Tropicalismo, 40.

Outubro de 1967 ficou conhecido como o mês em que foi lançado o tropicalismo. No dia 21, Gilberto Gil e Os Mutantes defenderam a música "Domingo no Parque" no 3º Festival de MPB da Record, conquistando o segundo lugar, enquanto Caetano Veloso ficou em quarto com "Alegria, Alegria". O movimento, no entanto, já vinha tomando forma fazia alguns meses. O nome "Tropicália" foi dado, em abril, a uma instalação de Hélio Oiticica. A estética também era relacionada a obras como o filme "Terra em Transe" e a peça "O Rei da Vela".

Antagonismos formaram o caleidoscópio tropicalista
Movimento surgido há 40 anos foi a resposta brasileira à efervescência mundial de idéias

JÚLIO MEDAGLIA, ESPECIAL PARA A FOLHA
Os anos 60 iniciaram-se comportadíssimos, com as artes baseadas em linguagens compactas, introspectivas, voltadas para o controle absoluto do acaso. Tanto quanto no jazz (com o movimento cool), na poesia e nas artes plásticas (com o concretismo), com a retomada do dodecafonismo na música de concerto, a bossa nova representava na MPB esse despojamento, essa implosão de idéias. A ordem era filtrar tudo, reduzir componentes para aumentar a tensão.
Mas, se na virada dos 50 para os 60 uma nota só era suficiente para Jobim compor uma música antológica de seu tempo, na outra ponta da década bombas atônitas de muitos megatons explodiam em todas as partes e artes entrecruzando idéias, aparentemente antagônicas entre si, formando um dos mais coloridos caleidoscópios culturais da história. Dos delírios tachistas de Jackson Pollock, passeando com suas tintas pelas telas espalhadas no chão, aos aleatorismos de John Cage nas salas de concertos; da desintegração do jazz, com o free de Coltrane, San Ra, Ornette Coleman e Art Blakey, ao rock psicodélico dos Beatles pós-"Sgt. Pepper's", do rock inteligente de Frank Zappa, do anti-rock de Hendrix ao antiblues de Janis Joplin, tudo ia pelos ares e mares.
Há 40 anos, dois baianos que aparentemente nada tinham a ver com essa excitação, Caetano Veloso e Gilberto Gil (o primeiro, tímido, se exibia num programa de TV e sabia de cor letras de canções de todos os tempos; o outro tocava por 30 cruzeiros num boteco da galeria Metrópole, ainda de terno Ducal e gravata, pois chegava às pressas do escritório da Gessy Lever, onde era contador), lideravam em São Paulo um movimento que era uma resposta brasileira à efervescência mundial de idéias.

Do fino ao cafona
No tropicalismo tudo cabia, interagia e explodia: da música de vanguarda à de retaguarda, da fina à cafona, da discreta à comportamental, da intimista à social, da implícita à escancarada, do berimbau ao teremin, do portunhol ao latim, do som ao ruído, da poesia concreta à de cuíca de Santo Amaro, do Debussy celestial a Vicente Celestino, do samba ao rock, do canto ao toque.
Curiosamente, porém, esses dois tranqüilos baianos, um que falava em "água azul de Amaralina", e outro, em "o rei da brincadeira é José", foram presos. Aliás, da MPB, os únicos. A quem gritava "a terra deve ser do povo", "nos quartéis se aprende a morrer pela pátria e a viver sem razão", ou fazia apologia a Che Guevara em festivais e coisas assim, nada aconteceu. Passaram incólumes pelo crivo do Brasil fardado.
Ou seja: os milicos tinham identificado onde estava o "perigo". Que a "subversão" estava na linguagem, e não na língua; que o que transformava o mundo era o comportamento, e não o panfleto. Os ditadores perceberam aquilo de que os universitários do Tuca que vaiaram Gil e Caetano, por ocasião de "É Proibido Proibir", não tinham se dado conta: que o tropicalismo tinha um profundo sentido político inovador.
Mas, 40 anos depois, revendo as provocações e contribuições que o movimento trouxe à cultura brasileira, cheguei à conclusão que a mais importante de todos foi a seguinte: a grande qualidade de sua música.

O maestro JÚLIO MEDAGLIA é autor do arranjo original da música "Tropicália", de Caetano Veloso.

[Folha de São Paulo, 28/10/2007]



A mulher que ousa dizer não ao fundamentalismo

A escritora somali lança a autobiografia Infiel e diz que o Islã não é compatível com a modernidade ocidental, além de criar uma cultura que provoca atraso a cada geração

Antonio Gonçalves Filho
No primeiro parágrafo do livro Infiel (Companhia das Letras, 500 págs., R$ 49), a escritora somali Ayaan Hirsi Ali, de 38 anos, conta que nasceu num país dilacerado pela guerra e foi criada num continente “mais conhecido pelo que dá errado do que pelo que dá certo”. Para os padrões da Somália, ela deveria, se ainda fosse religiosa, erguer as mãos ao céu por ainda estar viva e sã. E conta a razão: aos 5 anos, foi “torturada” pela avó até decorar os nomes de todos os ancestrais, como todos os filhos de nômades do deserto, sob o risco de ir para o inferno; ainda criança, foi “purificada” mediante a ablação da genitália; finalmente, já adulta, começou a refletir sobre a condição feminina nos países muçulmanos e, obrigada a casar contra a sua vontade, deu um jeito de pedir asilo político ao desembarcar em solo holandês a caminho do Canadá. Foi na Holanda que conheceu há quatro anos o cineasta Theo Van Gogh, com quem colaborou no roteiro do filme Submissão, definido por ela como um curta sobre os muitos tipos de sofrimento causados às mulheres pela sujeição ao Islã.
O filme acabou decretando a morte do cineasta por um muçulmano marroquino, em 2004. Van Gogh não deu a mínima quando Ayaan o alertou sobre a mensagens divulgadas pela internet que exortavam os fiéis de Alá a dar um fim em ambos. O cineasta acabou degolado na rua pelo fanático islâmico, que ainda fincou uma faca em seu peito com uma carta destinada à escritora. Nela, o assassino condenava os “atos criminosos” cometidos pela autora somali contra o Islã. Desde então, Ayaan vive sob proteção policial, primeiro na Holanda, onde chegou a conquistar uma cadeira no Parlamento, e agora nos EUA. De lá ela concedeu uma entrevista ao Estado, em que define o islamismo como “incompatível com os direitos humanos e os valores liberais”.

Você diz que a mensagem de seu livro é que o Ocidente faz mal em prolongar a dor da transição do Islã para a modernidade, alçando culturas farisaicas à estatura de um estilo de vida alternativo. O Islã é, segundo seu ponto de vista, uma ameaça ao pensamento liberal?
Sim, do jeito que eu vi homens e mulheres muçulmanos enchendo a cabeça de suas crianças com a idéia de inferno e punição, o mínimo que posso dizer é que a transição do Islã para a modernidade será muito difícil, porque o fundamentalismo religioso é incompatível com os valores democráticos. Ao ameaçar quem não crê na infalibilidade do Alcorão ou do profeta, os fundamentalistas criam uma cultura que provoca retrocessos a cada geração. O inferno começa quando alguém lembra que o Alcorão foi escrito num contexto e época diferentes e os radicais o acusam de infiel, por refutar as palavras de Deus. Temos de nos livrar dessa idéia de um deus ditador, como fizeram várias religiões, entre elas o cristianismo.

A imprensa internacional costuma dizer que você e Theo van Gogh foram longe em sua crítica ao Islã, ao defender que os multiculturalistas do Ocidente não deveriam tolerar os fundamentalistas islâmicos. Você acha que sua defesa intransigente da igualdade feminina e a condenação do islamismo não podem atiçar um sentimento racista contra os muçulmanos?
Não, ao contrário. Não defendo a abolição do Islã, nem que os muçulmanos sejam expulsos dos países ocidentais, mas, neste exato momento, milhões de mulheres muçulmanas estão trancadas em casa sem o poder de escolha que eu tenho. Quando alguém me diz que a cultura islâmica está calcada em tolerância, compaixão e liberdade, penso nessas mulheres muçulmanas e como elas farão para viver num mundo moderno. O mundo islâmico está preparado para uma revolução como a do cristianismo na era moderna? Não quando a teologia islâmica proíbe qualquer discussão sobre o Alcorão. Ao admitir que o profeta é infalível, os muçulmanos instituíram uma tirania permanente, renunciando à liberdade.

No momento em que desembarcou na Holanda, você tomou contato com um sistema moral alternativo, como admite em seu livro, notando que a história filosófica e religiosa ocidentais revelam que o Ocidente progrediu depois de questionar a infalibilidade da Bíblia. Você concorda com Christopher Hitchens quando ele diz que Deus não é grande?
Concordo e entendo quando ele preconiza a necessidade de um estado laico, distante da ingerência religiosa. Religiões levam invariavelmente à guerra. Pode-se imaginar outro caminho para a evolução além de dogmas religiosos. A história da humanidade, claro, não é feita apenas de progresso. Avança-se às vezes para retroceder em outras ocasiões. O Islã nos faz retroceder. Eu, pessoalmente, recuso-me a voltar ao sétimo século e sei que muitas outras pessoas nascidas em países muçulmanos dividem a mesma posição.
Alguns jornalistas americanos gostam de provocá-la dizendo que você comprou a ideologia neoconservadora do American Enterprise Institute. Há mesmo quem diga que você estaria na mesma rota de David Frum, que cunhou a expressão “eixo do mal”, depois usada por Bush. Você acredita num “eixo do mal”?
Primeiro, é preciso dizer que nem todos são conservadores no American Enterprise Institute. Há democratas também. Depois, é preciso lembrar que o instituto nasceu com o propósito de pensar a questão do mercado e influenciar governos, não o de ditar suas políticas externas. Se eu acredito em eixo do mal? Acredito, sim. É só analisar a ameaça da bomba atômica no caso iraniano, prestes a ser fabricada, ou o caso da Coréia do Norte.

Você se arrepende de ter feito o filme Submissão com Theo van Gogh quando pensa em sua morte ou nas ameaças que você recebeu?
Não. Theo tampouco deu atenção às ameaças, porque preferia morrer a ver seu país transformado pelo medo. Ele dizia: “Ayaan, este é meu país, este é meu filme. Se eu não fizer Submissão, estarei morando num país de bárbaros, e não mais na Holanda.”

