Deus está conosco até o pescoço

Recepção ao livro de Richard Dawkins expõe o ateísmo e o criacionismo como a nova divisão da cultura moderna
Há debates que são proveitosos; outros, perda de tempo. É perda de tempo discutir os fundamentos da fé. Filosoficamente, a fé é uma premissa indemonstrável. Por outro lado, uma grande conquista da república moderna (Revolução Francesa) é o Estado laico: não se combate as igrejas, mas a religião é tomada como questão de foro íntimo; diz respeito à vida privada, não à esfera pública. É o indiferentismo político em relação à fé.
Os que crêem em “Deus é fiel” pensam evidentemente em si, não nos ateus. Estes, por sua vez, podem achar que Deus é um “vertebrado gasoso”, como dizia Ernst Haeckel há mais de cem anos: a fé não precisa de provas, e a ciência não precisa da crença popular nos seus resultados. A lei da gravidade existe, queiramos ou não, e ateus e religiosos caem igualmente. Os ateus não são atraídos para o centro da terra enquanto os crentes levitam.
Mas, quando a religião assume feição de coisa pública, o seu debate muda de caráter. Trata-se de uma ameaça à idéia política republicana. Por isso não é possível imaginar que a obra de Richard Dawkins “Deus, um Delírio”, recém-lançada em português (Companhia das Letras), possa ser entendida fora dos marcos da política.
Ora, por que um livro considerado panfletário pelos seus inimigos é tão discutido; taxado de “ultradarwinismo chique”, ou de manifestação de “ateísmo elegante”, mesmo por quem não aprofunde a discussão das suas idéias, naturalmente polêmicas?
Por certo porque o pensamento grosseiro é mais facilmente combatido, e o conjunto da obra de Dawkins, um cientista respeitado e considerado intelectual brilhante, não pode ser colocado nessa categoria. Além disso, o seu papel de divulgador do pensamento científico é uma contribuição bem singular sua, não se podendo dizer o mesmo dos seus adversários.
Mas “Deus, um Delírio” é um livro de aliciamento. Sua virulência contra a idéia de Deus não se deve apenas às convicções do autor -coisa que provavelmente ele guardaria para si, se não fosse a importância política que atribui à discussão. Ele entende que se vive, hoje, um “estado de emergência científico”, tal a penetração do fundamentalismo cristão na política norte-americana, coisa que atribui, entre outras causas, à tolerância e subestimação do papel moderno do criacionismo. Por isso, profeticamente, nos diz: “Uma guerra se aproxima entre o sobrenaturalismo e a racionalidade”. É um livro que visa recuperar o terreno perdido para a fé.
Um deus que batalha no campo da história sequer é o deus do papa Bento 16, que gostaria de ver a fé sustentada por si própria, sem precisar da muleta que lhe forneceu a “teologia da libertação”. Talvez por isso mesmo nem a tentativa desesperada do padre e paleontólogo Pierre Teillard de Chardin (1881-1955) de integrar, de modo evolucionista, uma suposta essência humana na “cristosfera” parece hoje digna de promoção por parte da Igreja Católica. Essa deixou o trabalho menor para os protestantes criacionistas.
A cruzada contra a idéia de Deus que Dawkins lidera é, antes de tudo, contra o criacionismo norte-americano que “fundamentalizou” o Estado, fomentando o obscurantismo religioso no plano interno e justificando a guerra santa contra o Islã no plano externo. A busca do apoio eleitoral dos criacionistas tornou-se crítico na política interna daquele país. Daí o lobby contra as pesquisas relacionadas com a célula-tronco, prenunciando um “ataque global à racionalidade e aos valores iluministas”, nas palavras de Dawkins.
Dawkins gostaria que os ateus “saíssem do armário” para combater o bom combate à luz do dia. Para tanto, é preciso reconhecer que a palavra “ateu” é terrível e assustadora na sociedade norte-americana: “O status dos ateus é hoje equivalente ao dos homossexuais 50 anos atrás”.
Uma pesquisa Gallup de 1999 mostrou que 94% votariam em católicos; 92% em judeus ou negros; 79% em homossexuais e apenas 49% em ateus. Portanto, o que Dawkins quer fazer é encorajar um debate público sobre algo que tem sido nefasto à democracia: o aviltamento do ensino e da ciência em nome da fé, graças ao avanço criacionista na esfera pública.
A bibliografia criacionista é tão vasta quanto a darwinista, mas o seu programa moderno é impor o estudo de Deus como um objetivo das ciências e, para tanto, pretende ter o apoio do Estado através do acesso a fundos públicos de pesquisa. Desse modo, sibilinamente, a religião escorrega da esfera privada para o domínio público, querendo disputar com a ciência a primazia do conhecimento necessário para a evolução do conhecimento humano.
Darwin nunca foi ateu no sentido militante que Richard Dawkins indica. Sua própria formação se deveu, em boa medida, à teologia de William Paley. Partiu da idéia de imutabilidade das espécies para mostrar que as formas vivas se transformam sem qualquer finalidade, validando a proposição kantiana de que a natureza é um mecanismo que se comporta “em relação a si mesma reciprocamente como causa e como efeito”. O funcionamento dessa máquina natural dispensa a interferência de um “supremo relojoeiro”, na imagem teológica de Paley.
Porém, como o próprio Darwin observou, a seleção natural é uma hipótese que precisa de um número muito grande de provas para ser considerada uma “lei” e, portanto, precisa explicar até mesmo a evolução de órgãos complexos como o olho, senão não teremos como resolver o “problema de Paley”, isto é, refutar a tese do design segundo a formulação daquele teólogo do século 18.
Ainda se discute como o olho se desenvolveu, e este é um caso-limite da biologia, mas o “problema de Paley” só pode persistir onde a ciência não chegou. A ciência caminha no sentido oposto ao da fé, embora os criacionistas lutem desesperadamente para associá-las.
A evolução contemplada pela genética supõe um “pool” de genes sobre o qual se processam mutações e recombinações, além da decifração do próprio código genético. Trata-se de uma “teoria poderosa”, suficientemente testada, ao passo que a teoria da seleção natural, a mais importante contribuição de Darwin, é difícil de ser testada, ao menos no sentido experimental; por isso, a seleção natural continua a operar como um verdadeiro programa de pesquisas onde a fronteira é aquela que divide o que pode ser explicado pela seleção natural e aquilo que pode ser explicado sem a seleção natural.
Mas, para reforçar argumentos, é curioso como os críticos de Dawkins não deixam de atirar farpas contra o marxismo, como se esse fosse uma degenerescência do evolucionismo. Acusam-no de confundir representações sociais com o “problema da ordem cósmica”. Não há um texto sequer de Marx sobre a ordem cósmica que permita comprovar essa leitura. Portanto, a observação só serve como um toque de reunir para o conservadorismo, incluindo o antimarxismo.
É verdade que o marxismo manteve uma relação ambivalente com o darwinismo, cercada pela incompreensão do próprio Marx, pela imputação duvidosa de decorrências das descobertas de Darwin à sociedade e assim por diante. Mas há também textos de Marx e Engels que vão no sentido inverso, e é inegável que um dos mais brilhantes trabalhos sobre o processo de hominização -tema de Darwin, especialmente em “A Origem do Homem” (1871)- foi escrito por Engels. Do mesmo modo, são os marxistas que têm promovido mais recentemente, e com perspicácia, a revisão da antropologia de Darwin, que parte não da idéia de uma seleção natural que atua como força absoluta, mas da percepção do papel da solidariedade na evolução da espécie humana. Rigorosamente, aponta-se a “seleção de instintos não-selecionistas” como móvel da humanização na perspectiva inaugurada por Darwin

1. Outros desenvolvimentos recentes, não-marxistas, também acrescentam argumentos sobre a hereditariedade por processos não restritos à genética
2. Pelo menos quatro diferentes processos de herança podem ser identificados, sendo os genes um deles. Nesse sentido, abrem uma discussão mais rica sobre as idéias de Dawkins em seu livro de divulgação, “O Gene Egoista”, onde se vê claramente um geneticismo-radical.
Reduzir o darwinismo ao selecionismo é uma simplificação grosseira da contribuição do naturalista inglês para a compreensão da história da vida, nela incluindo a animalidade do homem. E reduzir o marxismo a um ateísmo oportunista é escancarar a ignorância da sua história, preferindo vê-lo não como um pensamento que se transforma mas estabilizado nos seus piores momentos.
O incômodo da emergência do ateísmo parece ser a plataforma política que Dawkins propõe para ele: um toque de reunir para cientistas e livre-pensadores materialistas que reconhecem no avanço do criacionismo uma ameaça à liberdade de ensino e investigação sob o regime político que caracteriza a República moderna. Se quiserem ser honestos, não há como os críticos de Dawkins taparem o sol com a peneira.

Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutor em sociologia no IFCH-Unicamp



[Trópico, 30/09/2007]

50 anos depois do Sputnik, espaço ainda vê Guerra Fria

Perspectiva de uso militar faz com que países evitem compartilhar tecnologia na área
Lançamento do primeiro satélite artificial, que faz 50 anos nesta quinta-feira, iniciou corrida espacial e mudou o rumo do século 20

A esquerda, o Sputnik-1, primeiro satélite artificial, é lançado pelos soviéticos desde Baikonur, no Casaquistão. O sucesso da URSS causa surpresa e pânico na opinião pública dos EUA. Com o temor de que os russos pudessem se tornar capazes de lançar bombas desde o espaço, os americanos se mobiblizam para dominar a mesma tecnologia. Tem início a corrida espacial, estimulada pela Guerra Fria.

RAFAEL GARCIA
Há muitos motivos para crer que o espaço mudou pouco no último meio século, apesar de as coisas estarem diferentes aqui na Terra.
Em 4 de outubro de 1957, quando os soviéticos colocaram em órbita o primeiro satélite artificial -o Sputnik-1-, o mundo vivia sob tensão constante. Com a polarização entre EUA e União Soviética, o temor era que o planeta acabasse de um dia para o outro, destruído por armas nucleares. E a corrida espacial foi alimentada pelo medo que essas nações tinham uma da outra.
Hoje, a Guerra Fria não existe mais, mas o clima no espaço ainda está longe de refletir o ambiente de interação globalizada que mudou a economia, a política e a ciência em terra firme. A contrário do que acontece em outras áreas tecnológicas, o país que quiser lançar satélites por conta própria hoje tem de aprender sozinho."
Os americanos não querem que a tecnologia de lançadores de satélites -que pode ser utilizada para lançar bombas- caia na mão de determinados países, mesmo que sejam amigos", diz Fernando Ramos, assessor de cooperação internacional do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Mesmo quando existe um projeto envolvendo vários países, como a Estação Espacial Internacional, a colaboração se dá mais pela divisão do trabalho do que pela transferência da tecnologia entre os países."
Reeditadas em 2006 pelo governo Bush, as diretrizes do programa espacial dos EUA deixam clara a visão do país. O documento "rejeita qualquer limitação do direito fundamental dos Estados Unidos de operar e adquirir informação no espaço". Americanos "negarão a adversários, se preciso, o uso de capacidades no espaço hostis a interesses americanos".
Sobrou até para o Brasil, que nem está entre os países do chamado "eixo do mal", alvos de sanções dos EUA. O programa sino-brasileiro de satélites de observação da Terra, o CBERS, tem dificuldade de comprar material que passa pelos EUA. "Isso tem ocasionado problemas para o Brasil, sim, desde o início, mas sobretudo depois do ensaio que os chineses fizeram de destruir um satélite em órbita [em janeiro]", diz Ramos, do Inpe, entidade que participa do CBERS.
Apesar de a cooperação ter levado ao sucesso na área de satélites de imagem, os chineses tampouco mostram disposição em ensinar aos brasileiros como fazer foguetes. O Brasil ainda tenta, com orçamento limitado, levar a cabo o programa VLS (Veículo Lançador de Satélites), na infâmia desde a explosão que matou 21 pessoas no Centro de Lançamento de Alcântara (MA), em 2003.
Hoje, apenas EUA, União Européia, Rússia, China, Índia e Japão são capazes de colocar satélites em órbita. Cada um aprendeu a fazê-lo sozinho.
O fim da Guerra Fria, afinal, também não selou uma paz espacial definitiva. "Que existe a possibilidade de uma militarização do espaço não há a menor duvida" afirma o físico e historiador Shozo Motoyama, da USP. Segundo ele, porém, a revolução das comunicações e a globalização da economia tornam o mundo menos vulnerável a uma polarização como da Guerra Fria. "Acho que isso vai impedir a hegemonia de um único país querendo militarizar o espaço." Para o historiador da USP, o evento que desencadeou a corrida espacial mostrou sobretudo que a ciência ajuda a moldar a geopolítica.
"O Sputnik-1 foi o triunfo de uma política centralizada em direção a um determinado objetivo, e isso fez com que a URSS conseguisse uma vitória num primeiro momento", diz Motoyama. "Enquanto isso, nos países capitalistas, tudo estava ocorrendo de maneira dispersa, também em laboratórios de pesquisa das empresas
Um "mutirão científico" ocidental já havia sido feito com o projeto Manhattan -que construiu a primeira bomba atômica-, mas o governo dos EUA não dera continuidade a uma política de Estado com direcionamento claro à ciência.
Ouvir os bipes da primeira máquina em órbita, em outubro de 1957, mudou o modo americano de fazer ciência. E isso mudou a cara do século 20.

[clique aqui para ouvir o som da telemetria do Sputinik]

Era espacial gerou fascínio e medo
Nem a URSS imaginava o efeito que o Sputnik causaria nos EUA - Lançamento do primeiro satélite artificial levou os americanos a uma crise de confiança; Eisenhower tentou desmerecer façanha
JOHN NOBLE WILFORD DO "NEW YORK TIMES"
Cinqüenta anos atrás, antes que a maioria das pessoas que vivem hoje sequer tivessem nascido, o "bip-bip-bip" do Sputnik foi ouvido por todo o mundo. Era o som do incrível e do presságio. Nada jamais seria como aquilo -seja na política, em ciência e tecnologia ou no dia-a-dia da espécie humana. A União Soviética tinha lançado o primeiro satélite artificial, uma nova lua, em 4 de outubro de 1957. Vencendo a gravidade terrestre, elevando-se acima da atmosfera até entrar em órbita, o Sputnik atravessou todos os limites em direção a uma nova dimensão da experiência humana. As pessoas podiam agora se ver como exploradoras espaciais. A reação imediata, no entanto, refletiu as preocupações de um mundo imerso na Guerra Fria. Era um tempo de medo e divisão, no qual as duas superpotências, União Soviética e EUA, se encaravam com ameaças de destruição em massa. O Sputnik alterou a natureza e o alcance da Guerra Fria.
Era uma simples esfera de 58 centímetros de diâmetro e apenas 85 kg, com uma superfície polida de alumínio que refletia a luz e era visível da Terra. Dois rádios transmissores enviavam sinais em freqüências que cientistas podiam captar na Terra. Os russos pretendiam que o Sputnik fosse uma declaração barulhenta do seu poderio tecnológico. Mas nem mesmo eles, ao que parece, tinham antecipado a reação que seu sucesso iria provocar.

