera em inglês que buscavam ampliar seu alcance lilliputiano nos EUA. Hoje, 147 mil residências em Toledo, Ohio, e mil em Burlington, Vermont, podem assistir à rede a cabo.

"Neomacartismo"
É muito pouco. A Al Jazeera English é muito mais acessível em Israel. Allan Block, presidente da Block Communications, proprietária da Buckeye, me disse: "É um bom canal. Sir David Frost e David Marash não são terroristas. A tentativa de denegrir a rede é neomacartismo." Como outras provedoras, a Block recebeu cartas de protesto da organização conservadora Accuracy in Media (precisão na mídia).
Cliff Kincaid, seu editor, cita Tayseer Allouni, ex-correspondente da Al Jazeera no Afeganistão preso na Espanha por ter laços com a Al Qaeda. Para ele, isso prova que "as provedoras de TV a cabo não deveriam dar acesso à Al Jazeera". A maioria das empresas cedeu ante a pressão, embora negue que tenham sido influenciadas politicamente.
Moran diz que isso é bobagem, e atribui a culpa "a ventos políticos somados a uma estrutura empresarial avessa a riscos". Esses ventos políticos prejudicam os EUA. A contra-insurgência já foi descrita como ciência social armada. Para vencer, é preciso compreender o mundo.
Tradução de Clara Allain

[Folha de São Paulo, 18/11/2007]

HQ iraniana 'Persépolis' chega à tela grande

Elke Schmitter
Cena do filme"Persépolis", de Marjane Satrapi, o comovente relato em quadrinhos de sua vida durante e depois da Revolução Iraniana, foi adaptado para o cinema e promete se tornar um sucesso internacional de bilheteria. O filme combina habilmente o tema universal da ansiedade adolescente com um exame da guerra e ditadura.
Uma mulher iraniana de 37 anos foi surpreendentemente bem-sucedida no difícil negócio de fazer um filme graças a uma idéia simples que é tanto gentil quanto subversiva. "Persépolis", o filme baseado na álbum em quadrinhos de Marjane Satrapi de mesmo nome e co-dirigido por ela e Vincent Paronnaud, já está sendo exibido com sucesso em 10 países e deverá conquistar corações por todo o mundo, por mais improvável que pudesse parecer a princípio.
Por que improvável? Porque, em "Persépolis", Satrapi está apenas olhando para sua própria vida e contando a história de uma forma altamente despretensiosa. Ela cresceu em Teerã como parte de uma família amorosa de classe média crítica do regime do xá e depois testemunhou a derrubada deste em 1979, a ditadura fundamentalista subseqüente e a guerra entre o Irã e o Iraque.
Seus pais conseguiram que ela fosse levada para fora do país, para que pudesse freqüentar um colégio em Viena por alguns anos. Na juventude, ela retornou voluntariamente ao local sinistro que seu país de nascimento tinha se tornado. Então, após um casamento breve e infeliz, ela decidiu emigrar definitivamente para a França. Lá, a artista gráfica deu um tempo antes de decidir contar sua história na forma de uma graphic novel.
Mas as coisas não foram tão simples; foi como se Satrapi precisasse fazer algo para escapar de suas crescentes trevas interiores: "Eu poderia ter odiado para sempre e isto me tornaria como eles. Então disse a mim mesma: ei, faça o que os artistas fazem, pense a respeito e escreva".
E seu álbum em quadrinhos é realmente uma forma de literatura. A história é contada em imagens contrastantes em preto-e-branco com uma quantidade relativamente grande de texto ao lado de imagens fortes, que lembram entalhes em madeira. As imagens bidimensionais formam uma linguagem cinematográfica facilmente compreensível para todos.
A história se torna universal pelo fato da adolescente Marjane articular as dificuldades da puberdade com a mesma intensidade e na mesma voz ligeiramente histérica com que descreve o terror da guerra e da ditadura iraniana. A solidão da adolescente e o medo terrível de ser feia -sentidos tão profundamente em Teerã quanto em qualquer outro lugar- não são tratados como triviais nos quadrinhos e no cinema. Marjane nunca esquece a tensão entre as experiências dramáticas e os problemas aparentemente insignificantes pelos quais passa.
A colegial tinha acabado de escapar do pior de todos os mundos possíveis quando é retratada como absorta com os prazeres do consumismo, perambulando por um supermercado de Viena. O trauma moral de sobrevivente ainda consome sua alma sensível quando uma espinha a lança no desespero. E quando ela se apaixona e é traída, sua solitária existência de imigrante sofre um golpe final: "Eu resisti a uma revolução na qual perdi parte da minha família. Eu sobrevivi à guerra que me separou de meu país e minha família (...) uma história de amor banal quase acabou comigo".
O merecido sucesso de "Persépolis" também se deve à sua estética: o estilo ousado em preto-e-branco não apenas o salva de ser kitsch, mas também afasta os dilemas enfrentados por filmes politicamente comprometidos, especialmente quando vêm de outra tradição cultural; como representar ocasionalmente os sinistros mulás de forma que o espectador possa vislumbrar os seres humanos sob o turbante? Como dar a personagens femininas em mantos pretos algum tipo de personalidade? Como equilibrar de forma decente a tensão eterna entre a clareza de expressão e compromisso político de um lado, e o kitsch e a propaganda do outro?
A opção pela graphic novel, que abre mão da necessidade de sugerir cores, cheiros, clima ou profundidade cênica, remove o fardo da necessidade de manter o distanciamento interno e permite ao leitor o desenvolvimento de uma empatia com os elementos essenciais da história: quando pequenas silhuetas pretas são vistas cruzando um campo minado e explodindo em intervalos regulares, isto revela a insanidade da guerra entre Irã e Iraque de forma bem mais perturbadora do que um close em technicolor de alguém dando dramaticamente seu último suspiro.
Marjane Satrapi usa estas técnicas aparentemente simples para se esquivar não apenas de todas as formas de propaganda, mas também de nossos próprios hábitos visuais e expectativas. Subversiva, encantadora e cheia de humor, Satrapi criou uma obra de arte realmente grande.
Tradução: George El Khouri Andolfato