Salman Rushdie escreveu um texto que a define como a primeira refugiada da Europa desde o Holocausto, um testemunho único da fraqueza e, ao mesmo tempo, da fortaleza do Ocidente. Como você vê seu futuro e o do mundo?
O Islã foi fundado nos desertos árabes, dentro de uma realidade tribal que nada mais tem a ver com o mundo moderno. É duro ser uma exilada, mas não quero ser uma bandeira ou lutar contra ninguém. Digo apenas que devemos desbloquear nossas mentes. Esta é a minha contribuição para as gerações futuras.

Darfur - A crise explicada

A guerra na região de Darfur, no Sudão, deixa perplexos tanto especialistas em África quanto diplomatas experientes, de forma que não causa surpresa deixar confuso o público em geral. Este guia para o conflito responde dez perguntas simples.

Alex de Waal
1. Onde fica Darfur?
Darfur é a região mais a oeste do Sudão, o maior país da África. Ela se espalha pelo deserto do Saara, pelas savanas secas e florestas da África central. Ela é maior que a França, apesar de esparsamente povoada. A população de Darfur vive da terra, a cultivando durante a estação das chuvas (junho-setembro) e criando animais.Darfur foi um sultanato independente de cerca de 1600 até 1916, quando foi integrado ao vizinho Sudão e se tornou o maior território a ser absorvido pelo império britânico. Após a independência do Sudão em 1956, Darfur foi negligenciado, com pouco desenvolvimento econômico.

2. Quem são os darfurianos?
Cerca de um terço da população de Darfur (cerca de 6,5 milhões no total) é composta de descendentes de árabes que migraram pelo Saara entre os séculos 14 e 18, se casando com os habitantes locais de forma que a maioria é fisicamente indistinguível de seus vizinhos não-árabes. Darfur também tem uma longa história de migração da África Ocidental.Todos os darfurianos são muçulmanos e a maioria é seguidora da seita sufi Tijaniyya, originária do Marrocos.

3. Como o Sudão é governado?
Os governos pós-independência do Sudão (população atual de 40 milhões) foram todos dominados por uma elite de Cartum, a capital do país. A orientação árabe e islâmica desta elite provocou rebeliões no sul do Sudão entre a população não-árabe daquela região, a maioria cristãos e teístas. Os darfurianos também foram marginalizados pelos governos sudaneses, apesar de muitos fazerem parte do Exército.Em 1989, um golpe militar levou o presidente Omer al Bashir ao poder, mas ele foi ofuscado por Hassan al Turabi, que buscou formar um Estado islâmico. A militância de Turabi exacerbou a guerra no sul cristão, provocou a hostilidade dos vizinhos do Sudão e levou a um isolamento internacional.Falidos e exaustos, os islamitas começaram a brigar entre si em 1999 e Bashir prendeu Turabi. Determinado a manter o poder, Bashir buscou a paz no sul, assinando um "acordo de paz abrangente" com o Exército de Libertação do Povo Sudanês (SPLA), em janeiro de 2005. Enquanto isso, Darfur foi se tornando cada vez mais ingovernável. As armas eram abundantes, importadas de guerras civis no sul do Sudão e no Chade.

4. Por que a guerra começou?
Os primeiros confrontos armados em Darfur ocorreram em 1987, quando a milícia árabe chadiana - armada pela Líbia como parte da tentativa de Gaddafi de controlar o Chade - foi empurrada para Darfur pelas forças chadianas e francesas.Em 1991, o SPLA tentou instigar uma rebelião em Darfur mas foi esmagado pelo exército sudanês e por uma milícia árabe. Novos confrontos ocorreram esporadicamente ao longo dos anos 90, provocados pelas disputas por terras e rebanhos. Em cada caso, enquanto os líderes locais tentavam promover conferências de paz intertribais, os serviços de segurança respondiam com táticas dividir-e-governar, geralmente armando a milícia árabe e tentando desarmar os grupos de defesa das aldeias. Em nenhum momento as causas por trás do descontentamento - a pobreza e marginalização de Darfur - foram tratadas.

5. Quem são os rebeldes darfurianos?
Em 2002, grupos de defesa da aldeia Fur começaram a se organizar e as unidades Zaghawa começaram a receber armas de seus parentes no exército chadiano (sem conhecimento do presidente). Com apoio do SPLA, eles formaram o Exército de Libertação do Sudão (SLA), promoveram ataques a guarnições do governo e publicaram um manifesto. Mas as alas Fur e Zaghawa do SLA fracassaram em cooperar. Enquanto o SLA de Abdel Wahid contava com grande apoio popular, a ala Zaghawa, liderada por Minni Minawi, era militarmente mais agressiva. Explorando a ausência de Abdel Wahid de Darfur - ele estava percorrendo o mundo para obter apoio- em novembro de 2005, Minawi convocou uma reunião e se elegeu presidente, criando uma divisão irreversível. Daí em diante, as duas alas começaram a enfrentar uma à outra assim como ao governo de Cartum.Em março de 2003, os islamitas dissidentes recém derrubados do poder em Cartum criaram o Movimento Justiça e Igualdade (JEM) e se juntaram à rebelião do SLA. Menor e mais coeso que o SLA, o JEM se apóia na base de seu líder, Khalil Ibrahim, entre o clã Kobe de Zaghawa.

6. Quem são os janjaweed?
Os janjaweed originais dos anos 80 eram uma coalizão de milicianos árabes chadianos e um punhado de nômades árabes darfurianos. Por anos, estes milicianos foram tolerados e apoiados de forma intermitente por Cartum. Quando a insurreição do SLA ganhou força, o governo recorreu aos janjaweed como vanguarda de sua contra-insurreição.Desafiando uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exigia o desarmamento dos janjaweed, o governo absorveu um grande número de milicianos em seu exército e continua a empregá-los contra aldeões suspeitos de apoiarem os rebeldes.

7. É genocídio? Em julho de 2004, os Estados Unidos iniciaram uma investigação sobre se as atrocidades em Darfur constituíam genocídio. A conclusão, anunciada pelo então secretário de Estado, Colin Powell, era que sim. Mas para desalento dos ativistas, Powell disse que isto não resultaria em nenhuma mudança na política americana. Em vez disso, ele encaminhou o assunto para o Conselho de Segurança da ONU, cujas investigações apontaram que ocorreram crimes de guerra e outras violações "tão hediondas quanto genocídio" em Darfur, mas que a acusação de genocídio era injustificada. O Conselho de Segurança encaminhou o assunto ao Tribunal Penal Internacional, que deverá emitir seus primeiros indiciamentos em breve.Grandes organizações de direitos humanos e agências humanitárias se recusam a usar o termo "genocídio" em Darfur. A análise delas é de que Darfur não se trata de uma tentativa deliberada de exterminar um grupo, como no Holocausto e Ruanda, mas sim de crimes contra a humanidade cometidos ao longo de uma contra-insurreição.

8. Quem está protegendo os civis?
Após negociações na capital chadiana em abril de 2004, Cartum e os rebeldes concordaram em um cessar-fogo, que seria monitorado por uma equipe de observadores da União Africana (UA). O cessar-fogo foi violado por ambos os lados, o que tornou impossível a tarefa da Missão da União Africana no Sudão (Amis). A Amis foi ampliada para 7 mil soldados, mas suas operações foram atrapalhadas pela escassez de fundos e combustível -assim como pelo mandato fraco que não lhe permitia proteger todos os civis em risco.A Casa Branca decidiu que a Amis deveria ser substituída por uma força de paz maior da ONU, com autoridade para uso de força. Nos últimos 18 meses, os esforços para impor esta força a um Sudão relutante consumiram grande parte das energias diplomáticas empregadas pelo Ocidente em Darfur. O presidente Omer al Bashir fincou o pé e rejeitou qualquer papel militar da ONU.

9. Por que as negociações de paz fracassaram?
A UA realizou sete rodadas de negociações de paz, culminando em uma sessão contínua de seis meses na capital nigeriana, de novembro de 2005 a maio de 2006. Sob severa pressão, especialmente dos Estados Unidos, Cartum e Minawi concordaram. O líder do JEM, Khalil Ibrahim, rejeitou o pacote de imediato. Abdel Wahid, que conta com o maior apoio em Darfur, também rejeitou. Após a assinatura do acordo, Minawi foi desertado pela maioria de seus comandantes.

10. O que precisa ser feito?
Desde maio passado, uma combinação de cinismo do governo e liderança errática dos rebeldes levou a um agravamento da crise em Darfur. A guerra se intensificou e agora é em parte uma guerra por procuração entre o Chade e o Sudão, com cada lado apoiando os rebeldes do outro. Uma reunificação dos rebeldes é necessária antes que qualquer negociação significativa possa ser realizada.Uma solução política de Darfur está agora mais distante do que em qualquer momento desde que a guerra teve início. Esta complexidade frustrante não é motivo para outra solução rápida mal acabada: é motivo para tratar dos processos políticos complicados mais seriamente.