Crise de autoconfiança
O lançamento do satélite levou os americanos a uma crise de autoconfiança. Seu país tinha baixado a guarda com a prosperidade? As instituições da democracia liberal estariam em pé de igualdade para competir com a autoritária sociedade comunista? Na época do Sputnik, John F. Kennedy era um senador de Massachusetts sem nenhum interesse no espaço. Yuri Gagárin era um piloto militar russo sem distinções. Neil Armstrong testava aviões de ponta no deserto da Califórnia. Em breve suas vidas seriam mudadas, bem como as de pessoas comuns no mundo todo. A dinâmica pós-Sputnik acabou me atingindo e me recrutando. Assim como quase todo jovem americano apto, eu havia interrompido minha vida e minha carreira para entrar no serviço militar. Na manhã seguinte ao triunfo soviético, eu estava de folga do quartel. Comprei o jornal e o abri sobre a mesa de um café. As manchetes trombeteavam a notícia. A linguagem complicada de foguetes e órbitas deu um nó na minha cabeça, mas continuei lendo. Eu não tinha nenhuma premonição de que o Sputnik tinha disparado os eventos que moldariam minha carreira. Só em 1959 que eu senti o seu efeito. Os jornais e outros meios de comunicação, influenciados pelo Sputnik, começaram a se mexer para expandir a cobertura de ciência, medicina e tecnologia. Concordei com o editor-executivo [do "Wall Street Journal"] em tentar escrever sobre medicina. Uma coisa levou à outra, da medicina à ciência à exploração espacial, à revista "Time" e finalmente ao "The New York Times", para cobrir a mais ambiciosa resposta americana ao Sputnik: o programa Apollo. Depois do Sputnik, não havia mais como parar a corrida espacial. Os críticos atacaram o presidente Dwight Eisenhower, que a princípio desdenhou do Sputnik, dizendo tratar-se de um evento meramente "de interesse científico". Logo o Departamento de Defesa acelerou o desenvolvimento de mísseis. O Congresso criou a Nasa. Mísseis x bombardeirosMas a percepção de uma vantagem soviética persistiu. A necessidade havia ditado o foco russo nos mísseis. Desde a 2ª Guerra, os bombardeiros americanos haviam se tornado melhores que os soviéticos, que tampouco tinham bases aéreas a uma distância pequena o suficiente do território dos EUA que permitisse um ataque. Uma estimativa exagerada do "gap dos mísseis" se tornou o grito de guerra da campanha presidencial de 1960 e pode ter sido crucial para a vitória de Kennedy. Pouco tempo depois de ele ter assumido, os russos marcaram outro golaço: em abril de 1961, Gagárin se tornou o primeiro homem a voar em órbita da Terra. Depois de semanas de reuniões a portas fechadas, Kennedy foi ao Congresso em 25 de maio, e declarou: "Chegou a hora de dar passos mais largos, a hora desta nação assumir um papel claro de liderança na conquista espacial que, de muitas maneiras, pode guardar a chave para o nosso futuro na Terra." Ele colocou ao país o "objetivo, antes do final desta [daquela] década, de colocar um homem na Lua e trazê-lo de volta à Terra de maneira segura". Apenas 12 anos se passaram entre o toque de despertar da corrida espacial e a primeira caminhada na Lua. Três viagens lunares marcam mais a memória. Os astronautas da Apollo-8, em dezembro de 1968, são os primeiros a atingir a Lua, circundando-a dez vezes. Então há a Apollo-11. Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong desce do módulo de alunissagem e dá "um salto gigantesco para a humanidade". Buzz Aldrin se junta a ele na primeira caminhada na Lua. Diferentemente dos outros marcos espaciais, desta vez o mundo está assistindo pela TV.
Última viagem
No final de 1972, o último dos 12 homens a andar na Lua fez as malas e voltou para casa, e ninguém esteve lá desde então. Ao fim daquela missão, eu pedi a alguns historiadores que avaliassem o significado desses primeiros anos no espaço. Arthur Schleisinger previu que, em 500 anos, o século 20 provavelmente seria provavelmente lembrado principalmente pelas primeiras aventuras do homem além de seu planeta. No final do século, ele não tinha mudado de opinião. Nos anos seguintes, os russos e os americanos continuaram com os vôos espaciais, num ritmo reduzido. A maior parte do dinheiro americano foi para os ônibus espaciais, os veículos reutilizáveis que nunca cumpriram sua promessa de tornar o vôo espacial humano mais rotineiro. As imagens mais marcantes do programa para o público são a explosão da Challenger em 1986 e a desintegração do Columbia 17 anos depois. Eu dificilmente conseguiria me imaginar fora do contexto da Guerra Fria. Sem a intensa competição soviético-americana, simbolizada pela corrida espacial, eu não teria me tornado um jornalista de ciência que escrevia sobre astronautas que iam para a Lua para "ganhar" dos russos.

[Folha de São Paulo, 30/09/2007]

PNAD 2006

Clique na imagem ao lado para conhecer um resumo dos principais dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2006, do IBGE.

Para saber mais, visite o site do IBGE: tabelas, gráficos, mapas e download completo.

Um filme e duas formas de julgar e encarar o Bope

Tropa de Elite’ agrada a defensores de batalhão, mas também aos que vêem filme como denúncia de abusos

Alexandre Rodrigues
Os aplausos no fim da exibição de Tropa de Elite no Festival do Rio, na quinta-feira, consagram visões díspares: o reconhecimento à atuação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), tropa apontada como exceção na polícia corrupta do Rio, e a reprovação de métodos truculentos expostos no filme, como sessões de tortura e execuções sumárias. Dois estudiosos da segurança procurados pelo Estado viram nas distintas reações provocadas pela história do capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura, o que há de mais interessante no filme.
Para o sociólogo Gláucio Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas (Iuperj), dentro dos parâmetros do Rio o filme valoriza o Bope. Ele observa que significativa parcela da sociedade repudia a corrupção nas tropas regulares da Polícia Militar, mas não a violência com que age o Bope. “A imagem da PM no Rio é tão ruim que uma parte dela que não seja facilmente corrompida, ainda que extremamente violenta, é vista como bonança. Isso acontece porque o ponto de comparação é baixíssimo. Se estivéssemos num país de corrupção baixa, não ser corrupto não seria vantagem. Entraríamos na questão da violência e aí o Bope perde”, analisa. “Nosso padrão de exigência da polícia está muito baixo. Quem gostaria de ver um Bope que, além de incorruptível, obedece às leis talvez não goste do filme.”
Para o sociólogo Michel Misse, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio (UFRJ), é muito perigosa a hierarquia de valores que considera a violência um mal menor diante da corrupção. Após as cenas em que os policiais metem o pé na porta de casas em favelas, envolvem a cabeça de moradores com sacos plásticos para interrogá-los e executam criminosos dominados, “só chega ao final da fita admirando o Bope quem vê como natural esse método”. “Para mim, o filme é uma crítica ao Bope. A interpretação oposta mostra como quem gostou da tropa está inteiramente imerso nesse cotidiano da violência. Acha natural a tortura e considera que tem de ser feito dessa maneira.”

Nesse contexto, os números dos autos de resistência, que registram mortes dos que supostamente entraram em confronto com policiais, são vistos com naturalidade. O número de casos vem aumentando no governo Sérgio Cabral. Nos últimos cinco anos, ele tinha ficado em cerca de mil por ano. Em 2006, houve 1.063 mortes. Até maio de 2007, foram 586. No mesmo período, pelos dados oficiais, morreram em confronto 14 policiais.Segundo Soares, pesquisas mostram em várias camadas sociais um certo desprezo pelo processo policial-penal diante da necessidade de efetiva punição. A violência, diz ele, é freqüentemente vista como parte da pena, numa reedição de um código penal individual. “A sociedade está machucada pela violência e pelo crime e é extremamente punitiva, mas por fora da lei que existe. Ninguém leva fé no processo adjetivo que leva um sujeito até a prisão. Ele é visto como ineficiente”, diz.
A militarização crescente da polícia, cuja expressão máxima é o Bope, é uma resposta à escalada armamentista dos traficantes, na visão de Misse. “Os policiais têm razão quando dizem que os bandidos não se entregam e são violentos. Décadas de execuções levam criminosos a não confiar em se entregar. Um é reflexo do outro, num processo perverso que não tem fim”, diz Misse, para quem Tropa de Elite tem o mérito de criticar o Bope sem demonizá-lo.
Seu colega do Iuperj concorda e acrescenta que o fato de o cinema pela primeira vez abordar o crime pelos olhos da polícia expõe a maneira simplista como o tema muitas vezes é tratado. “Quem, levando bala, não vai reagir assim? Dizer que não pode é hipócrita. Exige-se uma conduta à qual ninguém está disposto a se expor.”
Para Soares, o grande mérito do filme foi “não ter tido o indevido pudor de salvar patricinhas e mauricinhos” ao tocar na responsabilidade dos consumidores de drogas na cadeia da violência. O mal-estar refletido no riso nervoso da platéia do festival quando, na tela, o capitão atribui a um “playboy maconheiro” a execução de um bandido, promete alimentar ainda mais a polêmica.