[Der Spiegel, 16/11/2007]

A história revista e interpretada por várias vertentes

Entre leituras liberais, revisionistas e marxistas, a revolução evoca o embate atual que continua a opor direita e esquerda

Francisco Quinteiro Pires
O perigo de ignorar os fatos históricos, quando se aceita passivamente a bitola ideológica, é que eles podem se voltar contra a humanidade, impossibilitada de compreender a dimensão e os matizes do processo histórico, no qual os indivíduos podem influir de fato. Segundo o historiador Edward Acton, da Universidade East Anglia, do Reino Unido, e autor de Rethinking The Russian Revolution (Oxford), três vertentes interpretativas sobre a Revolução Russa se fizeram notar, sobretudo nos meios acadêmicos europeus, durante o século 20 - a soviética ortodoxa, a liberal e a revisionista. A primeira diz que a revolução era inevitável e irreversível e aponta o partido bolchevique como o líder legítimo da ditadura do proletariado e portador do direito de governar para sempre. A segunda entende a Revolução Russa como antidemocrática, um produto de ocasião, “um desvio na estrada da História cujo fim é o capitalismo e a democracia”. Os bolcheviques não passam de manipuladores, donos de aguda inteligência tática e dirigentes de uma massa de indivíduos vulneráveis por viverem um momento histórico de caos e fraqueza do governo. “O czar é considerado incapaz, até maluco, Lênin é apenas um estrategista competente e existe a certeza absoluta de que o regime soviético não tem legitimidade nenhuma”, diz Edward Acton.

“As abordagens soviética ortodoxa e liberal mantiveram um diálogo de surdos”, afirma Acton. “A leitura liberal, que é direitista, afirma que, no embate entre esquerda e direita, o colapso soviético representa a derrota esquerdista, e o socialismo é tido como uma experiência exclusiva da URSS”, ele continua. Até a esquerda crítica ao regime dos sovietes se sentiu derrotada. A linha revisionista rompe essa falta de diálogo, ao avaliar que a ascensão dos bolcheviques - condutores das classes operária e campesina - para implantar o socialismo é um evento histórico que não pode ser tratado como um golpe de Estado dado por uma minoria, mas como uma revolução de massas, feita de baixo para cima, por um povo frustrado - os camponeses reivindicavam o acesso à propriedade fundiária e os operários, a conquista de melhores condições de vida. “Para os revisionistas, a revolução seria feita mesmo se não eclodisse a 1ª Guerra Mundial para agravar a situação russa e os bolcheviques teriam criado um Estado para reprimir os socialistas rivais”, diz Acton. A Rússia vivia um impasse estrutural e o advento da 1ª Guerra levou ao paroxismo a crise do país. Camponeses são recrutados para lutar pela Rússia e os sobreviventes, quando desertam, têm o trunfo das armas para promover a revolução contra o governo provisório presidido por Alexander Kerenski.

Mais do que isso é prematuro afirmar quando se sabe que, com o fim da guerra fria, os regimes socialistas sob influência da URSS libertaram as academias, não mais obrigadas a utilizar a estrutura teórica marxista-leninista como ferramenta historiográfica, e os arquivos se tornaram disponíveis em razão do afrouxamento do controle político oficial. O foco historiográfico faz novos recortes como o da iconografia, do discurso, da vida privada e da sexualidade do pós-Revolução Russa.

Outro risco histórico é conceber a URSS, criada em 1922, como bloco histórico homogêneo e conseqüência dos ideais defendidos em outubro de 1917. Vários professores ouvidos pelo Estado concordam com o entendimento de que a ascensão de Joseph Stálin, nos anos 1920, fortaleceu a burocracia estatal, criadora de privilégios cuja manutenção se tornou prioridade, em detrimento da implantação progressiva do socialismo.

De acordo com o historiador Angelo Segrillo, autor de O Declínio da URSS (Record), o engessamento político-econômico do stalinismo personificado pela burocracia seria o responsável pelo imobilismo do Estado até o seu término em 1991, mesmo depois de Nikita Kruchev ter apontado no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética os desmandos stalinistas e ter distendido o regime soviético. A promessa feita no começo dos anos 1960 de que a URSS, “dentro de 20 anos, ultrapassaria os EUA em produção e produtividade não seria cumprida diante do capitalismo que mudara a dinâmica da competição econômica e dera flexibilidade ao paradigma trabalhista, como no toyotismo, adequado à exigência de difusão de criatividade e sucessor do fordismo, que era semelhante à estrutura de trabalho das fábricas soviéticas na primeira metade do século 20”, diz Segrillo. No entanto a meta irrealizada não significa que o socialismo como modelo de organização econômica tenha uma ineficiência inerente, como argumentam os liberais, sobretudo quando se observam a expansão da economia soviética entre os anos 1930 e 1960 e o avanço científico-tecnológico, comprovado pelo pioneirismo na conquista do espaço nos anos 1950, segundo Segrillo. Essas comparações mostram como durante o século passado o socialismo, estado de transição entre capitalismo e comunismo, parece ter funcionado na URSS como um regime para rivalizar com o do capital e não substituí-lo, por força da atuação do proletariado no poder. As inovações soviéticas no campo militar e espacial, porém, não foram transferidas para a indústria civil.