Alex de Waal é diretor do Social Science Research Council, uma organização sem fins lucrativos com sede em Nova York
Tradução: George El Khouri Andolfato



Curdos: uma população vítima de impérios e promessas quebradas

"As montanhas são os nossos únicos amigos", diz um ditado curdo. Este povo sem Estado vive, como escreve a AFP, ao ritmo das crises numa região explosiva, que junta partes da Turquia, Irão, Iraque e Síria (o que corresponde ao Curdistão). E pode queixar-se de ser vítima de promessas quebradas e tratados não cumpridos ao longo de décadas e décadas.
Viveram a maior parte da sua história sem governo próprio, subjugados por nações mais poderosas. Ainda assim, os entre 25 e 35 milhões de curdos - pelo menos 14 milhões na Turquia, mais de cinco milhões no Iraque, quatro milhões no Irã, quase dois na Síria, para além das minorias curdas na Armênia, Azerbaijão e na diáspora (sobretudo Alemanha) - são testemunho de um dialeto que foi preservado, próximo do farsi do Irão, e de tradições próprias. A maioria são muçulmanos sunitas; um quinto serão xiitas. E garantem que não há uma etnia tão grande sem um Estado.
O nacionalismo curdo surgiu na década de 1890. Até lá, "eram instrumentalizados pelos poderes imperiais persa e otomano que lhes davam um grande espaço e os utilizavam como excedentes" para fazer reinar a ordem nas fronteiras ou controlar as outras minorias, adiantou à AFP o investigador Oliver Roy. "Foi quando os dois nacionalismos turco e persa se laicizaram que os curdos desenvolveram uma reivindicação étnico-nacional."
Desde o final da I Guerra Mundial, inúmeras potências utilizaram-se dos curdos para abandoná-los na última hora. Em 1920, o Tratado de Sèvres prometia-lhes um Estado autônomo. Em vez disso, o líder turco Kemal Ataturk deu mais tarde ordens para esmagar as lutas independentistas. As perspectivas de um Curdistão independente ficaram mais enterradas quando a Turquia se aliou ao Irã e Iraque para, em 1937, assinar o pacto de Saadabad, destinado a coordenar esforços para acabar com os "grupos armados".
Nos anos 70, com ajuda norte-americana, israelense e iraniana, eles foram usados para enfraquecer o regime ba’athista. O partido Ba’ath (de Saddan Hussein) tinha acabado de tomar o poder quando o dirigente histórico dos curdos iraquianos, Mustapha Barzani – pai de Massud Barzani, atual líder do Partido Democrático do Curdistão (PDK) –, lançou a velha reivindicação de seu povo. Vivia-se, então, em plena guerra fria e a aproximação entre Bagdá e a União Soviética preocupava Henry Kissinger e os Estados Unidos. A partir de 1972, os curdos passaram a receber uma ajuda financeira norte-americana e israelense, além de gozarem do apoio do xá do Irã. O relatório confidencial Pike, redigido pela CIA em 1975, explicava: ao apoiar o movimento de Mustapha Barzani, Washington – aliás, como Teerã – não pretendia a vitória dos rebeldes e, sim, manter “um nível de hostilidade suficientemente forte” para enfraquecer o regime ba’athista, dissuadindo-o de aventureirismos internacionais.
Por ocasião da guerra árabe-israelense de 1973, seguindo as orientações de conselheiros israelenses, os curdos estavam prestes a lançar uma ofensiva contra o exército iraquiano, mas Kissinger dissuadiu-os com firmeza e os peshmergas (guerrilheiros) obedeceram. Em março de 1974, também foi devido aos conselhos dos Estados Unidos e do Irã que Mustapha Barzani recusou um acordo proposto por Bagdá (um território autônomo bastante grande, em troca do fim da luta armada) e rejeitou uma oferta de mediação soviética.
Alguns meses mais tarde, no dia 6 de março de 1975, Saddam Hussein e o xá do Irã assinaram um acordo em Argel: em troca da suspensão da ajuda de Teerã ao movimento rebelde de Mustapha Barzani, Bagdá aceitava que a fronteira Sul entre os dois países fosse fixada no estreito de Chat-Al-Arab. Sem a ajuda, da qual haviam se tornado totalmente dependentes, os autonomistas curdos sofreram uma derrota acachapante: 200 mil refugiaram-se no Irã. Questionado sobre as conseqüências de sua política, Kissinger respondeu: “Ações clandestinas não podem ser confundidas com obras missionárias.”
Em 1984, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) pegava em armas para reivindicar um Estado - a sua luta já fez mais de 30 mil mortos.
Num artigo de agosto de 2006, a Economist escrevia que "é difícil determinar com precisão o grau de liberdade que merecem os curdos da região, e até que ponto devem poder - e ser encorajados a - gozar de um autogoverno num canto do Médio Oriente que é já de si um isqueiro de rivalidades sectárias e étnicas".
Só mais recentemente, com a entrada na União Européia no horizonte, é que a Turquia começou a tratar melhor os curdos (até 1991 era ilegal falar curdo sem ser em casa). "A região autônoma do Iraque, com bandeira própria, parlamento e Exército, fez aumentar o orgulho e a confiança curda por todo o lado", adiantava o mesmo artigo.

Os curdos voltaram ao noticiário diário a partir da ofensiva do PKK e da ameaça de invasão pela Turquia da região curda do Iraque.

Saiba mais sobre o PKK:
Fundado em 1978, luta por um território nacional para os curdos, que incluiria parte do Leste da Turquia.- É a principal força política e armada entre a população curda.
- Há cerca de 40 milhões de curdos no mundo (o maior povo sem pátria) espalhados por vários países. Além da Turquia, Iraque, Síria e Irã têm grandes populações curdas.
- É considerado ilegal.
- O maior líder foi Abdullah Ocalan, já morto. Ocalan foi condenado à morte por traição e separatismo.
- Sob orientação de esquerda, desenvolve guerrilha popular e separatista.
- Tem cerca de 15 mil homens destinados a combate e outros 60 mil militantes.
- Seu braço político é Frente de Libertação Nacional do Curdistão (FLNK).
- É acusado de estar por trás da maioria dos ataques a alvos turcos desde 1984.
[fonte: Globo on line]

A veterana e feroz estadista do feminismo

Romancista de idéias e idealismo, Nobel de Literatura/2007, Doris Lessing faz 88 anos

Lisa Allardice, The Guardian
Doris Lessing pode ser feroz. Mas esta manhã, como seria de se esperar de uma mulher de 88 anos, a serem completados amanhã [22/10], e que acaba de ser agraciada com o mais alto galardão da literatura, ela é toda sorrisos e beijos. A escada da sua dilapidada casa com terraço em West Hampstead está ladeada de buquês de flores. A sala de visitas no andar superior, da qual me lembro da última vez em que a entrevistei como um tanto sombria, abarrotada por pilhas de livros e revistas, tapeçarias e quadros opressivos, hoje está iluminada por mais flores, todas em tons carregados de laranja e vermelho. “As pessoas obviamente me associam ao pôr-do-sol”, diz ela. Seu gato está amuado, diz ela, porque não está recebendo atenção suficiente por causa da confusão toda. Mas, apesar da comoção das últimas 24 horas, estamos sozinhas, embora o telefone, ajustado para um tom estridente - ela está ficando levemente surda - volta e meia toque com novos cumprimentos.
O melhor, diz ela com inconfundível júbilo, foi o telefonema de seu herói, Gabriel García Márquez. “Fiquei terrivelmente comovida pela diversidade de pessoas que se alegraram por mim.”
Então o favorito deste ano, Philip Roth (as chances eram de 7 para 2), um figurão da literatura extremamente prolífico e controverso, famoso por escrever sobre masturbação, política e neuroses masculinas, foi vencido pelo azarão (50 para 1), uma figurona da literatura extremamente prolífica e controversa, famosa por escrever sobre menstruação, política e neuroses femininas. Ela é, como todas as reportagens salientaram, apenas a 11ª mulher a ter vencido nos 104 anos do prêmio. Isso será um triunfo para mulheres escritoras? “Detesto falar de literatura em termos de homens e mulheres. Não ajuda.” Mas ela lamenta muito que Virginia Woolf nunca tenha estado na lista.
Uma das razões, talvez, para Lessing não ter sido uma escolha tão surpreendente é ela ser, sobretudo, uma romancista de idéias e idealismo. Pós-colonialismo, comunismo, feminismo, misticismo - há poucos “ismos” do século 20 de que Lessing não tenha sido rotulada, judiciosamente ou não. “Eles...”, diz ela fazendo um gesto com a mão, “... eles gostam de aplicar rótulos para facilitar as coisas.”
O crítico literário Harold Bloom chamou a decisão da academia de “pura correção política”, eu digo. “Harold quem?” “Bloom”. “Oh, Harold Bloom. O que acha que ele quis dizer? Talvez ele pense que era hora de premiarem uma mulher.” O telefone toca novamente. “Diga a Harold Bloom que eu tive recomendações muito mais bacanas”, diz ela, dando uma risadinha. Então, por que ela acha que foi premiada depois de permanecer 40 anos na lista menor? “Provavelmente porque escrevi de tantas maneiras diferentes, sem nunca achar que não tivesse o direito disso. É uma lista impressionante.”
Ela ficaria desapontada se não o tivesse recebido? “Não, a coisa se arrastou por anos e anos, honestamente, era tão aborrecido. Ganhei todos os prêmios europeus. Este é o mais glamouroso, mas isso não significa que é o melhor de um ponto de vista literário.”
Certa vez lhe pediram para se tornar uma dama do império britânico, mas ela teria recusado por ser “um pouco pantomímico”. Ela realmente falou isso? “Sim, falei”, diz ela, recostando-se num sofá tão baixo que estamos quase acocoradas no chão. “Bem, antes de tudo não existe um império britânico, ninguém parece perceber isso. Depois, eles perguntaram se eu não gostaria de ser uma companheira. Uma companheira de quem ou do quê? Francamente.”
Ela é decerto a mais veterana estadista do feminismo na Grã-Bretanha - um manto de que ela vem tentando se desvencilhar desde que The Golden Notebook (O Caderno Dourado) foi proclamado “uma bíblia feminista” em 1962. Ela realmente vê o romance, com já disse, como seu fardo?
“Esse livro tem uma espécie de carga, eu tenho que admitir. Ele vive pipocando num país ou noutro, e eu tenho que dizer, ‘Meu Deus, esse livro tem algo’. Ele tem uma qualidade, uma vitalidade.”
Seu colega laureado J. M. Coetzee a chamou de “uma das maiores romancistas vitorianas de nosso tempo”. E uma coisa freqüentemente pouco considerada sobre Lessing é que ela tem sido uma pioneira tanto na forma como nas idéias, sua ficção evoluindo do realismo humanista de seus primeiros romances à fase média fantástica. Com característico espírito do contra, ela tem grande orgulho de sua série de ficção científica Canopus, o que deixa muitos críticos desnorteados. “Acho que alguns de meus melhores textos estão na série Shikasta. São experimentais. O problema é que nunca deveríamos subestimar o conservadorismo dos críticos litera... Quando The Golden Notebook saiu, ninguém percebeu que a forma que eu estava usando era tão interessante; eles ficaram obcecados demais pelo fato de que eu pretendia ser antimasculina, castradora.”
Ela parece se divertir seduzindo a irmandade feminina com uma confissão politicamente incorreta de determinismo biológico e diferença intrínseca entre os sexos. Seu último romance, The Cleft (A Fenda), uma fantasia distópica que descreve o sexo feminino como apático e preguiçoso, mas útil com uma vassoura, e os homens como uns “zé-ninguém” curiosos, aventureiros, deixou algumas críticas indignadas.
Como aconteceu com W. H. Auden, os belos retratos de Lessing já idosa tornaram seu rosto um dos mais reconhecíveis da literatura. Com suas rugas acentuadas pelo tempo e seu olhar agudo, seu rosto dá a impressão de toda uma vida perscrutando as lonjuras africanas - o que, num certo sentido, é exatamente o que ela vem fazendo desde que saiu de Johannesburgo em 1950, com seu primeiro manuscrito na bolsa.
A história de Lessing será bastante conhecida de seus leitores, não menos porque ela passou muitos anos a registrando. Em suas memórias, ela descreve com intimidade quase obscena os suspiros, sons e, mais poderosamente, os cheiros da mata africana que a nutriram e formaram. Sua infância - dividida entre uma tumultuada vida ao ar livre e uma intensa vida interior - foi marcada por sua mãe dominadora, com quem ela brigou “com firmeza, mas relutância” até a morte desta. Embora as figuras maternas se destaquem em sua ficção, foi só recentemente que ela conseguiu escrever diretamente sobre a sua mãe. E Lessing a perdoou? “Eu a expliquei, e isso é perdão.”
Seu mais recente romance - que ela afirma que poderá ser o último e que ela acaba de entregar a seu agente - intitula-se Alfred and Emily, por seus pais. Ela sempre os descreveu como aleijados pela Primeira Guerra Mundial (seu pai fisicamente: ele perdeu uma perna; sua mãe emocionalmente). Na primeira metade do romance, ela “aboliu a Primeira Guerra para que eles tivessem vidas comuns, decentes, laboriosas”. A segunda metade fala do que aconteceu depois que eles se mudaram para a Rodésia do Sul. “Basicamente, é um livro contra a guerra, que não é o que eu pretendia escrever.” Ela teria sido influenciada nisso pelos acontecimentos mundiais correntes? “Não. Não mesmo. Odeio a guerra, é claro, e acho que muitas pessoas jovens não têm idéia do que foi realmente a guerra. Tenho um medo horrível que os jovens possam ver a guerra como uma coisa glamourosa.”
Ela já disse que os ingleses são melhores em “romances pequenos, circunscritos, do que nas nuances de comportamento de classe ou social”. “É verdade. Eles o fazem soberbamente.” E não achará ela que o romance contemporâneo devia se engajar mais em política? “Não, você poderia se surpreender com isso, mas eu jamais pensei que um romance devia ser uma mensagem política: veja minha obra e descubra um romance que seja uma mensagem política.”
Então, o que ela pensa que é a sua maior realização? “O que tenho feito é continuar escrevendo apesar de todas as dificuldades. Estou presa nisso. Às vezes, tem sido muito difícil. Não esqueça que tive um filho na parte inicial disso.” Uma das outras características mais notadas da vida de Lessing é que, assim como Muriel Spark, que lhe era desconhecida quando ela vivia perto, na Rodésia, ela é uma das mais famosas trânsfugas da literatura - algo que lhe rendeu muitos dissabores por se recusar a mostrar suficiente remorso. “O filho de Muriel foi criado pelos avós e os meus filhos foram criados por uma segunda esposa. Eles não foram exatamente abandonados numa porta.”
Ela não se sente terrivelmente culpada? “Não, percebe, essa é a coisa difícil. Porque se eu não tivesse saído, sei o que teria me acontecido. Teria sofrido um tremendo um colapso nervoso e me tornaria alcoólatra. Embora tenha sido uma coisa terrível de fazer, foi a coisa certa.”
Mas há uma triste ironia no fato de Doris Lessing ter passado os últimos anos cuidando do filho de meia-idade de seu segundo casamento, Peter, que vive num apartamento ao lado do seu. Ele tem estado muito doente e tem sido hospitalizado algumas vezes, o que tornou cada vez mais difícil ela encontrar tempo e energia para escrever.
Apesar de muitos escritores afirmarem que escrevem absolutamente para si mesmos, sente-se que com Lessing isso é verdade. Ela escreve sobre o que a interessa naquele momento, e se os leitores não gostarem, o problema é deles. E os leitores que gostam, não gostam simplesmente dela, eles a amam.
“É maravilhoso”, diz ela. “Conheci garotas que dizem ‘Minha mãe me disse para ler você, e minha avó também’. Isso é uma coisa e tanto, não é?”
Tradução de Celso M. Paciornik