[O Estado de São Paulo, 23/09/2007]

À sombra do horror, guardas da SS relaxam e brincam

Neil A. Lewis
Em dezembro do ano passado, Rebecca Erbelding, jovem arquivista do Museu Memorial do Holocausto dos EUA, recebeu uma carta de um ex-agente de inteligência do Exército americano, na qual dizia que queria doar fotografias de Auschwitz, encontradas por ele há mais de 60 anos na Alemanha.
Erbelding ficou intrigada: apesar de Auschwitz ser o mais famoso dos campos de morte nazistas, há apenas um pequeno número de fotos conhecidas do lugar antes de sua liberação, em 1945. No mês seguinte, o museu recebeu um pacote contendo 16 folhas de papelão com fotos coladas dos dois lados; seu significado rapidamente tornou-se aparente.
Enquanto Erbelding e outros arquivistas revisavam o material, entenderam que era uma espécie de álbum do dia-a-dia dos altos oficiais da SS em Auschwitz, que foi mantido por Karl Hocker, ajudante do comandante do campo. Em vez de mostrar os homens desempenhando suas tarefas no campo de concentração, as fotos retratavam, entre outras coisas, um grupo de homens da SS cantando alegremente, acompanhado de um acordeão; Hocker acendendo a árvore de Natal do campo, jovens mulheres da SS brincando alegremente e oficiais relaxando, alguns sem suas vestes, fumando um cigarro.
Ao todo, são 116 fotografias, a começar com uma foto de 21 junho de 1944, de Hocker e o comandante do campo, Richard Baer, ambos com o traje completo da SS. O álbum também contém oito fotos de Josef Mengele, médico do campo famoso por participar nas seleções de prisioneiros e por seus experimentos médicos bizarros e cruéis. Essas são as primeiras fotos autenticadas de Mengele em Auschwitz, disseram os membros do museu do Holocausto.
As fotos fornecem um contraponto impressionante do que até agora era a única grande fonte de fotos anteriores à liberação de Auschwitz, o chamado Álbum Auschwitz, uma compilação de fotografias tiradas por fotógrafos da SS na primavera de 1944 e descoberta por uma sobrevivente em outro campo. Essas fotos mostram a chegada ao campo de um transporte de judeus húngaros, que na época eram a última comunidade judia de tamanho razoável que restava na Europa. O Álbum Auschwitz, propriedade do museu do Holocausto de Israel, Yad Vashem, retrata o processo de seleção ao lado da linha de trem em Birkenau, onde os trens chegavam para o campo e os agentes da SS forçavam os novos prisioneiros a entrarem nas filas.
As comparações entre os álbuns são ao mesmo tempo tocantes e óbvias, pois justapõem a vida diária confortável dos guardas com a realidade tenebrosa dentro do campo, onde milhares estavam morrendo de fome e 1,1 milhão de pessoas morreram.
Por exemplo, uma das fotografias de Hocker, tirada no dia 22 de julho de 1944, mostra um grupo de jovens mulheres alegres, que trabalhavam como especialistas de comunicações da SS, comendo pratos de mirtilos frescos. Uma delas vira o prato e faz uma careta brincalhona, porque tinha terminado sua porção.
Naquele dia, 150 novos prisioneiros chegaram a Birkenau, disse Judith Cohen, historiadora do museu do Holocausto em Washington. Do grupo, 21 homens e 12 mulheres foram selecionados para o trabalho, o resto foi imediatamente enviado para as câmaras de gás.
Essas matanças faziam parte dos esforços frenéticos finais dos nazistas para eliminar os judeus da Europa e outros considerados indesejáveis na medida em que a guerra se aproximava do fim. Naquele verão, os crematórios quebraram por excesso de uso, e alguns corpos tiveram que ser queimados em valas abertas. Um grupo separado, porém pequeno, de fotos anteriores à liberação registrou clandestinamente essas cremações.
Auschwitz foi abandonado e evacuado no dia 18 de janeiro de 1945 e liberado pelas forças soviéticas no dia 27 de janeiro. Muitas das fotos de Hocker foram tiradas em Solahutte, um albergue de recreação de estilo alpino que a SS usava, nos limites do complexo do campo, ao longo do rio Sola.
Apesar de ainda não terem planos de exibir o álbum de Hocker, os curadores do Museu Memorial do Holocausto criaram uma apresentação on-line delas em seu site da Web (ushmm.org) que estará disponível nesta semana. Em muitos casos, eles contrastaram as imagens de Hocker com as do Álbum Auschwitz. Em uma, mulheres da SS descem de um ônibus em Solahutte para um dia de recreação; enquanto isso, em uma fotografia do Álbum Auschwitz tirada na mesma época, mulheres maltrapilhas e cansadas de viajar saem com seus filhos de um vagão de gado para o campo de concentração.
Curadores do museu evitaram descrever o álbum como "o lazer dos monstros" ou "assassinos se divertindo". Cohen disse que as fotos eram instrutivas, pois mostravam que os matadores eram, de alguma forma, pessoas que se comportavam como seres humanos comuns. "Em sua auto-imagem, eram bons homens, bons camaradas, até civilizados", disse ela.Sarah J. Bloomfield, diretora do museu, acredita que existem outras fotografias ou documentos relativos ao Holocausto não descobertos, perdidos em sótãos, que logo desaparecerão para a história.
O doador, que pediu para permanecer anônimo, tinha mais de 90 anos quando contatou o museu e morreu neste verão. Ele disse aos curadores do museu que encontrou o álbum em um apartamento em Frankfurt, onde morou em 1946.As fotos do Álbum Auschwitz foram descobertas por Lili Jacob, judia húngara que foi deportada em maio de 1944 para Auschwitz, perto de Cracóvia, na Polônia. Ela foi transferida para outro campo, Dora-Mittelbau, na Alemanha, onde descobriu as fotografias em uma mesa de cabeceira em um alojamento abandonado da SS.Ela ficou chocada ao reconhecer retratos dela mesma, do rabino e de seus irmãos de 9 e 11 anos. Mais tarde descobriu que ambos tinham sido imediatamente enviados à câmara de gás ao chegarem.Hocker fugiu de Auschwitz antes da liberação do campo. Quando foi capturado pelos britânicos, carregava documentos falsos que o identificavam como soldado de combate. Depois do julgamento de 1961 de Adolf Eichman, em Israel, autoridades da Alemanha Ocidental encontraram Hocker em Engershausen, sua cidade natal, onde estava trabalhando em um banco.Ele foi condenado por crimes de guerra e ficou preso sete anos; foi liberado em 1970, quando foi recontratado pelo banco. Hocker morreu em 2000, com 89 anos.
Tradução: Deborah Weinberg

[The New York Times, 19/09/2007]

TV - Você é o que você assiste

A audiência de massa se ramificou há muito tempo; hoje os espectadores se dividem em tribos com seus próprios rituais e ritos de passagem
Alessandra Stanley
"O que você assiste?" não é mais uma forma preguiçosa de redirecionar uma conversa aborrecida. As perguntas sobre programas preferidos tornaram-se cheias de significado; o assunto é tão íntimo, revelador e potencialmente incômodo quanto falar sobre sua renda pessoal. A era da televisão é rica e exigente. Hoje as opções são abundantes, fragmentadas e boas. E decidir entre centenas de canais, ofertas "on demand", DVR, downloads da internet e iPhones exige tanta pesquisa, planejamento e dedicação que os espectadores se tornaram exclusivos em suas opções. Formam-se alianças, assim como antipatias. O esnobismo se enraíza. As preferências tornam-se totêmicas. A audiência de massa se ramificou há muito tempo; hoje os espectadores se dividem em tribos com seus próprios rituais e ritos de passagem.
Algumas pessoas juram fidelidade a "Mad Men", a elegante e meditativa série passada no mundo da publicidade da Madison Avenue no final do governo Eisenhower. Outros acham a estética do programa limitadora e tendenciosa demais, e afirmam que a melhor novidade do verão foi "Damages", a série de suspense jurídico com Glenn Close na FX. E até esta causou rixas entre os que vibram com o estrelismo de Close e os que acham o enredo complicado demais e cheio de tragédias.
"Lost", da ABC, ainda encontra devotos, mas o momento das massas passou para "Heroes", que tem mística com menos camadas de mistificação. Até algumas pessoas que dizem não assistir televisão fazem uma exceção para "The Wire", na HBO. "Prison Break" na Fox tem um público pequeno mas apaixonado, como também "Project Runway", da Bravo. Na NBC, "The Office" é uma das melhores comédias da TV, mas os exigentes demais afirmam que não se compara à versão original britânica estrelada por Ricky Gervais. "30 Rock" tem uma base de fãs fervorosa, mas exclui o público que não acompanha a Page Six [revista de fofocas]. Além disso, muita gente jurou que não assiste mais a séries cômicas depois que a Fox cancelou "Arrested Development".