Diretor do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, Michael Löwy, que não participou dos seminários e sobre quem vários especialistas escrevem no As Utopias de Michael Löwy (Boitempo), cita a filósofa Rosa Luxemburgo para afirmar a impossibilidade de “construir o socialismo sem liberdades democráticas, de opinião e organização”. Além de fortalecer os burocratas, ressuscitando o elemento autocrático do czarismo, Stálin transformara o espírito crítico em crime de Estado, apesar da advertência de Karl Marx sobre a necessidade incontornável de haver autocrítica constante dentro do socialismo. “Assassinado por um agente da GPU, serviço secreto stalinista, em 1940, no México, Trotski observava que o bolchevismo e o stalinismo eram separados por um rio de sangue”, continua Löwy. Como parece regra geral na História da humanidade, a Revolução Russa apresenta resultados imprevisíveis, apesar da clareza ideológica. O historiador Modesto Florenzano evoca Engels para declarar que os revolucionários não sabem o que fazem, enquanto estão revolucionando, e o resultado de suas ações é sempre diferente do pretendido. Autor de As Revoluções Burguesas (Brasiliense), Florenzano é um dos vários debatedores que retomam a Revolução Francesa de 1789 para entender a da Rússia em 1917. Os revolucionários bolcheviques miravam o exemplo francês, que derrubara o Antigo Regime e instalara a burguesia no poder. Lênin comemora quando a duração da Revolução Russa ultrapassa a da Comuna de Paris, de 1871. Mas, à diferença do acontecimento revolucionário na França, depois do qual uma classe exerce a dominação, representando uma parcela do país e preservando privilégios, os bolcheviques pretendiam estabelecer a ditadura do proletário, que, por ser representante da maioria da sociedade russa, organizaria democraticamente os interesses nacionais.

As revoluções se apresentam como saltos de consciência que aceleram o tempo, é como se existissem “semanas que valem por anos e que desafiam o vício intelectual de pensar que o dia de amanhã será igual ao de hoje”, reflete Valério Arcary, autor de Esquinas Perigosas da História (Xamã). O historiador Jorge Grespan cita Walter Benjamin, segundo o qual o “instante revolucionário explode o tempo contínuo”, entendido como uma sucessão natural, sem rupturas, de eventos históricos diante dos quais os indivíduos são impotentes. Grespan aponta nas contradições das crises capitalistas brechas históricas que podem ser vislumbradas por “homens de talento, cuja consciência se constitui e amadurece em contextos de discussão”; a partir dessas brechas é possível deflagrar os instantes de explosão revolucionária. Como exemplo de crises, ele menciona o colapso da Nasdaq, em 2000, e a atual debacle das hipotecas no mercado imobiliário norte-americano, cujos prejuízos eram estimados na semana passada em até US$ 60 bilhões. O filósofo húngaro István Mészáros concorda com a interpretação sobre o tempo contínuo,classificado de “eterno presente”. Em entrevista ao Estado, Mészáros, que está lançando O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico (Boitempo), ele diz que “o mundo tem de enfrentar a necessidade de uma mudança radical, em um futuro não tão distante, em função da forma destrutiva, perdulária e insustentável com que o capital administra o planeta”. Ele afirma que o capitalismo vive uma fase de “crise estrutural” e não mais “periódica ou conjuntural”.

Sendo ou não o comunismo a alternativa possível, a vigência de 25 de outubro de 1917, que mudou o curso do século 20, ganha sentido à medida que a discussão isenta de paixões cegas mostra os erros que não devem ser repetidos. “O passado se vive no presente como projeção do futuro”, conclui Grespan. Cada geração precisa reescrever o passado, porque o presente, embora tendendo a contínuo, apresenta mudanças e desafios diferentes. Os 90 anos de Revolução Russa soam o alarme sobre a carência de calor no debate em torno de temas históricos, o qual pode contribuir para liquefazer a névoa sobre a História.

[Estado de São Paulo, 18/11/2007]