[Estado de São Paulo, 21/10/2007]

Direitos humanos na encruzilhada

TERÇA, 16 DE OUTUBRO
Padre denuncia extorsão
Um bando chefiado por um ex-interno da Febem é investigado pela polícia por extorquir dinheiro do padre Júlio Lancelotti, vigário do Povo de Rua. Nos últimos meses, o grupo ampliou as ameaças, dizendo que denunciaria o padre por abuso sexual de menores.

A violência fragilizou os poucos agentes que se dispõem a lutar pela humanidade dos que perecem no abandono

José de Souza Martins
A questão fundamental dos direitos humanos se tornou entre nós o cerne de uma cultura da culpa e da caridade. Há uma dimensão anti-pedagógica nessa tendência que os torna humanos incompreensíveis para um grande número de pessoas. Amplos setores da sociedade se sentem vitimados por uma postura ética que é equivocadamente interpretada como justificação do crime e escudo para protetores de bandidos. Não obstante tais simplificações, num país crônica e estruturalmente injusto, em que os direitos de todos são secundários em face de poderes do Estado e dos poderios de poucos, relembrar cotidianamente a humanidade do homem, o direito à vida e à liberdade, à dignidade e ao respeito em boa medida neutraliza equívocos e distorções doutrinários e ideológicos. Mas não neutraliza os impulsos dos que estão fechados à precedência do humano em relação ao desumano de egoísmos, privilégios e indiferenças.
O que aconteceu ao Padre Júlio Lancelotti, nestes dias, constitui uma das expressões dos dilemas e contradições da opção social e política movida por essa cultura da culpa que se espalhou pela sociedade nas últimas décadas. A canonização sumária dos pobres e das vítimas das injustiças sociais, como se tivessem direito à isenção de responsabilidade social e política, é melancólico desdobramento dessa cultura. Mas o descabido regozijo pela adversidade do padre é linchamento que se apóia na pobre contrapartida de concepções que não nos engrandecem nem como pessoas nem como cidadãos. Esse ímpeto linchador se nutre da mesma iniqüidade que move o bandido e o criminoso.
O Padre Júlio Lancelotti é o vigário do Povo de Rua e integrante da Pastoral do Menor na cidade de São Paulo, o criador da Casa Vida que acolhe crianças aidéticas, órfãs, que dos pais receberam como única herança a doença. Tem sido ele um defensor de causas impossíveis, não raro última voz dos que não são ouvidos nem reconhecidos como sujeitos de direito. Um padre situado pastoralmente no limite impreciso e cinzento de mundos que se confrontam de modo violento, a terra de ninguém do silêncio e da solidão.
Sua crucificação ocorre no momento em que multidões vão ao cinema ver Tropa de Elite, muitos movidos pelo ânimo do linchamento simbólico dos maus e dos que se inquietam com a anulação sumária da sua condição humana na repressão retrógrada e sem medida. As mesmas multidões que não mexem uma palha para atenuar as injustiças sociais, para reconhecer-se nas carências do outro, os que não enxergam o seu bem estar e seus privilégios como expressão direta das privações do outro. São poucos os que podem compreender esta sociedade em frangalhos, acossados pelos sempre dispostos a atirar a primeira pedra. Num país em que a alimentação jogada no lixo pelos fartos daria para alimentar com dignidade os que catam no lixo o que lhes falta é melancólico que não esteja em debate, isto sim, a necessidade política da função mediadora do lixo para definir o que sociologicamente somos.
A violência cotidiana que nos aterroriza a todos criou um cenário de urgência na prontidão dos poucos que se dispõem a lutar pela humanidade imperecível daqueles que a sociedade pobre de alternativas, de saídas e de esperança, transformou em agentes até cruéis de uma revolta compreensível, mas inaceitável. Tanto quem luta pelos direitos humanos dos que perecem no abandono, no relento, no deboche dos que têm e até dos que tudo têm, quanto quem se opõe a essa luta recusam-se a reconhecer as razões do outro. A penitência pelas contradições sociais e históricas acabam sendo forma caritativa e impolítica de contornar as grandes questões sociais. Fragiliza quem luta pelos direitos das vítimas de injustiças acumuladas. Mas a obstinada satanização dos agentes dessa luta, como se tem feito, fragiliza também os que se situam do outro lado. Tanto quem está de um lado quanto quem está do outro ignora as determinações ocultas da situação social das vítimas das adversidades. E acaba sendo vítima indefesa daquilo que não viu e não pode ver nem compreender.
É dessas ocultações próprias da sociedade que saíram os quatro agentes da extorsão, difamação e ameaça de morte sofridas em silêncio pelo sacerdote nos últimos anos. Até que ele recorresse à polícia para denunciar o que lhe acontecia e pedir ajuda e proteção. Ignorou que o crime é hoje no Brasil uma sociedade paralela e inimiga, com regras próprias e opostas, em guerra mortal com a sociedade a que pertencem as pessoas de bem. Uma sociedade paralela que só aceita a rendição incondicional da nossa sociedade e considera a caridade e a versão ingênua dos direitos humanos o seu cavalo de Tróia na guerra contra os que estão do outro lado. O que está em jogo neste caso não é nem a pessoa do padre nem a pessoa do seu explorador e sim esse confronto radical que embaralha as percepções que todos temos do que somos e de quem somos na trama complexa da sociedade contemporânea.
Em conseqüência do modo como se difundiu entre nós a luta pelos direitos humanos disseminou-se no País a concepção enganosa de que esses direitos privaram os humanos de direitos. Os militantes dos direitos humanos raramente levam em conta que nos meios populares há forte e arraigada identificação com o princípio, legítimo, aliás, de que os direitos são o prêmio dos deveres. Com exceção dos indiscutivelmente inocentes, que são as crianças, têm direitos os que cumprem seus deveres. Cidadão é apenas quem está numa relação de crédito com a sociedade e não de débito. Forte e trágica indicação dessa consciência social é a de que certas violações dos direitos da pessoa só têm conserto com a sumária e não raro cruel execução do criminoso, nos linchamentos.
O que está em jogo nesse cenário é a continuidade e a relevância da defesa dos direitos humanos. A minimização desses direitos minimiza os direitos de todos. Sem tais direitos só no restará pedir socorro às sociedades protetoras dos animais, como fez um preso político durante a ditadura.
José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP

[Estado de São Paulo, 21/10/2007]