Torre de Babel
Um programa favorito é uma dica de personalidade, gosto e sofisticação, assim como foi a música antes que se tornasse virtualmente grátis e consumida igualmente por faixas individuais ou por artistas. Os dramas ficaram mais complexos; muitos dos melhores são serializados e exigem tempo e assistência seqüencial. No mínimo, a televisão tornou-se mais próxima da literatura, inspirando algo semelhante às confrarias que se formam em torno dos autores que as pessoas dizem que levariam para a proverbial ilha deserta. (As que dizem "Ulisses", pois ocuparia mais tempo que quase qualquer outro romance, provavelmente também levariam "The Wire".)Alguns eventos são suficientemente importantes para atrair a atenção de todo mundo: o final enigmático de "Os Sopranos" ou um crime cometido por uma celebridade. Mas principalmente a televisão é uma Torre de Babel desmoronada, fragmentos esparsos de conversa sobre uma infinidade de programas. Os apresentadores de programas de entrevistas e os críticos de mídia debatem se "Kid Nation" -um "reality show" exibido pela CBS que coloca jovens numa experiência de aprendizado de 40 dias no estilo "Outward Bound/ O Senhor das Moscas"- constitui abuso de menores. Em escala menor, as suburbanas traficantes de "Weeds" no Showtime e a apologia da tortura em "24" da Fox, e até o mundo avançado do ainda inédito "Pushing Daisies" da ABC incendeiam discussões em blogs, salões de cabeleireiro, jantares e até em cidades universitárias, onde cada vez menos gente declara que nunca assiste televisão. Isso não significa que a era da televisão em rede como experiência nacional compartilhada, por exemplo, quando todo mundo assistia a "Roots" ou "Dallas", terminou. Alguns programas, mais notavelmente "American Idol", reúnem um público enorme, cuja maioria é jovem o suficiente para nunca ter ouvido falar em Ed Sullivan ou lembrar do tempo em que você podia assistir a "Bonanza" só às 21hs de domingo ou esperar por uma reprise no verão. Mas são as séries menos conhecidas que inspiram os fiéis mais fervorosos. Os fãs derrubaram o veto da CBS a "Jericho" na última primavera, trazendo-a de volta depois que a rede a cancelou por causa da baixa audiência. Nessa paisagem de mídia balcanizada, os espectadores buscam e guardam zelosamente suas descobertas onde quer que as encontrem.
Não é um salto evidente de "Os Sopranos" para o canal Sci-Fi, mas uma amiga que ficou arrasada quando a série da HBO terminou foi atraída pela nova encarnação de "Battlestar Galactica", um seriado "cult" sobre uma frota de naves espaciais que tenta escapar da raça de robôs Cylons e encontra refúgio numa colônia perdida e fabulosa conhecida como Terra.Ficção-científica é uma coisa: "Battlestar Galactica" tem cachê intelectual. "Os humanos são pagãos politeístas e os robôs são monoteístas, cuja 'jihad' divina é contra os humanos (apesar de os robôs saberem que foram criados por eles)", explicou Anthony Gottlieb, autor de "The Dream of Reason: A History of Philosophy from the Greeks to the Renaissance" [O sonho da razão: uma história da filosofia dos gregos ao Renascimento], por meio de seu Blackberry, de uma área de recepção de bagagens num aeroporto. "Existe uma curiosa mistura de alta tecnologia com superstição e fundamentalismo escritural (o que, interessantemente, sugere que a religião é inextinguível, como dizem hoje com crescente freqüência os teóricos do secularismo).
"Gottlieb gosta de quebra-cabeças filosóficos ("Alguns robôs pensam que são humanos, e alguns humanos temem que possam ser robôs"), assim como do modo como o programa alterna suas simpatias entre a democracia e a ditadura. Ele realmente só faz uma objeção. "Tem muito romance, mas isso me aborrece", sugere. "Menos beijos e mais mortes é um freqüente refrão interior meu."Neste verão, "Mad Men" marcou meu mundo com círculos cada vez maiores de especialização. Ficamos fascinados pelo visual cor-de-âmbar do início dos anos 1960, quando os homens tomavam martínis no almoço e as donas-de-casa fumavam nas reuniões de pais e mestres, e a batalha entre os sexos mal tinham começado. Michael Hainey, o editor-assistente da revista "GQ", está encantado pelo modo como a série capta com minúcia os detalhes de um momento perdido de superconfiança americana. "É uma peça de época que é sobre hoje", explicou Hainey. Ele também gosta do visual e do clima, que descreveu como "uma mistura de 'The Appartment' com 'O Espião que Veio do Frio'".
Outros amigos são viciados em "The Closer" na TNT e imitam o sotaque sulista de Kyra Sedgwick ("thankyousoverymu-uu-ch"). Quase todo mundo que conheço assiste a alguma forma de "Law & Order" em algum momento da semana. Como espectadora profissional, assisto às reprises de Jerry Orbach para limpar o paladar, algo leve e tranqüilizador entre fitas para resenhar.

Hábitos vergonhosos
A geração DVR não sabe o que significa uma nova temporada de outono ou televisão com hora marcada. Sei disso porque tenho uma filha de 14 anos que às vezes consente em servir de embaixatriz do Planeta Juventude. "Não existe um programa na moda", ela declarou recentemente. "Todo mundo assiste a coisas diferentes. Não posso ajudá-la." (Mas ela deu algumas dicas: a garotada "esperta" vê "House" e "The Office", enquanto as meninas adolescentes que não temem parecer "lobotomizadas", como ela diz, vêem "Grey's Anatomy".)Os adolescentes não são os únicos com hábitos vergonhosos escondidos no armário. A maioria das pessoas tem programas que só admite assistir depois de um preâmbulo autocrítico que mostra como ela é encantadoramente eclética, e não apenas uma lúmpen-espectadora. As pessoas tornaram-se curadoras de seu consumo televisivo, buscando explicações amplas para continuarem sintonizando "American Idol" (antropologia cultural) ou o Nascar (apenas antropologia). Programas mais alternativos, como "Mythbusters" no Discovery Channel ou mesmo "Timeless Romance Jewelry" no QVC, não são embaraçosos; recaem na categoria de distração extravagante.As produções para o mercado de massa são mais difíceis de explicar. Muitas pessoas do departamento de cultura deste jornal nunca vêem televisão, a menos que seja uma adaptação de uma novela de George Eliot no "Obras-Primas do Teatro". Mas um dos editores mais inteligentes que conheço certa vez admitiu, depois de alguns drinques, que ia a seu escritório quando não havia ninguém por perto para assistir a "Reba". Eu sou paga para assistir televisão e me orgulho de ter um aparelho de TV ligado o tempo todo, como uma espécie de chama eterna, um memorial a todos os programas que foram cancelados. O código de honra do crítico é "nenhum programa será deixado para trás". Não me envergonho de dizer que tento nunca perder "Mad Men", "Curb Your Enthusiasm", "30 Rock" e também "House" e "Sleeper Cell." Tenho mais dificuldade para admitir que às vezes gravo "NCIS" e "Jag".
Antes da Internet, dos iPhones e "flash drives", as pessoas debatiam quem curtia os Pixies quando ainda eram uma banda de garagem ou quem conseguia ir mais fundo na defesa dos méritos de Oasis versus Blur. Hoje, a não ser pelos aficionados linha-dura do rock, é mais provável que a especialização se concentre em torno de uma série de televisão -como pistas metafísicas embutidas em "Lost", se a atual "Battlestar Galactica" é uma afronta ao original de 1978 (alguns bloggers referem-se ironicamente à atual encarnação como "Gino", abreviação de "Galactica in name only" [Galactica só no nome]), ou que descobriram "Flight of the Conchords" quando era um grupo de comediantes que fazia shows, e não uma série da HBO.A televisão costumava ser rejeitada pelos elitistas como a caixa de burrice, um mar de mediocridade que afoga o pensamento e o debate inteligente. Hoje as pessoas que ignoram suas poças e marés de excelência o fazem sob seu próprio risco. Elas estão perdendo o assunto principal da conversa em sua mesa.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[ The New York Times, 23/09/2007]