Luta jurídica frenética antecede a última execução de pena de morte dos EUA

Kevin Johnson
Michael Wayne Richard já estava vestido para sua execução no corredor da morte do Texas, no dia 25 de setembro, quando Suprema Corte americana anunciou, às 19h30, que não ia adiar a injeção letal do assassino condenado.
"Gostaria que os membros da minha família cuidassem uns dos outros", pediu Richard, vestindo um jaleco branco, calças combinando e chinelos. "Vamos nessa. Acho que é isso."
Às 20h23, Richard, 48, estava morto. Ele foi a 42ª pessoa executada nos EUA neste ano e a 26ª no Texas, Estado que mais impõe a pena de morte.
Agora, sua execução pelo estupro e assassinato de uma enfermeira em 1986 tornou-se o mais recente ponto no debate nacional sobre se a pena capital está sendo aplicada com justiça. A execução ocorreu depois de uma frenética luta judicial nos bastidores, que provocou intensas críticas do sistema de justiça do Texas e confusão sobre as ações do principal tribunal do país.
A Suprema Corte dos EUA, sem comentários, recusou-se a intervir na execução de Richard -apesar de, horas antes, ter dito que usaria um caso de Kentucky para rever questões sobre a injeção letal.
A decisão da corte efetivamente deteve as execuções no país. Desde que permitiu a execução de Richard, os juizes suspenderam as próximas três, inclusive outra no Texas. A não ser que a Suprema Corte permita uma execução na Flórida, marcada para quinta-feira, a execução de Richard talvez seja a última até que a Suprema Corte decida sobre o caso de Kentucky no próximo ano, dizem os analistas.
Entrevistas com advogados de defesa e autoridades estaduais, junto com documentos da justiça e da prisão, revelam o caos que ocorreu nas horas antes da execução de Richard.
Enquanto os advogados de defesa corriam para terminar os recursos de último minuto, colapsos de seu sistema de computador descarrilaram-nos repetidamente. Com a execução marcada para 18h, a principal corte criminal do Estado decidiu não estender seu horário de funcionamento para além das 17h, impedindo que os advogados de Richard pedissem o adiamento da execução até que a Suprema Corte decidisse o caso de Kentucky.
Justo antes da hora marcada para a execução de Richard, o advogado de defesa Greg Wiercioch recebeu um ultimato do promotor geral do Texas: o Estado daria seis minutos aos advogados para entrarem com um recurso final na Suprema Corte ou seguiria com a injeção letal, segundo Wiercioch. Os advogados de Richard, lutando com os problemas de computador, mal cumpriram o prazo.
Jerry Strickland, porta-voz do promotor geral do Texas, Greg Abbott, admite que o escritório "instou (os advogados de Richard) a entrarem com os recursos restantes o mais rápido possível", mas diz que não foi uma ameaça. Strickland diz que o Estado adiou a execução até receber nota da Suprema Corte dizendo que não ia interceder.
Essa concessão fez pouco para acalmar os críticos. Pela primeira vez em seus 49 anos de história, a Associação Nacional de Advogados de Defesa Criminal entrou com queixa contra um juiz, chamando o fechamento da Corte de Recursos Criminais do Texas em noite de execução de "fracasso chocante" do sistema de justiça.
Carmen Hernandez, presidente da Associação Nacional de Advogados de Defesa Criminal, diz que o grupo pediu à Comissão de Conduta Judicial do Texas para rever as ações da juíza Sharon Keller, presidente da corte que autorizou o fechamento. Keller recusou-se a comentar.
No mês passado, em aparente concessão às críticas, a Corte Criminal de Recursos disse que ia começar a aceitar pedidos eletrônicos em casos de pena de morte ou outros apelos de emergência.
Lee Coffee, o primeiro a processar Richard há mais de duas décadas em Houston por matar a enfermeira Marguerite Dixon, admite que o processo legal poderia ter funcionado melhor no final.
Entretanto, qualquer desconforto que Richard possa ter tido antes ou durante a execução é pequeno se comparado com o que sofreu a família de Dixon, diz Coffee.
"É uma pena que a família da vítima tenha sido torturada por mais de 20 anos", diz Coffee, referindo-se à longa estadia de Richard no corredor da morte. "Este caso deveria ter chegado a uma conclusão há um tempo."
O argumento pelo adiamentoMesmo na morte, Michael Richard nunca foi uma figura particularmente simpática.
Dois meses depois de sua condicional por condenações de furto de automóveis e fraude, Richard atacou Dixon dentro de sua casa em um subúrbio de Houston, violentou-a, atirou em sua cabeça, pegou duas televisões e fugiu na van da família Dixon, de acordo com os registros da prisão.
Se Richard merecia morrer ou não pelo crime de 1986 não fazia parte do argumento que seus advogados utilizaram em seu último pedido à Suprema Corte para adiar a execução. Em vez disso, eles argumentaram que, como a Suprema Corte tinha anunciado mais cedo naquele dia que ia revisar todo o processo de injeção letal, simplesmente não era hora de Richard morrer.
Por dois meses antes da execução, Wiercioch, David Dow e outros advogados da pena de morte do Serviço de Defesa do Texas em Houston entraram com apelos alegando que Richard, ex-mecânico, era retardado mental. Seu QI foi medido em 64; um índice de 70 ou menos em geral indica retardamento, diz Wiercioch. (Em 2002, a Suprema Corte determinou que executar retardados mentais criminosos violava a oitava Emenda da Constituição que proíbe punição cruel e incomum.)
Na manhã de 25 de setembro, os advogados de Richard entraram com o que achavam que seria seu último apelo à Suprema Corte na questão do adiamento. Às 9h da manhã, a Suprema Corte anunciou que havia aceitado o caso de Kentucky, que testa o padrão para decidir se a mistura de três drogas usadas nas injeções letais carrega um risco de sofrimento. A maior parte dos Estados, inclusive o Texas, adotou a mesma mistura de sódio tiopental, um barbitúrico, brometo de pancurônio, agente paralisante, e cloreto de potássio, que pára o coração.
Dow soube da decisão da corte às 10h15, quando terminou de dar uma aula na Universidade de Houston.
Às 11h40, ele estava em uma conferência telefônica com seis advogados do Serviço de Defesa do Texas em Houston e Austin, para redigir um novo recurso à Corte de Recursos Criminais do Texas. Se rejeitado, eles pediriam à Suprema Corte para deter a execução até que os juizes decidissem a questão da injeção letal.
A notícia da ação da Suprema Corte no caso de Kentucky espalhou-se rapidamente pelo corredor da morte em Livingston. Na madrugada daquela manhã, Richard tinha empacotado todos seus pertences -24 pacotes de sopa instantânea, carne seca, biscoitos e uma saboneteira, um radio e correspondências- em cinco sacas de cebola. As sacas foram endereçadas para entrega para sua família após sua morte.
A nova possibilidade de recurso ofereceu novas esperanças para Richard e sua família. "Ele achou que ia ficar", diz Parecia Miller, sua irmã. "Todos estão falando isso."
Wiercioch diz que a equipe de defesa não entrou com questionamento à injeção letal anteriormente por duas razões: os advogados acreditavam que os argumentos de retardamento mental eram mais fortes e questionamentos anteriores do procedimento de execução fracassaram repetidamente. "No Texas, (questionar a injeção letal) era um cachorro morto", diz Wiercioch.
Os planos da equipe de defesa começaram a fracassar às 15h15, quando seu sistema de computador do escritório de Houston do Serviço de Defesa do Texas, grupo que funciona com fundos privados e se especializa em pena capital, caiu enquanto os advogados tentavam redigir o recurso. A queda cortou os contatos eletrônicos entre Houston e Austin onde os assistentes e advogados estavam esperando para imprimir as 10 cópias dos documentos e entregá-las à corte de recursos do Texas, antes do fechamento das 17h.
Esforços repetidos para consertar os computadores fracassaram. Às 16h30, a equipe de defesa em Austin começou a alertar a secretária na Corte Criminal de Recursos sobre o problema, disse Dow, e a probabilidade do recurso de Richard chegar atrasado.
Louise Pearson, secretária da corte, não respondeu ao pedido de comentários. Advogados de defesa dizem que foram negados ao menos quatro pedidos de mais tempo para enviarem o recurso -o último foi às 16h48, depois dos advogados recuperarem as operações de computação. Dow diz que sua equipe pediu à corte para entrar com o recurso eletronicamente. O pedido foi rejeitado, diz ele.
"Todo mundo no escritório ficou revoltado", diz Dow.
Menos de meia hora antes da hora marcada para a execução, quando a equipe de defesa voltou-se para sua última opção - a Suprema Corte - os problemas de computador recomeçaram.
O recurso contra a injeção letal assumiu importância maior cerca de 17h30, quando a corte rejeitou o argumento de retardo mental. Dow diz que o pedido de adiamento devido ao questionamento da injeção letal à Suprema Corte talvez tivesse sido enfraquecido porque a corte do Texas nunca o havia julgado, então não deixou registro para a Suprema Corte considerar.
Enquanto os advogados de defesa corriam para superar os problemas técnicos às 17h55, Wiercioch diz que recebeu um telefonema incomum do subpromotor geral do Texas, Baxter Morgan.
Segundo Wiercioch, a promotoria estava ciente dos problemas que afligiam a defesa. Ele disse que Morgan ligou para avisar que o Estado ainda planejava seguir com a execução.
"Eu disse: 'Calma, calma!'", lembra-se Wiercioch, acrescentando que pediu mais tempo. A resposta de Morgan, segundo Wiercioch, foi: "Você tem seis minutos."
"Foi uma conversa chocante", diz o advogado de defesa. "Era como falar com um robô."
Strickland, porta-voz da promotoria, diz que "a caracterização da conversa pelo Serviço de Defesa do Texas e Greg Wiercioch não é precisa".
Strickland, entretanto, não nega especificamente que Morgan referiu-se ao prazo de seis minutos. Ele diz que as palavras de Morgan foram mal caracterizadas como ultimato. "O advogado de Richard sabia muito bem que a ordem de execução... seria efetiva às 18h", diz Strickland.
Mesmo assim, Strickland diz que, imediatamente após a conversa, a promotoria instruiu as autoridades carcerárias a suspenderem a execução até que a Suprema Corte se pronunciasse.
"A integridade do processo"As 29 testemunhas da execução estavam reunidas em salas próximas à câmara de morte, quando a Suprema Corte recebeu o novo recurso de Richard.
As 18h se passaram e o atraso se prolongava. Miller -um dos três apoios de Richard designados para assistir a execução- disse que um funcionário da prisão sugeriu que o atraso podia ser um "bom sinal".
Cerca de 20h10, entretanto, as testemunhas foram levadas para assistir o evento.
Miller diz que viu seu irmão preso à maca. "Dava para ouvi-lo", diz Miller, referindo-se à breve declaração final de Richard. "Ele fechou os olhos, ouvimos seu último suspiro."
Nada da descrição de Miller indicou que Richard apresentou sinais de dor, questão importante para a Suprema Corte avaliar o caso de Kentucky.
A execução de Richard, se de fato foi indolor, foi estranhamente similar a como Richard previu que seria, mais de duas décadas atrás em uma conversa com Coffee, hoje juiz no Tennessee.
Coffee diz que a conversa começou quando o ex-promotor ofereceu a Richard a sentença de prisão perpétua em troca de ele se dizer culpado. Coffee diz que a família de Dixon concordou com a oferta para evitar o estresse de um julgamento público. Mas Richard rejeitou o acordo "friamente".
"Ele me disse que a pena de morte seria seu último barato", diz Coffee. "Ele disse que o Estado do Texas ia dar a ele um monte de drogas e ele ia cair no sono."
Vinte anos depois, Coffee rejeita a noção que Richard estava tentando se gabar ou falara com a mente nublada por deficiência mental. "Você não vê muitas pessoas tão frias, tão duras. Ele não tinha medo", diz.
Hernandez, presidente do grupo de advogados de defesa nacional, diz que os fatos assustadores do caso e a conduta ofensiva de Richard não deviam ser a questão.
"É sobre a integridade do processo", diz Hernandez. "O teste do sistema é como funciona em um caso difícil, quando não há fatores mitigantes e o réu não é particularmente simpático. No caso de pena de morte, há um fim irrecuperável. Você não pode fechar as portas dos tribunais, especialmente em um dia de execução."
Tradução: Deborah Weinberg