Tensão de guerra fria, segunda edição

George W. Bush certa vez pensou que conseguia olhar nos olhos de Vladimir Putin e ver sua alma. Agora que o líder russo apertou suas garras no poder, porém, a amizade tensa entre esses dois estadistas pode virar uma inimizade declarada. O conflito em torno do Irã é apenas um exemplo

Gregor Peter Schmitz, em Washington
O senador John McCain falou em voz baixa, como faz freqüentemente em campanha. O candidato à presidência tinha acabado de falar sobre o Irã e era hora de dizer uma ou duas palavras sobre a Rússia. "Quando olhei nos olhos de Vladimir Putin", disse à platéia em um sussurro de conspiração, "vi três coisas: a K a G e a B."
Na quarta-feira (17/10), em uma conferência da Casa Branca com a imprensa, um repórter perguntou ao presidente o que ele achava das palavras de McCain. "Boa frase", disse Bush rindo -e jogou mais carvão retórico no fogo. Ele disse que Putin era "malicioso" sobre a questão de quem o sucederia no Kremlin.
Bush tinha acabado de usar palavras extraordinariamente enérgicas para descrever a tensão nuclear com o Irã. Claramente referindo-se a Putin, Bush disse aos repórteres: "Se alguém estiver interessado em evitar a Terceira Guerra Mundial, precisa estar interessado em impedir o Irã de ter o conhecimento necessário para fazer uma arma nuclear."
Essa referência à "Terceira Guerra" lembrou retóricas presidenciais anteriores com o "eixo do mal" (Bush, 2002) e "o império do mal" (Reagan, 1983). A escolha das palavras refletiu um profundo esfriamento das relações EUA-Rússia -e as diferenças em relação ao Irã não são a única razão para isso.
"O relacionamento está realmente abalado. Os dois lados parecem determinados a atacar um ao outro sempre que possível nos últimos meses", disse Rose Gottemoeller, diretora do escritório de Moscou do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, em entrevista ao Spiegel Online.
Trocando comentários depreciativosO conflito vem fermentando há meses. Algumas vezes, Putin denuncia abusos de poder por parte dos americanos -como fez em Munique em fevereiro- e algumas vezes compara os EUA sob Bush à Alemanha nazista sob Hitler. Na semana passada, ele deixou o secretário de defesa americano Robert Gates e a secretária de Estado Condoleezza Rice esperando 45 minutos em Moscou; depois, fez piadas sobre a possibilidade de um sistema de defesa de mísseis conjunto na Lua.
De sua parte, os americanos nunca perdem uma oportunidade de taxar a Rússia de Putin de não democrática. Em maio de 2006, o vice-presidente americano fez uma forte repreensão a Putin quando acusou o governo russo de usar petróleo e gás como meio de chantagear seus vizinhos. Agora, Bush foi além. Como Putin não coopera plenamente com os EUA no Irã, o presidente advertiu do perigo de uma terceira guerra mundial.O conflito sobre o Irã, entretanto, é apenas um osso da briga nesse relacionamento complexo. Parece improvável, por exemplo, que a visita de Putin ao presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad nesta semana tenha sido apenas para provocar os americanos.
"Os russos basicamente vêm perseguindo seus próprios interesses na região", diz Gottemoeller. "A visita se encaixa com seus esforços de aumentar seu papel como potência mundial." No entanto, ela acredita que Putin cometeu um erro estratégico em suas observações sobre o direito do Irã de desenvolver um programa nuclear civil. "Ele queria ser calorosamente recebido em Teerã e por isso fez essas declarações. Agora ele tem que lidar com um dilema de longo prazo, porque os iranianos esperarão apoio dele nesta questão."
No entanto, o Irã continua sendo uma ameaçaDe fato, Moscou ainda parece querer que o Irã coopere com os europeus e americanos. Não devemos esquecer que, antes de sua viagem a Teerã, Putin se reuniu com a chanceler alemã Angela Merkel e com Condoleezza Rice para discutir uma abordagem adequada.
Gottemoeller está organizando uma grande conferência sobre o Irã em Moscou; depois de conversar com jornalistas e autoridades do governo, ela acredita que a Rússia ainda vê o Irã armado com armas nucleares como ameaça.
Bush também age como se ainda pudesse trabalhar com a Rússia no Irã. Em sua conferência belicosa com a imprensa, ele não condenou prontamente a visita de Putin a Teerã -mas disse que preferia esperar ouvir seu relatório. Bush expressou abertamente sua esperança que Washington e Moscou continuem a cooperar.
Muitos especialistas também vêem um nível exagerado de preocupação em relação a uma declaração recente de cinco nações do mar Cáspio. Um dos princípios dessa declaração é que os signatários não permitirão que outros países usem seu solo para atos de agressão contra outro Estado da região do Cáspio -incluindo o Irã. O acordo foi entendido como um aumento das divergências entre EUA e Rússia, em parte porque os EUA mantiveram relações próximas com o Azerbaijão e podem querer usar bases aéreas no país.
"Não acho essa declaração tão surpreendente", disse Richard Morningstar, enviado especial para a região sob o presidente Bill Clinton que hoje é palestrante em Harvard. "Os EUA usariam bases azeri se quisessem lançar missões contra o Irã? Provavelmente não", disse ao Spiegel Online. "A Rússia vem tentando expandir sua influência na região? Sim. Esses países se encontram regularmente? Sim. Os americanos entendem isso? É claro. São vizinhos da Rússia, afinal."
Os relacionamentos pessoais, inclusive os entre líderes de Estado, são muito importantes para Bush, e ele sente que Putin o decepcionou. "Ele fez um julgamento totalmente errado de Putin", diz Michael McFaul do Instituto Hoover da Universidade de Stanford. "Ele achou que era um dos mocinhos". Assim como a descrição do ex-chanceler alemão Gerhard Schröder de Putin como "democrata exemplar", o galanteio de Bush depois de seu primeiro encontro com Putin em 2001 -q uando ele disse que tinha olhado nos olhos do líder russo e visto sua alma - parece ter sido pensamento positivo.
Os americanos também se sentem atropelados pela possibilidade da carreira política contínua de Putin. "A Casa Branca esperava que Putin assumisse algum papel depois de sua partida, talvez como diretor da Gazprom", disse Gottemoeller. "Mas eles não acharam que seria um papel político chave." Os rumores atuais que Putin concorrerá a primeiro-ministro arrasaram as esperanças de altas autoridades em Washington de um novo começo nas relações EUA-Rússia.
No interesse de manter um diálogo estratégico com Moscou, os americanos também foram cuidadosos em criticar as violações de direitos humanos pelos russos na Tchetchênia. No entanto, se também forem forçados a aceitar os planos pouco democráticos de Putin para se manter no poder, poderão perder a credibilidade como defensores da democracia -uma imagem que já foi manchada no mundo pelo fiasco do Iraque e escândalos de tortura.
"É difícil reprogramar o DNA básico russo"Durante sua visita a Moscou, Condoleezza Rice insistiu que a Casa Branca não tinha, de forma alguma, perdido autoridade moral em seu relacionamento com a Rússia. Muitos intelectuais discordam, porém, incluindo Masha Lipman, ex-diretora de uma revista de notícias russa e colunista do Washington Post: "Não está claro se Putin verdadeiramente acredita que a democracia ocidental seja algo mais que disfarce e manipulação, mas ele nunca perde uma oportunidade de dizer isso, e o povo russo cada vez mais compartilha dessa opinião."
Elementos moderados dos dois lados tentaram amainar a retórica dramática, inclusive Richard Lugar, senador republicano influente. Durante uma aparição no Instituto Brookings pouco antes da visita de Rice a Moscou, ele falou como um conselheiro conjugal: "Nós dois temos que entender que precisamos urgentemente um do outro", disse ao público, "e temos que colocar tanta energia em encontrar abordagens comuns quanto colocamos recentemente para ventilar nossas frustrações" .
Os desafios, entretanto, são assombrosos. "A busca do Kremlin de um novo arquiinimigo alterou as relações entre a Rússia e os EUA", diz McFaul. "Potenciais áreas de cooperação, como investimentos comuns na produção de petróleo, bases militares para combater o Taleban e sistemas de defesa de mísseis foram transformadas em competição acirrada onde há apenas vencedores e perdedores."
Putin já deixou claro que, se os EUA não respeitarem os interesses de segurança russos, a Rússia vai se retirar dos acordos firmados no final da Guerra Fria, incluindo grandes tratados de desarmamento. E sua postura assertiva durante a viagem ao Irã lembrou aos americanos da "doutrina Putin", que pode ser resumida como: aceitem-nos como iguais, tratem-nos como pares.
Certa vez, Bush imaginou que tinha visto a alma de Putin, mas agora ele parece ter aceitado os russos como são, apesar da retórica pesada sobre guerras mundiais. Na conferência com a imprensa na Casa Branca nesta semana, ele parecia resignado. "Reprogramar o DNA russo básico, que pede uma autoridade centralizada -isso é difícil", disse ele.
Tradução: Deborah Weinberg

[Der Spiegel, 20/10/2007]