Erótica - O sexo dos egípcios

Eu não saberia dizer ao certo quando textos eróticos recheados de imagens picantes apareceram no mundo ocidental nem quando eles foram criados. Exemplos dos séculos 18 ao 20 podem ser encontrados com certa facilidade. Mas será que textos eróticos eram comuns no Egito faraônico? Não podemos afirmar tal coisa, mas um único exemplo foi encontrado e data do período ramessida (1292-1070 a.C.) Refiro-me ao papiro do Museu de Turim (erotic papyrus - Turin 55001).
Não sabemos o porquê da produção desse texto, talvez em um momento de descanso ou de espírito satírico o escriba tenha traçado uma breve história com alguns diálogos e cenas. Talvez representasse algumas das experiências vividas pelo autor ou amigos.
O fato é que as diversas cenas de sexo no papiro remetem a lugares específicos que podem indicar uma casa de prostituição. Além disso, também foi retratado um ato sexual durante um passeio de biga.
Em uma das passagens, a jovem parece ensinar ao homem (cliente) inexperiente e temeroso a arte do sexo:
Eu torno o teu trabalho agradável. Não temas. O que eu te farias? Olha aqui dá a volta e vem por trás... Teu falo está comigo... (Lise Manniche, A Vida Sexual no Antigo Egito)
Além das cenas de amor, a preparação de uma jovem usando espelho, uma espécie de batom, colares, perucas e cinturões podem ser identificados. Também é possível verificar homens passando mal ou exaustos de tanto sexo.
O papiro não parece ter valor religioso claro e tende ao satírico, mas deuses são citados e o sistro (uma espécie de chocalho) da deusa Hathor é retratado nas cenas. Além disso, em uma das imagens, a postura de amor é semelhante ao encontro entre a deusa Nut (deusa do céu) e o deus Geb (deus da terra): ela por cima é uma variante do mito da criação.
O papiro é um exemplo de que mesmo em situações íntimas e satíricas do cotidiano o divino e o mágico estão presentes. Por outro lado, as cenas de atividades sexuais não são comuns no templos, mas aparecem em certo grau nas tumbas privadas, assim como um bom acervo pode ser encontrado sobretudo em rascunhos de calcário de trabalhadores conhecidos como ostracos (ou ostraca).

[Julio Gralha, no site da Rev. Aventuras na História]

Metade das línguas corre risco de sumir

Estimativa é de levantamento feito por lingüistas americanos; Rondônia integra uma das cinco regiões mais críticas Projeto financiado pela National Geographic, no entanto, subestimou o número de idiomas nativos sob alto risco na Amazônia

GIOVANA GIRARDI
Metade das cerca de 7 mil línguas faladas hoje em todo o mundo deve sumir até o final do século, em alguns casos à velocidade aproximada de uma extinção a cada 14 dias. A estimativa catastrófica é resultado de uma investigação financiada pela National Geographic Society, que apontou as cinco regiões do planeta onde há mais línguas ameaçadas de extinção. Um dos "hotspots" inclui o Estado de Rondônia.
"As línguas estão passando por uma crise global de extinção, que excede enormemente o ritmo das extinções de espécies", declarou o lingüista David Harrison, do Instituto Línguas Vivas, na terça-feira.
Ele e seu colega Gregory Anderson viajaram pelo mundo inteiro ao longo de quatro anos para entrevistar e gravar os últimos falantes de algumas das línguas mais ameaçadas. Após o levantamento (os dados completos estão em
www.languagehotspots.org) eles perceberam que as regiões mais críticas são Sibéria oriental, norte da Austrália, centro da América do Sul, Oklahoma e litoral noroeste do Pacífico nos EUA e Canadá. "Estamos vendo na frente dos nossos olhos a erosão da base do conhecimento humano", disse Harrison.
O sumiço das línguas têm ocorrido tanto por morte das pequenas populações que ainda as falam quanto pelo simples desuso das línguas. Elas não são passadas para as novas gerações, que falam apenas a língua mais comum no país, como português, no Brasil, e toda a cultura daquele povo acaba ficando restrita aos mais velhos da tribo. Quando eles morrerem, o conhecimento dessa população morrerá junto.
"Oitenta porcento das espécies do mundo ainda não foram descobertas pela ciência, mas não significa que elas sejam desconhecidas dos humanos", lembra Harrison. Com a perda da língua, diz ele, estão sendo jogados fora séculos de descobertas feitas pela humanidade.
O país mais crítico é a Austrália. Das 231 línguas aborígenes existentes, 153 estão em risco muito alto. No norte do país os pesquisadores acharam um único falante de amurdag, língua já considerada extinta. "Esta é provavelmente uma língua que não vai voltar, mas pelo menos fizemos uma gravação dela", conta Anderson.

Risco Brasil
Pelo levantamento feito pela National Geographic, as línguas de povos que vivem em Rondônia apresentam um nível de risco muito alto de sumir, enquanto as línguas faladas por populações indígenas do centro-sul do Brasil estão em alto risco. Lingüistas que estudam o problema no país, no entanto, acreditam que a situação aqui é bem pior que a demonstrada por Harrison e Anderson.
A dupla considera, por exemplo, que o wayoró é falado por cerca de 80 pessoas em Rondônia. Segundo Denny Moore, do Museu Emílio Goeldi, são menos de dez os falantes.Outros povos nem chegaram a figurar entre os de língua mais ameaçada pelos americanos. Um caso é dos canauê, também de Rondônia, cuja língua é falada por oito pessoas.

Xetá e Xipaia, no Brasil, têm um falante cada
Algumas línguas indígenas estão literalmente à beira da extinção no Brasil porque as poucas pessoas que as falam simplesmente não têm para quem transmitir o conhecimento. No Paraná há só um falante da língua do povo xetá. "E ele é um solteirão, que dificilmente vai passar sua cultura para frente", conta Aryon Rodrigues, do Laboratório de Línguas Indígenas da Universidade de Brasília. Segundo o pesquisador, o caso se repete na região de Altamira, no Pará, onde somente uma mulher xipaia fala a língua de seu povo. No mesmo local, entre os curuaia, vivem somente dois falantes. "A situação aqui é muito ruim", diz.


[Folha de São Paulo, 20/09/2007]

Humano "primitivo" foi 1º a deixar África

Novos fósseis de 1,77 milhão de anos da Geórgia indicam que "Homo erectus" era mescla de traços arcaicos e modernos
Migrante pioneiro tinha corpo e cérebro de gênero mais antigo de hominídeo, mas pernas já adaptadas a andar grandes distâncias

RICARDO BONALUME NETO

Depois de crânios, foram achados outros ossos dos mais antigos humanos a viverem fora da África, no sítio de Dmanisi, Geórgia. O esqueleto mais completo mostra, no entanto, que esses pioneiros não eram tão humanos como se pensava.
Os fósseis de Homo erectus de 1,77 milhão de anos de Dmanisi têm características primitivas que lembram os ancestrais "homens-macaco", os australopitecinos -como corpo e cérebros pequenos, ou a forma dos braços. Tinham em média 1,5 metro de altura.
Mas também têm uma morfologia moderna das pernas e "indicativa da capacidade de viajar longas distâncias", afirmaram os autores da descoberta, relatada na edição de hoje da revista científica "Nature" por David Lordkipanidze, do Museu Nacional da Geórgia, e mais 17 colegas.
O Homo erectus é a primeira espécie conhecida do gênero humano a migrar da África para a Ásia e a Europa.
Os restos incluem ossos de pernas, braços e coluna e pertencem a três adultos e um adolescente. Antes tinham sido achados três crânios; o menor tem 600 centímetros cúbicos de volume, cerca de metade de um cérebro humano de hoje.
Comentando a descoberta, o paleontólogo Daniel Lieberman, da Universidade Harvard (EUA), lembrou a considerável variabilidade no tamanho e forma dos mais antigos membros do gênero ao qual pertence o homem moderno.
Os cérebros de um ancestral africano ainda mais antigo, o Homo habilis, têm tamanho parecido com os dos achados de Dmanisi, por exemplo. E a variabilidade que existe entre os fósseis batizados de Homo erectus é a maior de todas.
Seriam espécies diferentes? Para Jeffrey Schwartz , da Universidade de Pittsburgh, EUA, havia no passado uma tendência entre os cientistas a achar que não poderia haver mais que uma espécie humana ao mesmo tempo. O Homo erectus, diz ele, "virou uma espécie de lixeira, na qual se jogavam os fósseis mais diferentes".
Lieberman acha que a "lixeira clássica", na verdade, era o H. habilis, apesar de concordar que o H. erectus também tem uma variabilidade grande.
"Mas nós não poderemos nunca ter certeza de como definir espécies fósseis e, na verdade, isso não tem tanta importância. O H. erectus "lato sensu" era claramente uma espécie variável ou um grupo de espécies muito próximas", afirma.
"Alguns foram para a Europa e deram origem aos neandertais. Outros foram para a Ásia, evoluíram lá e foram extintos. E alguns ficaram na África, e eventualmente deram origem ao Homo sapiens. Nós podemos debater sobre como chamar as coisas, mas a história não vai ser mudada", concluiu.