[USA Today, 15/11/2007]

Caça às bruxas na África

Sharon LaFraniere, em Uige, Angola
Domingos Pedro tinha apenas 12 anos quando seu pai morreu. A morte foi repentina; a causa foi um mistério para os médicos. Mas não para os parentes de Domingos.
Eles se reuniram naquela tarde na casa de barro de Domingos, ele disse, o pegaram e amarraram suas pernas com corda. Eles passaram uma corda pelos caibros de 3 metros de altura da casa e o içaram até ficar suspenso de cabeça para baixo sobre o chão de terra batida. Eles então lhe disseram que cortariam a corda se ele não confessasse ter assassinado seu pai.
"Eles gritavam -'Bruxo! Bruxo!'" lembrou Domingos, com lágrimas escorrendo pelo rosto. "Havia tantas pessoas gritando comigo ao mesmo tempo."

Afonso Garcia, 6 anos, em abrigo em Uige, onde vive após deixar seu pai
Assustado, Domingos lhes disse o que queriam ouvir, mas seus parentes não foram aplacados. Ferraz Bulio, o líder tradicional da comunidade, disse que sete ou oito captores estavam arrastando Domingos por uma trilha de terra até o rio, aparentemente para afogá-lo, quando ele interveio.
"Eles estavam dando tapas e socos nele", lembrou Bulio. "Esta é a forma como as pessoas reagem com uma pessoa acusada de bruxaria. Há muitos casos assim."