Paquistão, um país ameaçado pelo extremismo

O descontentamento pelo apoio de Musharraf aos EUA alimenta o ódio e a violência

Georgina Higueras, em Karachi
O general Pervez Musharraf havia se comprometido a garantir a segurança de Benazir Bhutto quando a líder do Partido Popular do Paquistão (PPP) voltasse de seu exílio voluntário. As medidas de segurança tomadas foram extremas. Cerca de 20 mil policiais e 5 mil soldados tinham sido mobilizados na cidade de Karachi, além de blindados e helicópteros, mas a crua realidade é que nem o chefe do exército e presidente do país é capaz de controlar a violência que dilacera o Paquistão.
O medo de que a volta de Bhutto se transformasse em um banho de sangue era palpável ontem nesta cidade de 12 milhões de habitantes, na qual com freqüência as diferenças políticas são resolvidas a tiros. Os colégios, lojas e escritórios tinham fechado as portas. Só havia vida na zona em que se concentraram os 2 milhões de seguidores da líder do PPP. O governo local, temendo as eventuais represálias que possam ocorrer hoje, decretou nesta madrugada mais um dia de portas fechadas para qualquer atividade.
O vazio de poder político que vive o país há meses devido às manipulações do presidente para se perpetuar no poder e seu confronto com a Suprema Corte, que nestes dias analisa a constitucionalidade de sua reeleição por mais cinco anos, deu lugar à violência que incendeia o Paquistão desde o início do ano.
As zonas tribais fronteiriças com o Afeganistão se transformaram em refúgio de membros da Al Qaeda e radicais islâmicos, tanto paquistaneses como afegãos, ligados ao regime taleban que governou o Afeganistão até sua derrubada pela coalizão internacional liderada pelos EUA, em novembro de 2001.
Nessas áreas, o extremismo se alimenta do descontentamento da população dos dois países pela presença de tropas estrangeiras em solo afegão e a submissão do chamado Busharraf, além do dinheiro procedente da recuperação experimentada nos últimos anos pelo cultivo do ópio e o narcotráfico.
Tudo indica que a política de bombardeios ao Afeganistão pelos EUA e Musharraf, seu melhor aliado na luta contra o terror, leva a uma via de violência e ódio que se estende cada dia mais por este país de 165 milhões de habitantes. Bhutto afirmou no avião em que voltou que se empenhará na busca de uma "saída negociada" para o descontentamento, tanto nas áreas tribais como no Beluquistão.
Essa província, que faz fronteira com o Afeganistão e o Irã, também sofreu com crueza nestes anos a repressão de Musharraf e o emprego de sua máquina de guerra. Os chamados "danos colaterais", isto é, os civis mortos, são contados às centenas, e há outras centenas de desaparecidos.
Mas talvez o que levou definitivamente uma boa parte dos paquistaneses a dar as costas a Musharraf foi sua decisão de atacar em julho passado a Mesquita Vermelha em Islamabad. Muitos paquistaneses afirmam não compreender por que o general não negociou uma saída com os radicais. "Ele se diz muçulmano e mata jovens muçulmanos porque pedem que as leis do país sejam regidas pela xariá [lei islâmica]. Não tem o perdão de Deus", declararam membros da oposição islâmica.
Apesar de serem o principal apoio de Musharraf, os EUA também parecem conscientes da necessidade de mudar o ritmo político do país para evitar que a maré de violência se torne irrefreável. Daí o apoio dado a Bhutto para que voltasse e dividisse o poder com o general. Mas talvez tenham demorado demais para compreender que a democracia, mais que o regime militar, pode conter a decomposição do país.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 20/10/2007]

"Muitos militares americanos acham que Bush e Cheney estão fora de controle"

Entrevista com Gabriel Kolko, de Amsterdã, historiador militar e autor dos livros "The Age of War: The United States Confronts the World" (A era da guerra: os Estados Unidos confronta o mundo) e "The Anatomy of War" (A anatomia da guerra)

John Goetz
Spiegel - Sr. Kolko, os editoriais de jornais americanos como "Wall Street Journal", "Weekly Standard" e "National Review" estão promovendo uma ação militar contra o Irã. Como a liderança militar americana vê tal conflito?

Gabriel Kolko - Os militares americanos estão no limite de seus recursos. Eles estão perdendo as duas guerras, no Iraque e no Afeganistão. Tudo está sendo sacrificado por essas guerras: dinheiro, equipamentos na Ásia, força militar americana global, etc. Como podem travar outra? O Pentágono está com dinheiro curto para compras, e muitas pessoas na burocracia militar vivem para isso. A situação será muito pior no evento de uma guerra com o Irã.
Muitos militares americanos descobriram o dilema fundamental da guerramoderna: mais dinheiro e melhores armas não significam que você ganha. Os IEDs (Improvised Explosive Devices, algo como "artefato explosivo improvisado"), que custam tão pouco, estão derrotando um exército que gasta bilhões de dólares por mês. Os IEDs são tão adaptáveis que cada nova estratégia desenvolvida pelos EUA para combatê-los é respondida pelos insurgentes iraquianos. Os israelenses nunca foram capazes de conter os IEDs. Um relatório cita um engenheiro militar israelense que disse que a resposta israelense aos IEDs foi usar tratores blindados para destruir efetivamente os 45 cm superiores de pavimento e terra, onde os explosivos podem estar escondidos. Isso é fantástico, pois o custo de vencer significa destruir estradas, que formam a base de uma economia moderna.
Spiegel - As pessoas no Pentágono estão ficando nervosas com as vozes influentes da Casa Branca que continuam a pressionar pelo conflito com o Irã?

Kolko - Muitos militares americanos acham que Bush e Cheney estão fora de controle. Eles estão se rebelando contra Bush e Cheney. A repórter do "Washington Post" Dana Priest recentemente disse em uma entrevista que acreditava que os militares americanos se revoltariam e se recusariam a enviar missões aéreas contra o Irã se a Casa Branca emitisse tais ordens.
Diz-se que o comandante do Centcom, o marechal William Fallon, frustrou o desejo de Cheney de enviar um terceiro porta-aviões ao Golfo Pérsico. Segundo um jornal, ele "prometeu em uma conversa particular que não haveria guerra contra o Irã enquanto ele fosse comandante do Centcom" .
O general Bruce Wright, responsável pelas forças americanas no Japão, disse à Associated Press na semana passada que o Iraque tinha enfraquecido as forças americanas diante de qualquer conflito potencial com a China. Ele teria dito: "Estamos em dificuldades? Depende do cenário. Mas é preciso se preocupar com o número pequeno de nossas forças e a idade de nossas forças."
Spiegel - O senhor acha que o conflito com o Irã é provável?

Kolko - Todos os jornais econômicos significativos (Financial Times, Wall Street Journal etc.) reconhecem que as economias americana e européia estão em crise agora, e pode ser longa. O dólar está caindo; as nações do Golfo e outras podem abandoná-lo (como moeda de investimento). Uma guerra com o Irã produziria caos econômico, porque o petróleo seria escasso. Há nações que os EUA querem isolar, como Rússia e Venezuela, que podem desenvolver grande influência por sua habilidade de vender petróleo durante tal crise. O equilíbrio do poder econômico do mundo está envolvido, e isso é uma grande questão.
Spiegel - Mas as nações do golfo não estão interessadas em ver o Irã enfraquecido pelo conflito com os EUA?

Kolko - As nações do golfo não gostam do Irã xiita, mas elas exportam petróleo, que as tornam ricas. São dependentes da paz, não da guerra.
Spiegel - Como o Irã reagiria à provocação dos EUA, digamos, na fronteira? O exército iraniano poderia, de alguma forma, lutar contra os EUA?

Kolko - O Irã combateu o Iraque por cerca de uma década e perdeu centenas de milhares de homens. Talvez eles se entreguem, mas não é provável. Há uma série de pequenas ilhas no golfo que tiveram anos para serem fortificadas.
Seria possível derrubar 90% de suas armas? Mesmo que os EUA pudessem alcançar isso, o resto seria suficiente para afundar muitos navios e petroleiros. A quantidade de petróleo exportado pelo golfo portanto seria reduzida, talvez cessasse completamente. Isso somente fortaleceria os rivais americanos, como Rússia e Venezuela.
Spiegel - Mas e as bombas destruidoras de abrigos? Não seria uma tecnologia que o Irã não poderia superar?

Kolko - Destruidores de abrigos só conseguem derrubar alguns abrigos, mas não todos. Se as bombas destruidoras de abrigos forem nucleares, são muito úteis, mas também radioativas. Além de matar iranianos, podem matar também amigos e soldados americanos.
Spiegel - E o chamado plano Cheney, de deixar Israel atacar o Irã? Qual papel Israel teria em um conflito com o Irã? Israel também não está interessado em ver os EUA enfraquecendo sua maior ameaça na região?

Kolko - Israel pode ser um fator. Eles precisam cruzar o espaço aéreo sírio e jordaniano e os iranianos estarão preparados, se não forem derrubados na Síria. Suas contramedidas podem ser eficazes, mas talvez não... a guerra com o Irã levará a uma chuva de foguetes, e Israel seria deixado com uma incapacidade de lidar com as prioridades locais. O Irã provavelmente terá bombas nucleares, cedo ou tarde. Assim como outras nações. Israel já tem centenas. Estrategistas israelenses acreditam que haverá medidas de contenção nuclear. Por que arriscar a guerra?
Israel não gosta do Irã, nem da perspectiva de armas nucleares iranianas, mas acredita que pode lidar com ele em um relacionamento de contenção nuclear. Israel precisa de seu exército, que não é grande o suficiente para os potenciais problemas locais: os palestinos e os vizinhos árabes, temidos e odiados. Isso significa que Israel pode ser beligerante, mas não é capaz de fazer o papel dos EUA, exceto, é claro, com armas nucleares.
Então eu vejo os israelenses como opositores de uma guerra contra o Irã que os envolvesse. Eles certamente observaram como durante a guerra com o Líbano os palestinos em Gaza usaram a oportunidade para aumentar a pressão sobre Israel do sul. Os israelenses se opuseram à guerra no Iraque porque levaria ao domínio iraniano da região, o que aconteceu.
Então, se for verdadeiro que Cheney está tentando usar Israel, isso mostra que ele está confuso e bastante louco -mas também extraordinariamente isolado.
Spiegel - Mas e o Partido Democrata? Não é do interesse do Partido Democrata fazer tudo que pode para pôr fim à guerra?

Kolko - Todos os três principais candidatos democratas -Clinton, Obama e Edwards- recusaram-se, em um debate recente em New Hampshire, a prometer a retirada dos militares americanos do Iraque até o início de 2013. O público americano é um fator pequeno, como as eleições demonstraram repetidamente, mas também pode ter algum papel. Como provou a última eleição, qualquer um que pensa que os democratas vão parar as guerras está se enganando. A guerra contra o Irã, entretanto, requereria novas autorizações. Então, o Congresso poderia ser muito importante.
Tradução: Deborah Weinberg


[Der Spiegel, 16/10/2007]

Paulo Autran (1922 - 2007)


E ficamos todos mais pobres...

Um trecho da peça "Liberdade, Liberdade", de Flávio Rangel e Millôr Fernandes.

"(...)
Nara Leão - A tristeza que a gente tem,
..................Qualquer dia vai se acabar,
..................Todos vão sorrir,
..................Voltou a esperança
..................É o povo que dança
..................Contente da vida,
..................Feliz a cantar.

Coro - Porque são tantas coisas azuis
..........Há tão grandes promessas de luz,
..........Tanto amor para amar que a gente nem sabe...

Paulo Autran - Canto apenas quando dança,
.......................Nos olhos dos que me ouvem, esperança.
.......................(...)"

["Liberdade, Liberdade" era a peça preferida de Paulo Autran.]

[
Clique aqui] para ouvir o autor recitar um trecho de "Notícias Amorosas", de Carlos Drummond de Andrade.