[Folha de São Paulo, 20/09/2007]

É história ou é novela?

No último domingo, assisti à estréia do quadro “É muita história”, do jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno, no Fantástico, da Rede Globo. Tinha em mente que tratava-se de uma figura polêmica, principalmente para os acadêmicos e estudiosos da história, que questionam as fontes e o linguajar de seus livros - sucessos absolutos de vendas.
O tema do primeiro programa, obviamente, era o 7 de setembro. Com bastante estranheza vi meu colega de profissão vestido de D. Pedro I, cavalgando um cavalo de pau por São Paulo. Lembrei-me que havia lido sobre a intenção do quadro em apresentar uma passagem histórica com dramaturgia improvisada e conversas informais. Respirei fundo para dar mais uma chance ao programa, mas não consegui ser tolerante com a caricatura da história que saltou diante de meus olhos.
Logo no começo, Bueno levanta a lebre: “Desde o Dia do Fico, em janeiro de 1822, a independência do Brasil era só uma questão de tempo. Ao decidir ficar no Brasil, desobedecendo ao pai, Dom João XVI, e afrontando as cortes de Lisboa, Dom Pedro deu um passo sem volta. Por que, então, Pedro esperou até setembro para dar seu grito? Por que no dia 7? E por que no meio do nada, às margens do riacho Ipiranga?”.
Mas, ao invés de explicar, ou ao menos discutir, tudo que transcorreu de janeiro a setembro de 1822 – e até mesmo antes, chegando à revolução liberal do Porto em 1820, crucial para a compreensão do processo de independência – Bueno percorre outro caminho e narra apenas o dia 7 de setembro para o jovem Pedro. Passando por um breve comentário sobre as críticas da imprensa e citando como história oficial – e, portanto, descartável - a correspondência em que José Bonifácio informa ao futuro imperador a intenção portuguesa de retomar com força as rédeas coloniais, a conclusão, narrada por Pedro Bial, é que “viagens longas e estafantes, calúnias dos jornais, paixões arrebatadoras, rejeição e indigestão” são as causas da independência brasileira. Claro, em sua tese de que a independência foi declarada em “um dia de fúria de D.Pedro” isto faz sentido.
O que não faz sentido para mim é apresentar em cadeia nacional, na emissora com maior audiência, um programa como esse. Aliada à fórmula de “reconstituições históricas” – necessariamente entre aspas -, com Bueno vestido de D. Pedro, o que fica para o espectador é uma história fácil de digerir, mas perigosamente descontextualizada. Querer levar a história do país de uma forma palatável para o número imenso de pessoas que assistem ao Fantástico todos os domingos é uma coisa - fantástica aliás, com o perdão do trocadilho. Mas deixar que o 7 de setembro permaneça simplesmente como um dia de indigestão de um personagem de uma história bem mais ampla é outra muito diferente.

Para quem não assistiu, acesse:
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1629846-4005,00.html

Maíra Kubík Mano


[Blog - Rev. História Viva, 10/09/2007]

Quase 150 presos na primeira manifestação pelo golpe após morte de Pinochet

SANTIAGO, 9 Set 2007 (AFP) - Cerca 150 pessoas foram presas nas manifestações que marcaram neste domingo o aniversário do golpe de Estado de 1973 que derrubou Salvador Allende, na primeira comemoração que ocorre depois da morte do ex-ditador Augusto Pinochet, em dezembro de 2006.
Os manifestantes se reuniram na Praça dos Heróis, no centro de Santiago, com a intenção de ir até o palácio presidencial de La Moneda para prestar uma homenagem a Allende, que se suicidou ali no dia do golpe, em 11 de setembro de 1973.

Cerca de 1.500 efetivos policiais cercaram o palácio presidencial, em uma grande mobilização que incluiu a polícia montada, o que impediu os manifestantes de se aproximarem.
As autoridades proibiram a passagem pelo lugar, depois que, no ano passado, uma bomba explodiu em uma das janelas do edifício, que foi bombardeado pelo ar e pela terra durante o golpe militar.A passeata, que apesar de tudo transcorreu de forma pacífica, foi desviada por ruas adjacentes e tinha como ponto final o memorial do Cemitério Geral de Santiago, que recorda as cerca de 3.000 vítimas, entre mortos e desaparecidos, deixadas pela ditatuda de Pinochet.
A manifestação, que é realizada todos os anos, foi convocada pelo Partido Comunista e organizações de defesa dos direitos humanos.
Entre os manifestantes presos, figuram duas dirigentes do Grupo de Familiares de Detidos e Desaparecidos (AFDD), Mireya García e Viviana Díaz, que foram detidas por tentar se aproximar do palácio presidencial.

[UOL, Últimas Notícias, 09/09/2007]

Os pequenos mendigos de Alá

Hubert Prolongeau Enviado especial a Uagadugu (Burkina Fasso) e a Dacar (Senegal)
Ele conta e reconta o dinheiro em suas mãos. 250 francos. Ainda não é o suficiente. Será que ele vai conseguir? Assim como ocorre todo fim de tarde, esta criança está com medo. Caso ele não trouxer toda a quantia combinada, os 350 francos CFA (R$ 1,42) que o seu professor corânico exige, ele sabe que castigos esperam por ele. Será que vai fugir, optar por não voltar, tal como fizeram antes dele, na semana anterior, dois dos seus condiscípulos? Mas, assim fazendo, ele nada conseguirá, a não ser ficar no olho da rua, misturado aos bandos de adolescentes quase sempre drogados dos quais ele tem pouco ou nada a esperar. Então, ele tenta novamente, estendendo a mão. Ele tem 9 anos. É um "talibê", um aluno de escola corânica, condenado na maior parte do tempo a ser um mendigo, um fugitivo.