Bulio está certo. Em partes de Angola, República do Congo e República Democrática do Congo, um número surpreendente de crianças são acusadas de bruxaria, e então sofrem agressões físicas, abusos ou são abandonadas. Defensores das crianças estimam que milhares de crianças que vivem nas ruas de Kinshasa, a capital repleta de escombros da República Democrática do Congo, foram acusadas de bruxaria e expulsas por suas famílias -freqüentemente a desculpa para não terem que alimentá-las ou cuidar delas.
As autoridades em uma cidade do norte de Angola identificaram 432 crianças de rua que foram abandonadas ou sofreram abusos após serem acusadas de bruxaria. Um relatório do ano passado do Instituto Nacional para a Infância do governo e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) descreveram o número de crianças acusadas de bruxaria como "imenso".
A noção de crianças bruxas não é nova aqui. É uma crença comum na dominante cultura bantu de Angola de que bruxos se comunicam com o mundo dos mortos e usurpam ou "comem" a força vital dos outros, causando infortúnio, doença e até a morte de suas vítimas. Bruxos adultos supostamente enfeitiçariam crianças lhes dando comida, depois as forçando a retribuírem com o sacrifício de um membro da família. Mas as autoridades atribuem o aumento da perseguição às crianças à guerra -27 anos em Angola, que terminou em 2002, e o conflito quase constante no Congo. Os conflitos deixaram muitas crianças órfãs, assim como deixaram outras famílias intactas, mas pobres demais para se alimentarem.

"Os casos de bruxaria começaram quando os pais se tornaram incapazes de cuidar das crianças", disse Ana Silva, que está encarregada da proteção da criança para o instituto da infância. "Então começaram a buscar qualquer justificativa para expulsá-las da família."
De lá para cá, disse Silva, o fenômeno tem acompanhado os migrantes pobres das províncias de Uige e Zaire, no norte de Angola, até as favelas da capital, Luanda, que está crescendo rapidamente.
Dois casos recentes horrorizaram as autoridades de lá. Em junho, disse Silva, uma mãe de Luanda cegou sua filha de 14 anos com água sanitária para tentar livrá-la das visões malignas. Em agosto, um pai injetou ácido de bateria no estômago de seu filho de 12 anos porque temia que o menino fosse um bruxo.

O governo de Angola faz campanha desde 2000 para eliminar a noção das crianças bruxas, disse Silva, mas o progresso é vagaroso. "Nós não conseguimos mudar a crença de que bruxas existem", ela disse. "Até mesmo pessoas com alta escolaridade acreditam que bruxas existem."
Em vez disso, o instituto dela está tentando ensinar pessoas que ocupam postos de autoridade, de policiais e professores a líderes religiosos, de que a violência contra crianças nunca é justificada.

A cidade angolana de Mbanza Congo, a apenas 80 quilômetros da fronteira com o Congo, abriu caminho. Após uma criança acusada de bruxaria ter sido morta a facadas em 2000, as autoridades provinciais e a Save the Children, a organização global de caridade, recolheram 432 crianças que estavam na rua e reuniram 380 delas com parentes, declarou o relatório sobre bruxaria.
Onze igrejas fundamentalistas foram fechadas depois de relatos de exploração e abuso de crianças. Oito pastores congoleses foram deportados. As aldeias formaram comitês para monitoramento dos direitos da criança. As autoridades disseram que o número de abusos e de crianças vivendo nas ruas caiu drasticamente.
Uige, a cerca de 160 quilômetros do sul de Mbanza Congo, é outra história. Cercada por colinas verdejantes, ela é um aglomerado de casas de barro ao redor de lojas caindo aos pedaços cheias de buracos de bala. Nesta região, disse o bispo Emilio Sumbelelo, da Igreja Católica de São José, a perseguição às crianças está aumentando.
"É muito, muito comum nas aldeias", ele disse. "Nós sabemos que algumas crianças foram assassinadas."
Sua igreja administra o único refúgio da cidade para crianças acusadas de bruxaria, um abrigo pouco maior do que uma garagem para três carros. Trinta e dois meninos, incluindo Domingos, ocupam beliches separados por poucos centímetros, com suas poucas roupas guardadas em caixas de papelão debaixo deles. Não existe abrigo para as meninas.

Desde julho, eles não aceitam mais crianças. "As crianças vêm para cá para pedir proteção, mas não temos espaço", disse o bispo. "Até o momento, nós não encontramos um modo de combater este fenômeno."
Muitos dos meninos do abrigo descrevem passados de abuso, rejeição e medo. Saldanha David Gomes, 18 anos, que vivia com sua tia até completar 12 anos, disse que ela se voltou contra ele depois que a filha dela de 3 anos adoeceu e morreu.
Depois disso, ele disse, sua tia se recusava a alimentá-lo e amarrava os pés e mãos dele toda noite, temendo que ele fizesse outra vítima.
Um vizinho finalmente o alertou a fugir. "Eu não sou bruxo e não era bruxo", disse Saldanha. "Mas eu tive que fugir porque estavam ameaçando me matar."

Afonso Garcia, 6 anos, ocupou a última vaga do abrigo em julho. "Eu vim para cá sozinho porque meu pai não gosta de mim e eu não comia todo dia", ele disse.
Depois que a mãe de Afonso morreu há três anos, ele se mudou com seu pai. Sua madrasta, Antoinette Eduardo, disse que começou a suspeitar que ele era um bruxo depois que as crianças da vizinhança começaram a dizer que ele tinha comido uma gilete. Além disso, ela disse, "ele estava ficando cada vez mais magro, apesar de estar comendo bem."
Ao ser questionado, ela disse, Afonso reconheceu que um parente o visitava em seus sonhos, exigindo que matasse um membro da família. Afonso nega ter confessado a bruxaria.
O que se seguiu é típico de muitos casos aqui. Os parentes de Afonso se voltaram para um curandeiro tradicional em busca de uma cura.

O curandeiro de 30 anos, João Ginga, veste uma jaqueta de couro com gola de pele e trabalha no que chama de hospital -uma sala apertada de paredes de barro. "Se alguém tem um espírito ruim, eu posso dizer", ele disse certa manhã enquanto clientes aguardavam em um banco de madeira. "Nós tratamos mais de mil casos por ano."
Com tamanho movimento, disse Ginga, ele não conseguia se lembrar do caso de Afonso. A tia do menino, Isabella Armando, disse que sua família deu a Ginga US$ 270 em dinheiro, velas, perfume e talco para tratar Afonso.
Ginga realizou alguns rituais, colocou uma substância nos olhos de Afonso que o fizeram soluçar de dor e anunciou que ele estava curado, ela disse. O pai e madrasta de Afonso, os únicos parentes que podiam arcar com o tratamento dele, não concordaram e o expulsaram do lar.
"Eu tive dó e ainda sinto dó dele porque ele está vivendo nas ruas", disse a madrasta. "Mas estávamos com medo."
Ginga não é o único curandeiro daqui que alega curar crianças bruxas. Sivi Munzemba disse que exorciza crianças possuídas inserindo um cataplasma de ervas em seus ânus, raspando suas cabeças e as mantendo confinadas por duas semanas na casa dela.