A ovelha desgarrada

A condenação de um padre por crimes durante a ditadura argentina reabre o debate sobre o papel da Igreja
Jorge Marirrodriga, em Buenos Aires
Ele citou Jesus Cristo e os apóstolos, João Paulo 2º e o cardeal argentino Jorge Bergoglio. Falou de perdão, paz e reconciliação, mas durante sua alegação final, na segunda-feira à noite, momentos antes que um juiz de La Plata o condenasse à prisão perpétua por genocídio, o padre Christian Von Wernich em nenhum momento pronunciou duas palavras: "Sou inocente".
A condenação do ex-capelão da temida polícia de Buenos Aires por envolvimento em crimes cometidos durante a ditadura militar (1976-1983) reabriu na Argentina o debate sobre o papel da Igreja em uma época cujas feridas continuam abertas, entre uma cascata de processos judiciais movidos graças à anulação em junho de 2005 das leis de Obediência Devida e Ponto Final. O processo de Von Wernich é o terceiro relevante desde então -os anteriores foram contra Jorge Tigre Acosta e Miguel Etchecolatz- e os três julgamentos tiveram o mesmo resultado: prisão perpétua.
Mas tem duas particularidades importantes. A primeira é que o acusado, considerado culpado de sete assassinatos, tortura a 34 pessoas e seqüestro ilegal em 42 casos, também foi declarado culpado de genocídio. Quer dizer, a sentença reconhece a existência de um plano estabelecido e sistemático para a eliminação de pessoas durante a ditadura. "Houve uma condenação exemplar para Von Wernich, que fez parte da máquina infernal da ditadura", salientou ontem o presidente argentino, Néstor Kirchner, acrescentando que a condenação do sacerdote "é um bom exemplo para o mundo".
A segunda particularidade é que envolve completamente um membro da hierarquia católica. Segundo relataram as testemunhas citadas durante os três meses do processo, Von Wernich explorou sua condição de padre católico para conseguir uma aproximação enganosa das vítimas, se permitiu brincar com o sofrimento das pessoas que acabavam de ser torturadas e inclusive em uma ocasião sua batina foi salpicada com o sangue da vítima de uma execução.
O presidente da Conferência Episcopal argentina, cardeal Jorge Bergoglio, emitiu um comunicado em que salientou que a Igreja expressa sua comoção pelos "delitos gravíssimos" de que participou Von Wernich, ao mesmo tempo destacando que se "algum membro da Igreja tivesse aprovado com sua recomendação ou cumplicidade alguns desses fatos de repressão teria atuado sob sua responsabilidade pessoal".
Não é essa a opinião compartilhada inclusive por outros membros do clero argentino, como o padre Rubén Capitano, que durante o depoimento prestado no julgamento destacou que "a Igreja não matou, mas não salvou" e acrescentou a modo de mea culpa: "Devemos ficar do lado dos crucificados, e não tão perto dos crucificadores". Ontem se lembrou em Buenos Aires o caso do capelão militar nos anos do golpe, Victorio Bonamin, que justificou a ditadura afirmando que era "a vontade de Cristo".
Mas a repressão também alcançou a Igreja e algumas vezes até o alto clero, como o bispo de La Rioja, Enrique Angelelli, que foi assassinado por militares em 4 de agosto de 1976 sem que o arcebispado argentino emitisse sequer uma nota de protesto. Outros casos relevantes foram o assassinato de cinco religiosos -um deles acabara de denunciar em uma homilia o leilão de bens de desaparecidos- e o seqüestro, tortura e assassinato de duas freiras francesas na Escola de Mecânica da Armada (Esma). Desta operação participou o "Anjo da Morte", Alfredo Astiz.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 11/10/2007]

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Padre que auxiliava os torturadores argentinos é alvo de processo

Christine Legrand
Cerca de trinta cidadãos resolveram enfrentar o frio do inverno austral, para se reunir num ato de protesto em frente à porta principal do tribunal de La Plata, a 50 quilômetros de Buenos Aires. "Assassino, assassino", repetem aos brados. Eles são parentes de vítimas da ditadura militar, que engendrou cerca de treze mil "desaparecidos" nos seus cárceres secretos entre 1976 e 1983, segundo dados divulgados pelo secretariado argentino para os direitos humanos. Número que a associação das Mães da Praça de Maio, por sua vez, estima em trinta mil.
Pela primeira vez desde o retorno da democracia na Argentina, um padre é julgado por violações dos direitos humanos. O padre Christian Von Wernich, com idade de 69 anos, é acusado de cumplicidade em 42 seqüestros, 31 casos de tortura e 7 assassinatos durante os "anos de chumbo" (1976-1983).
Alto e delgado, este que era chamado de "El Cuervo" (O Corvo) era o padre que prestava serviços para a polícia da província de Buenos Aires. Uma polícia que disseminava o terror, durante os anos 1970, sob as ordens do general Ramon Camps, de quem Christian Von Wernich era o confessor.
Desde que ele foi preso, em 2003, o antigo capelão sempre negou qualquer culpa. Desde o início do processo, em 5 de julho, ele se recusa a falar e não assiste às audiências, as quais foram retomadas no início de agosto depois de uma interrupção devido às férias do inverno. "Ele estava presente no primeiro dia para ouvir o ato de acusação e ele deverá comparecer no dia do veredicto, previsto para o final de setembro", explica o secretário do tribunal, Inti Perez. Este explica que o acusado, ainda assim, se encontra no antigo edifício ao lado do local do processo, no caso de uma testemunha querer visitá-lo. Ele foi convocado uma vez, e compareceu, sereno, atrás de um vidro blindado, trajando um terno preto e protegido por um jaleco à prova de balas.
Na grande sala do tribunal estão sentados, impassíveis, os dois advogados da defesa. Neste dia, reina um ambiente dos mais tensos. O testemunho é de Ruben Schell, um militante peronista de 60 anos que aparenta ter envelhecido prematuramente. A sua fala é interrompida em várias oportunidades por crises de choro e soluços. "Os piores sofrimentos que eu enfrentei não foram causados pela tortura com eletricidade, e sim pela tortura moral infligida por Von Wernich", murmura Ruben Schell, com a voz quebrada. "Venho sofrendo até hoje sempre quando penso que um padre pode ter perpetrado tais atos". Ele reconheceu o padre Von Wernich como sendo um daqueles que o interrogaram e torturaram durante os 102 dias em que ele permaneceu encarcerado, em 1978, numa delegacia de Quilmes.
O capelão se valia do seu sacerdócio para atrair a confiança dos presos e extrair deles informações, prometendo-lhes que assim fazendo eles evitariam a tortura. "Vocês imaginam tudo aquilo que um padre pode representar nesses momentos de terror e de sofrimento? É como se Deus em pessoa viesse para estender-lhe a mão quando, na verdade, é o diabo que está na sua frente", testemunhou Julio Mirales, que fora seqüestrado em junho de 1977 junto com o seu irmão, sua mãe e seu pai, todos torturados e então libertados quatorze meses mais tarde pelos militares, os quais alegaram ter cometido "um erro".
Mais de uma centena de testemunhas foram citadas em La Plata. Os depoimentos são difíceis de suportar, pois eles remetem às torturas, à recordação dos companheiros desaparecidos, daqueles que se suicidaram. Também está sendo abordada a questão das crianças separadas da sua mãe no nascimento, na prisão, e que em muitos casos foram adotadas ilegalmente pelos torturadores. Certas testemunhas não agüentam e desabam durante o seu depoimento, sofrendo uma crise nervosa. Elas já chegaram a testemunhar, entre outros em 1985, por ocasião do processo histórico dos chefes da ditadura militar. Esses homens e essas mulheres estão fartos de contar os mesmos horrores. "Isso equivale, toda vez, a revivê-los", afirma o sindicalista Alberto Derman.
O cônsul argentino em Nova York, Hector Timerman, fez questão de comparecer ao processo para acusar o padre Von Wernich de ter pessoalmente torturado o seu pai, o jornalista Jacobo Timerman, fundador e diretor do prestigioso diário "La Opinión". Hoje falecido, este famoso donode um grupo da imprensa havia sido preso em 1977, e depois expulso do seu país, quando a sua nacionalidade lhe foi retirada. Adolfo Perez Ezquivel, o célebre defensor dos direitos humanos e Prêmio Nobel da paz, deverá comparecer em 10 de setembro.
Num café nas proximidades do tribunal, Carlos Zaidnan, um militante de esquerda que foi raptado em 1977, está impaciente por testemunhar, em 23 de agosto. Ele recorda-se perfeitamente da voz do padre Von Wernich, numa delegacia de La Plata. "Ele falava com uma voz suave e jovial, na tentativa de convencer um casal a falar, de modo a evitarem que os seus dois filhos, que haviam sido presos junto com eles, fossem torturados", assegura. Em sua opinião, processos como este "não permitem julgar todos os cúmplices do terrorismo de Estado, a Igreja, é claro, mas também os homens de negócios, os políticos e os ideólogos que orquestraram o golpe de Estado de 1976 para impor um modelo econômico e social que permanece em vigor até hoje".
Desde a sua ascensão ao poder, em maio de 2003, o presidente peronista Néstor Kirchner fez da defesa dos direitos humanos uma das prioridades do seu governo. Em 2005, a corte suprema declarou "inconstitucionais" as leis de anistia que foram adotadas em 1986 e 1987, sob a pressão dos militares, abrindo com isso caminho para a realização de centenas de processos.
Uma ausência, contudo, pesa sobre o tribunal de La Plata: a de Julio Lopez, cujo desaparecimento, em 18 de setembro de 2006, nunca foi esclarecido. O testemunho deste pedreiro de 77 anos, que foi raptado e torturado durante a ditadura, havia sido decisivo na condenação de um antigo chefe da polícia, Miguel Etchecolatz, neste mesmo tribunal. Os defensores dos direitos humanos temem que este seqüestro tenha sido organizado por antigos militares, com o objetivo de criar um clima de terror e atemorizar testemunhas de outros processos.
Muitas são as testemunhas que recusam a proteção oferecida pelo governo. "Com a impunidade da qual eles beneficiaram, muitos policiais torturadores permaneceram em atividade até hoje. Haveria boas chances para que o policial que foi designado para me proteger seja o mesmo que me torturou trinta anos atrás", teme Carlos Zaidnan. O governador peronista da província de Buenos Aires, Felipe Sola, admitiu que Julio Lopez é "o primeiro desaparecido da democracia".
Tradução: Jean-Yves de Neufville


[Le Monde - publicado em 14/08/2007]

Especial: CHE (1928-1967)

Che Guevara é o único emblema da esquerda que resistiu intocado ao fim da utopia socialista, ao colapso da Cuba que ele criou com Fidel Castro, ao declínio do comunismo soviético e à conversão da China maoísta ao livre mercado.