Moises Samuel, o diretor do escritório provincial do instituto da infância, disse estar preocupado não apenas com os curandeiros tradicionais, mas também com o bando de igrejas com pastores que alegam exorcizar espíritos malignos e que atraem multidões até mesmo nos dias úteis.
Quando um pastor ou curandeiro rotula uma criança de bruxa, disseram especialistas em bem-estar de menores, mesmo a polícia costuma recuar.
As autoridades mantiveram Domingos, o menino que foi suspenso pelos pés, por uma noite na delegacia e então o enviaram para casa, disse Bulio, o líder da comunidade. Elas nunca investigaram o tio de Domingos, que Bulio disse ter liderado o ataque.
"É claro que foi um crime", disse Bulio. "Mas como é bruxaria, a polícia não quer assumir qualquer responsabilidade."
Domingos, atualmente com 15 anos, insistiu que ele disse que era um bruxo apenas para salvar sua vida. Mas até mesmo sua mãe de 32 anos, Maria Pedro, não acredita nele.
Maria Pedro obviamente gosta de Domingos, seu filho mais velho. Ela fica radiante com seu progresso acadêmico e se preocupa com novos ataques de seus parentes, caso ele deixe o abrigo.
Ainda assim, ela suspeita que ele foi enfeitiçado para matar. "Deve ser verdade porque ele confessou", ela disse, olhando com cuidado para Domingos do outro lado da mesa, em sua casa de dois cômodos.
Depois daquilo, Domingos se levantou e caminhou rapidamente para fora. Dez minutos depois, ele reapareceu na porta, com o rosto vermelho e manchado. "Mãe, deste dia em diante, eu não sou mais seu filho", ele declarou com veemência.
Maria Pedro assistiu ele partir sem dizer nada. Ela disse posteriormente: "Eu não sei por que Domingos ficou tão furioso".
Tradução: George El Khouri Andolfato

[The New York Times, 15/11/2007]

Livro reescreve a história dos EUA para fazer propaganda do neoconservadorismo

Segundo a história da política externa dos Estados Unidos do século 19, escrita por Robert Kagan, as ações norte-americanas são motivadas pela moral, e não pelo auto-interesse. Como trabalho histórico o livro não vale nada, mas pode interessar aos estudiosos da propaganda neoconservadora

Michael Lind
Robert Kagan é um dos membros de um pequeno grupo de autores neoconservadores que são lidos devido à influência que exercem sobre o governo Bush. No seu livro de 2003, "Of Paradise and Power" ("Do Paraíso e do Poder"), ele apresentou a explicação famosa segundo a qual os norte-americanos são de Marte, enquanto os europeus são de Vênus. Ele argumentou que os europeus pusilânimes, livres da tarefa de se defender devido à confiança no poder dos Estados Unidos, gostam de denunciar como militarismo estabanado aquilo que na verdade seria uma avaliação racional norte-americana das realidades do poder mundial.

"Of Paradise and Power" foi uma peça de polêmica neoconservadora disfarçada de política comparada. "Dangerous Nation" ("Nação Perigosa"), o livro mais recente de Kagan, é uma peça de polêmica neoconservadora disfarçada de história das relações internacionais dos Estados Unidos do período colonial à Guerra Americana-Espanhola de 1898 (há a promessa de um segundo volume, focado no século 20).

Os alvos implícitos de "Of Paradise and Power" são os europeus e os norte-americanos que criticaram a Guerra do Iraque e a política neoconservadora de hegemonia unilateral dos Estados Unidos. Os alvos implícitos de "Nação Perigosa" são aqueles indivíduos que argumentam que a Guerra do Iraque - e a estratégia neoconservadora em geral - representa uma ruptura com as tradições de política externa dos Estados Unidos, em vez de se constituir na implementação inevitável e desejável dessas tradições.

Os críticos da grande estratégia neoconservadora e da Guerra do Iraque freqüentemente comparam estes elementos com a Guerra Americana-Espanhola e com o imperialismo naval dos Estados Unidos de um século atrás, denunciando ambos os fenômenos como violações das tradições políticas dos Estados Unidos. "Está muito bem", anda dizendo Kagan. "Eu aceito a comparação - mas inverto a avaliação". Assim, o precedente alegado para o Iraque, a Guerra Americana-Espanhola, torna-se uma "boa guerra" - uma cruzada democrática.

No parágrafo final do seu livro, Kagan conclui: "Muito pouca gente enxergou, ou, quem sabe, tenha desejado enxergar, a guerra como sendo o produto de atitudes norte-americanas profundamente enraizadas no que diz respeito ao lugar do país no mundo. Ela foi o produto de uma ideologia universalista conforme esta se encontra articulada na declaração de independência".

A declaração de independência! Então a fidelidade aos princípios dos Fundadores da Nação teria não só compelido os Estados Unidos a esmagarem e reconstruírem o sul escravista durante e após a Guerra Civil, mas teria também feito com que o país disseminasse a "ideologia universal" de Jefferson e Lincoln ao procurar estabelecer depósitos de abastecimento de carvão no Pacífico, ao roubar a Baía de Guantánamo da Espanha em 1898 - e, presumivelmente, ao invadir o Iraque em 2003.

"Dangerous Nation" é um tratado anti-realista, a primeira história diplomática aceita dos Estados Unidos escrita segundo uma ótica neoconservadora de "Idealpolitik". Ironicamente - ou, talvez, apropriadamente, ao se levar em conta que as origens do neoconservadorismo estão na esquerda anti-soviética - Kagan tem uma grande dívida intelectual para com as histórias de política externa dos Estados Unidos escritas por progressistas e esquerdistas radicais, que dominaram esse campo durante grande parte do século 20.

Aqui, faz-se necessária uma explicação. Os historiadores progressistas tendiam a colocar a culpa pelas guerras norte-americanas nos interesses especiais, culpando os donos de escravos pela Guerra Mexicana-Americana e os fabricantes de munições e financistas pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Os historiadores radicais, por outro lado, eram propensos a ver a política externa de forma mais sistêmica, como o resultado de um impulso inexorável rumo à expansão capitalista.

Tanto os progressistas-moralistas quanto os anticapitalistas radicais tendiam a concordar quanto a uma coisa: os Estados Unidos não se depararam com nenhuma ameaça externa genuína após o fim da Guerra Anglo-Americana de 1812. Portanto, os argumentos baseados em ameaças externas feitos pelos elaboradores de políticas norte-americanas não passaram de propaganda, camuflando os verdadeiros motivos (geralmente econômicos) por trás da expansão dos Estados Unidos.

Uma minoria dos historiadores, composta basicamente por historiadores militares, adota um ponto de vista diferente. Esses historiadores levam a sério a crença dos estadistas e dos soldados norte-americanos nas ameaças externas. As ameaças representadas em diversas ocasiões pela França, o Reino Unido, a Alemanha, o Japão e a União Soviética podem ter sido exageradas ou irreais, mas os elaboradores de políticas norte-americanas acreditavam nelas. A crença desses indivíduos se constitui em uma explicação suficiente para a maior parte das políticas militares dos Estados Unidos, que, ainda quando acabaram beneficiando os empresários norte-americanos, não foram implementadas por causa destes.

Chamem as duas escolas de história de política internacional norte-americana de escola da compulsão interna e escola da ameaça-e-resposta. Uma vê a política externa dos Estados Unidos como a manifestação da dinâmica social interna; a outra, como uma resposta, nem sempre racional, à percepção de ameaças à segurança.

A crítica realista das tradições de política externa norte-americana é uma versão modificada da escola da compulsão interna. Os realistas explicam a história da política externa dos Estados Unidos em termos de um idealismo ingênuo e militante, e não como as maquinações de interesses especiais (os historiadores progressistas) ou a dinâmica do imperialismo (os radicais). Quaisquer que sejam as suas diferenças políticas, os realistas, os progressistas e os radicais tendem a concordar que, como os Estados Unidos não enfrentaram nenhuma ameaça representada por uma grande potência desde os momentos iniciais da história do país, a explicação para a sua política externa precisa ser procurada em alguma compulsão interna - seja ela ideológica ou econômica.

Mas o fato é que pouco ou nada do que os Estados Unidos fizeram no final do século 19 e início do século 20 pode ser entendido a não ser como uma resposta - uma resposta exagerada, em alguns casos, mas ainda assim uma resposta - às ameaças representadas por grandes potências, e especialmente pela ameaça da Alemanha imperial.

Tendo rejeitado a política externa moderada de Bismarck e adotado uma estratégia agressiva de Weltpolitik, o kaiser e os seus assessores na década de 1890 passaram a procurar bases e aliados no México, no Caribe e na América do Sul, bem como em ilhas do Pacífico e em protetorados na China. O rápido crescimento naval da Alemanha inspirou os Estados Unidos. A Alemanha e os Estados Unidos competiram por bases insulares no Oceano Pacífico em Samoa e nas Filipinas, onde, durante a Guerra Americana-Espanhola, a frota alemã ameaçava a norte-americana.

A fim de combinar o poder das frotas do Atlântico e do Pacífico no caso de uma guerra com a Alemanha ou o Japão, os Estados Unidos montaram farsescamente a independência panamenha e construíram às pressas o Canal do Panamá. E foi para negar à Alemanha qualquer desculpa para a ocupação de países caribenhos ou centro-americanos que os Estados Unidos declararam a prerrogativa exclusiva das suas próprias forças armadas de impor a lei internacional em nome dos credores estrangeiros na América Latina. Já em 1903, a marinha dos Estados Unidos fazia planos para prevenir desembarques alemães no hemisfério ocidental por meio da ocupação de ilhas caribenhas estratégicas, um plano implementado por Washington nos anos iniciais da Primeira Guerra Mundial.

É possível prever que no seu segundo volume Kagan venha a alegar que o idealismo puro e o ódio ao militarismo prussiano, ao fascismo e ao comunismo, e não uma tentativa mundana de garantir a segurança nacional e a prosperidade dos Estados Unidos em um ambiente global pacífico, expliquem as intervenções norte-americanas nas guerras mundiais e na guerra fria, seguidas pelas guerras desinteressadas para substituir a ditadura pela democracia no Panamá, na Sérvia e no Iraque. Dotados de um traço do espírito dos jacobinos radicais e dos comunistas soviéticos, neoconservadores como Kagan vêem os Estados Unidos como o centro de uma ideologia militante e universal que precisa ser disseminada pela força das armas. Já os norte-americanos comuns, de forma contrastante, têm sido guerreiros relutantes.

A coruja de Minerva voa ao anoitecer. A tentativa engenhosa, mas inconvincente, de Kagan de reescrever a história dos Estados Unidos a fim de apresentar os norte-americanos como neoconservadores e a Guerra do Iraque como a conseqüência lógica da declaração da independência está destinada ao fracasso, assim como já fracassou aquela política para a qual ele procura fornecer um passado aproveitável. "Dangerous Nation" não tem valor algum para os estudantes da história da política externa dos Estados Unidos. No entanto, será objeto de algum interesse para os estudiosos da história da propaganda neoconservadora.

*Michael Lind é pesquisador da New America Foundation, em Washington D.C., e autor do livro "The American Way of Strategy" ("O Estilo Norte-Americano de Estratégia").
Tradução: UOL


[Prospect, 15/11/2007]