A vida de Che é, como os livros clássicos e as histórias infantis, uma fábula que já conhecemos mas que não nos cansamos de reler. Talvez seu fascínio esteja justamente aí, no fato de sabermos que esse guerrilheiro inverossímil transformou revolta juvenil e romantismo livresco em realidade histórica, desafiando o maior império militar do mundo e alimentando a utopia de libertários que compensam cada derrota com o sonho tornado possível do Che.
É para isto, aliás, que servem os sonhos, o imaginário, a literatura: corrigir a realidade no que ela tem de limitado e precário, abalar suas estruturas simbólicas e semear novas possibilidades empíricas a partir da aparente irrealidade da ficção e do mito. E se isso equivale a dizer que os mitos são mais subversivos e revolucionários do que os homens, ninguém melhor do que Che Guevara encarnou essas duas faces: ele foi, ao mesmo tempo, o guerrilheiro que, uma vez no poder, teve que aprender a amarga lição da real politik, e a efígie estampada em pôsteres e camisetas como um gesto eternizado de rebeldia e inconformismo.
Seus biógrafos procuram justamente flagrar essa ambivalência, descrever as ilusões, manias e fraquezas do argentino Ernesto Guevara de La Serna tendo como pano de fundo o grande afresco que retrata, em quadros sucessivos, a conversão, o sacrifício e a canonização do Che como um apóstolo da revolução perpétua. Jorge Castañeda, por exemplo, tira o máximo efeito dramático da imagem do Che morto na Bolívia (leia trecho abaixo), seu corpo exangue como o de um Cristo após a deposição da cruz.
Na anatomia do mito, enfim, é quase impossível separar os acontecimentos de uma vida ordinária dos passos que conduzem ao cadafalso e à beatificação. Quem escreve sobre o jovem Ernesto Guevara guarda na mente o destino final do Che, fazendo de cada pensamento e de cada pequeno ato de excentricidade adolescente um anúncio premonitório de seu martirológio.
Mas o fato é que como mostra Anderson o próprio Ernesto Guevara tinha de si mesmo a imagem de um predestinado. Filho de uma decadente família da alta burguesia de Buenos Aires, ele nasceu na cidade de Rosário em 14 de maio de 1928 (seu registro de nascimento assinala, porém, o dia 14 de junho pequena manipulação de datas feita para encobrir o fato de que sua mãe se casara no terceiro mês de gravidez).
Introspectivo e insubordinado, amante do xadrez e do rugby, mal vestido e sedutor, leitor de Júlio Verne e Alexandre Dumas na infância, de Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Zola, Faulkner e Steinbeck na adolescência, Ernesto passou a juventude às voltas com crises de asma. A doença acabaria determinando sua decisão de ser médico e suas pesquisas com alergistas argentinos para descobrir uma vacina contra a asma.
Ainda como universitário, o inquieto Guevara faz viagens rocambolescas em cima de uma bicicleta com motor pelo interior da Argentina e de regiões paupérrimas de Chile, Peru, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Passa por médico formado em alguns leprosários que encontra pelo caminho e leva na bagagem várias páginas de um diário que denota seu progressivo interesse pela literatura social e por autores como Freud, Bertrand Russell, Huxley, Kafka, Camus, Sartre, Lorca e, sobretudo, o poeta Pablo Neruda.
Nas correspondências com Celia, sua mãe, Ernesto já esboça dois traços de personalidade que antecipam sua austeridade de guerrilheiro: a obstinação em enfrentar e até mesmo provocar a adversidade (para tornar maior o mérito da superação) e a crença na própria invulnerabilidade.
De volta a Buenos Aires para concluir seu curso na Faculdade de Medicina, deixa novamente a Argentina logo depois de fazer os últimos exames. Dessa vez, seu itinerário aponta para a América Central e é nessa viagem que começa a ser gestado o guerrilheiro Ernesto Che Guevara.
Numa região em que paira onipresente a sombra da United Fruit Company, empresa que representa os interesses do imperialismo norteamericano, Ernesto Guevara testemunha na Nicarágua, em El Salvador, em Honduras e no Panamá a sinistra associação entre oligarquias locais e ditaduras submissas aos EUA.
As únicas exceções são os governos democráticos de Costa Rica e Guatemala, e é aí que Guevara presencia o debate entre esquerdistas reformistas e radicais. Sua opção será determinada em 1954, quando o presidente guatemalteco Jacobo Arbenz é deposto com ostensivo apoio do governo Eisenhower. A essa
altura, Guevara está envolvido até o pescoço com militantes políticos e, em 1955, é obrigado a fugir para o México com sua primeira mulher, Hilda Gadea, peruana exilada que conhecera na Guatemala.
No México, os grupos esquerdistas esperavam ansiosamente a chegada de um jovem que havia sido preso após liderar o assalto frustrado a um quartel na cidade de Santiago, em Cuba, e cuja libertação estava sendo
negociada com o ditador Fulgencio Batista: Fidel Castro.
Com Fidel no México, iniciam-se os treinamentos do grupo guerrilheiro que irá mudar a história da América da guerra fria. E o Che, por sua vez, demonstra-se um comandante militar implacável, o companheiro ideal de Fidel na alta esfera do comando revolucionário.
O relato da campanha apenas reforça a imagem de invulnerabilidade que Ernesto Guevara tinha de si mesmo. O desembarque em Cuba é um fracasso: dos 82 homens que compõem a força guerrilheira, apenas 15 se reagrupam (os outros morrem, são presos ou desertam) e é um verdadeiro milagre que esse pequeno contingente tenha conseguido sobreviver e organizar o movimento que tomou Havana no dia 1º de janeiro de 1959.
Nesse sentido, não resta dúvida de que, se o comando estratégico coube a Fidel, o sucesso no campo de batalha se deveu ao Che. Como exemplo, basta dizer que o grande confronto que selou a sorte da Revolução Cubana foi o assalto à cidade de Santa Clara, comandado por ele.
Líder implacável e às vezes impiedoso, que executava friamente inimigos e desertores, Che Guevara correu o risco de se tornar, a partir da fuga de Fulgencio Batista e do estabelecimento do governo de Fidel Castro, um burocrata do terror, uma versão latina de Stalin e os fuzilamentos dos rivais políticos, nos primeiros dias da vitória, sugerem isso de maneira constrangedora.
A força do mito, porém, parece ter sido maior do que o compromisso histórico (sempre ambíguo, como demonstra a trajetória do próprio Fidel). Depois do fracasso dos planos econômicos que idealizou e da discordância com Fidel em relação à União Soviética (que, para Che, fizera da ilha um joguete na guerra fria contra os EUA, especialmente no episódio da instalação dos mísseis nucleares em Cuba), ele renuncia à cidadania cubana, deixa Aleida March (sua segunda mulher, que conhecera durante os combates) e se lança em malfadadas aventuras guerrilheiras na Argentina, no Congo Belga e na Bolívia onde é finalmente capturado e executado.
Esta trajetória ímpar, heróica, cuja morte ilumina o passado com uma aura de idealismo e justiça, acabou transformando Che no ícone de uma geração que cantava com Jim Morrison we want the world, and we want it now.
Entretanto, é difícil avaliar onde acaba a história e onde começa a hagiografia. Numa perspectiva estritamente política, o homem que um dia afirmou que as execuções por pelotões de fuzilamento são não só uma necessidade para o povo de Cuba, como também uma imposição desse povo lembra um Saint-Just marxista-leninista. O livro de Jorge Castañeda parece sugerir, aliás, que Che (que desejava a revolução permanente) está para Trotski como Fidel (o aliado da URSS) está para Stalin o que não deixaria dúvida quanto a seu lugar cativo no panteão comunista e quanto à derrota final de seu legado.
Entretanto, é possível observar a partir da leitura de Lee Anderson que sua sensibilidade social nasceu muito antes do contato com a obra de Marx, já nos tempos em que era um easy rider que cortava as estradas da América Latina. Foi esse ímpeto juvenil e libertário que o impediu de se embrutecer nas vestes do dirigente de partido e é este Che que os estudantes de Maio de 68 idolatravam.
Pouco antes de partir de Cuba para suas últimas batalhas, ele escrevia aos pais: Uma vez mais sinto sob os calcanhares as costelas de Rocinante e finalizava dizendo: Lembrem-se de vez em quando deste pequeno
condottiere do século XX
.
A referência ao cavalo do Dom Quixote e aos aventureiros florentinos do século XVI não é gratuita. Como os heróis do Renascimento, ele também estava em busca do homem novo, que sepultasse de vez uma ordem social dilacerante. Ainda que, pelo caminho, tivesse que deixar um rastro de sangue.

Para saber mais:
Che Guevara, uma biografia, Jon Lee Anderson
Trad. de M.H.C. Cortês - Editora Objetiva, 924 págs.
Che Guevara: a vida em vermelho, Jorge Castañeda
Trad. de Bernardo Joffily - Companhia das Letras, 536 págs.


O Cristo de Vallegrande
Limparam seu rosto, já sereno e claro, e descobriram-lhe o peito dizimado por quarenta anos de asma e um de fome no árido Sudeste boliviano. Depois o estenderam no leito do hospital de Nuestra Señora de Malta, alçando sua cabeça para que todos pudessem contemplar a presa caída. (...) Quando os jornalistas e populares curiosos começaram a desfilar, a metamorfose já era completa: o homem abatido, iracundo e esfarrapado até as vésperas da morte se convertera no Cristo de Vallegrande, refletindo nos límpidos olhos abertos a tranqüilidade do sacrifício consentido. O exército boliviano cometeu o único erro da campanha depois de consumada a captura de seu máximo troféu de guerra. Transformou o revolucionário resignado e encurralado, o indigente da quebrada del Yuro, vencido por todos os preceitos da lei, envolto em trapos, com o rosto sombreado pela fúria e a derrota, na imagem de Cristo da vida que sucede à morte. Seus verdugos deram feição, corpo e alma ao mito que percorreria o mundo.
Extraído de Che Guevara: a vida em vermelho, de Jorge Castañeda