Por todo lugar, no oeste da África, as mesquitas estão brotando. Em Burkina Fasso, em Uagadugu, no bairro de Hamdalaye ou naquele de Poutenga, as suas torres de terra erguem-se para o céu. Em volta delas, dentro de pequenas (pequenas demais...) casas, podem ser encontradas numerosas escolas corânicas. Como a de Cheikh Youssef. À noite, quando o sol já se pôs em "Uaga" e quando brilham os fulgores das lâmpadas de petróleo, uma turma de cerca de sessenta crianças ouve o professor, compartilhando um Alcorão por grupos. Os mais novos já estão dormindo, deitados sobre as pernas dos seus companheiros. Na encruzilhada ao lado da escola, um grupo de doze jovens está esperando, à beira do "asfalto". Eles são da etnia "peul", e antigos alunos do professor. Eles optaram por fugir e, desde então, andam a esmo pelas ruas.
Os professores, em muitos casos, vieram do campo junto com os seus alunos. Eles nada recebem para cuidar das crianças, mas o seu papel deveria ser acomodá-las e alimentá-las. Na escola de Cheikh Youssef, uma única sala abriga os alunos. Cerca de vinte deles cabem no recinto. Os outros dormem do lado de fora. Quando alguém lhe pergunta por que, Cheikh Youssef responde que esta é a vontade de Alá, e que tudo aquilo que as crianças aprendem da sua palavra justifica este pequeno sacrifício. Mas, o que será que eles aprendem? Aos 11 anos, Baari Sule fugiu da sua casa na aldeia de Logo, onde ele vivia brigando, e refugiou-se na escola corânica de Poutenga. Lá, ele cansou de tanto moer o sorgo. Não conseguiu aprender a ler, e quase nunca consegue matar a sua fome. Regularmente, ele era enviado para mendigar. Muito rapidamente, as suas jornadas acabaram se limitando a isso. Ele fugiu, mais uma vez.
Assim como ele, muitos acabam desistindo. Um dia, eles se vão, cansados desta tirania, das críticas, das surras quando eles não trazem o dinheiro exigido. "Eles sempre pegavam tudo o que eu tinha", conta Dieudonné Ouedraogo, 13 anos, "e eu só comia para valer quando alguém me dava alimentos e que eu podia fazê-lo às escondidas". Ele permaneceu por três anos na sua escola, dos 9 aos 12 anos. Então, ele se encheu de tudo isso. Numa certa noite, ele não voltou. Ele guardou para ele o produto da sua mendicância. Desde então, ele voltou a cruzar com os outros. Volta e meia, ele volta e fica largado novamente na frente da escola. Só que ele se mantém à distância.
As ruas de Uagadugu estão repletas desses talibês fugitivos. Eles podem ser reconhecidos pela sua "maleta", a grande lata de conservas de tomates, cortada em dois que eles carregam amarrada em volta do pescoço, e na qual as pessoas enfiam algumas moedas ou alimentos. À noite, eles dão uma volta pelos "maquis", os restaurantes locais, para recuperar os restos. Não raro a colheita é abundante: ninguém morre de fome em "Uaga". Os talibês têm a sorte de despertar de vez em quando a piedade, diferentemente das outras crianças de ruas, as quais são consideradas - nem sempre erradamente, aliás - como ladrões e drogados. Estes são chamados de "bacoramans" em Uagadugu, e de "fakhman" em Dacar.
Mais a leste, a capital do Senegal não é poupada por essas crianças errantes. Elas são vistas nos sinais vermelhos, nas encruzilhadas, perto dos restaurantes, vestindo farrapos, enquanto a sarna ou todo tipo de micose corroem os seus membros e seu crânio, não raro raspado. Em muitos casos são migrantes, oriundos do campo ou dos países vizinhos. Segundo a Unicef, 45% dessas pequenas vítimas são das etnias Peul e Toucouleur; mais da metade é proveniente da Guiné-Bissau e 26% de Casamance. Nesta população, 60% dos marabutos (sacerdotes islâmicos) corruptos que operam na capital senegalesa vêm da Guiné-Bissau. Não raro eles afluem para a cidade, acompanhados pelos seus talibês. Dacar é difícil. Os bandos que a povoam são mais violentos do que aqueles de Uagadugu. Mas os crimes que eles aprontam são os mesmos. Ali, os daara, os estabelecimentos corânicos, estão instalados já faz muito tempo. Por muito tempo eles constituíram um ramo alternativo ao sistema educativo oficial, uma herança da colonização francesa.
Duas confrarias religiosas, os mourides e os tidjanes, dividiam entre si as formações, que passavam pela alfabetização em árabe, o ensino do Alcorão e dos seus valores, e uma formação profissional. A mendicância, mesmo que sempre tivesse havido um debate doutrinal sobre o ensino da sua prática, e mesmo se certas escolas a rejeitassem, fazia parte deste ensino, com o objetivo de ensinar a humildade às crianças: eles deviam passar uma hora por dia indo de casa em casa e trazer de volta algo para comer. Uma hora por dia... Atualmente, a maior parte dos talibês errantes em Dacar se dedica a mendigar de seis a dez horas. "A sua presença é a prova de uma perda de rumo do ensino corânico. Ela é também, e infelizmente, a conseqüência de um desmoronamento muito forte da solidariedade familiar africana", comenta com despeito um assistente social. "Os parentes enviam as suas crianças para as daara, quase sempre sabendo o que espera por elas".
Durante os anos 1970, algumas daara começaram a se instalar na cidade, para onde o êxodo rural empurrava muitas famílias. A grande onda de seca de 1975 acelerou o fenômeno. Muitos marabutos, geralmente alheios às confrarias, começaram a abrir escolas, as quais não demoraram a se revelar perfeitamente indignas. A mendicância nelas se desenvolveu até se tornar o seu principal objetivo. Thierno tem 10 anos. Ele é aluno de uma daara de Dacar. "Foi o meu irmão mais velho que levou para a casa do marabuto. Os meus pais queriam que eu estudasse lá. Eles moram em Guiné Conakry, e nos enviaram para tentar a nossa sorte em Dacar". À noite, Thierno dorme no mercado de Sandanga, o grande mercado da cidade, uma toca de traficantes onde os policiais com freqüência intervêm com violência. De manhã, ele mendiga; depois, às 14h, ele vai para a sua daara, onde tem aula de Alcorão até as 17h. Então, ele retorna para as ruas. Se ele conseguir trazer 350 francos, ele é autorizado a comer na escola. De vez em quando, o professor lhe dá comida fiado. Mas ele precisa compensar no dia seguinte aquilo que ele não ganhou na véspera.Algumas escolas têm cerca de sessenta alunos: a 300 francos por dia e por talibê, a relação custo-benefício é mais que boa... "O meu pai quer isso, então eu fico", suspira, apertando contra a sua barriga a lata de conserva onde uma boa alma colocou três colheradas de arroz e um pouquinho de frango. Às sextas-feiras, dia de orações, é preciso trazer 525 francos CFA (R$ 2,13). Para compensar os dias em que nada dá certo, Thierno tem a sua "banqueira": uma mulher do mercado de Sandanga, uma vendedora de frutas que guarda para ele o seu dinheiro nos dias em que ele tem "demais", e que lhe devolve nos dias em que ele não consegue o suficiente.Caso ele nada trouxer, ele é surrado. Ou castigado. Foram publicadas fotos que chocaram a muita gente; elas mostravam crianças acorrentadas pelos pés. "Certa vez, eu não tinha feito as minhas lições; eu fiquei acorrentado todas as noites durante várias semanas", conta Bassirou, 15 anos, que fugiu da sua daara e, desde então, vem errando pelas ruas da capital.
Esta exploração está começando a mexer com as multidões. No Senegal, o grande escritor Cheikh Hamidou Kane, autor de "A Aventura Ambígua" (1961), um famoso romance africano que conta, entre outros, a juventude do romancista numa daara onde o marabuto não estava para brincadeira, decidiu defender os talibês. Uma associação foi criada, a Parrer (Parceria para a retirada e a reinserção das crianças de rua), que reúne intelectuais, homens de negócios, responsáveis de organizações e chefes religiosos, com o objetivo de pôr fim ao escândalo das crianças de ruas e àquele dos talibês mendigos.
Em 10 de outubro de 2006, um "conselho presidencial sobre as crianças de ruas" chamou a atenção para o problema, e estabeleceu conexões entre ele e um "documento de estratégia de redução da pobreza" elaborado em 2002. "Durante 18 meses", explica o escritor, "nós vamos testar diversos módulos de inserção dessas crianças: pode ser ajudar as famílias pobres em meio rural, ou ainda ajudar os marabutos a melhorarem as daara. É preciso insistir nesta função dos chefes religiosos na modernização das escolas corânicas". Então, ele volta a sua cólera para outros. "Em minha opinião, os pais são os principais responsáveis".Pais esses que nem sempre sabem o que está acontecendo. Em Dacar, o pronto-socorro social de vez em quando traz crianças talibês fugitivas de volta para a sua casa. É o caso de Barafa. Ele mora em Touba, uma cidade religiosa que está se tornando a segunda cidade do país. Com toda a sua boa-fé, o seu pai e a sua mãe entregaram Barafa a uma escola de Gossas, uma aldeia próxima a Touba. "Ele precisava aprender o que é realmente o Alcorão para tornar-se um homem", diz o pai. Barafa aprendeu, sobretudo, a lavrar as terras do seu professor. Cansado, ele partiu para Dacar, caminhando dezenas de quilômetros a pé até alcançar a capital.
Hoje, acabam de reconduzi-lo para a sua casa. Ele foi difícil de convencer. No carro, ele fica encolhido, em silêncio; os seus olhos inquietos devoram uma paisagem que ele conhece bem demais. A sua mãe não ousa beijá-lo. O pai olha para ele, sentado num canto, cabisbaixo, teimoso. É preciso praticamente forçá-lo para que ele se decida a falar, e então ele começa aos poucos a contar, a dizer o que lhe dá na telha. Os seus irmãos e irmãs, preocupados, dão uma olhada pela porta aberta. Eles decidem que Barafa ficará por um tempo em casa, e depois tentará acompanhar as aulas de uma outra daara, em Touba, desta vez um estabelecimento sério. Ele conseguiu sair da sua encrenca. Segundo estimativas, existem 8.000 talibês mendigos que erram pelas ruas de Dacar.
Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 09/09/2007]

Após 20 anos, vítimas do césio ainda enfrentam preconceitos

Moradores da área em Goiânia atingida por radiação dizem ser alvo de perguntas constrangedoras
Parte dos vizinhos do local onde a cápsula foi aberta recebe atendimento médico e pensão, mas maioria não foi reconhecida como vítima
Felipe Bächtoldda

Vítimas do acidente com o césio-137 em Goiânia, que completa 20 anos nesta semana, dizem que até hoje sofrem preconceito na cidade pelo envolvimento na tragédia.
Em 13 de setembro de 1987, catadores de sucata violaram a cápsula de material radioativo que era usada em aparelhos de um instituto de radiologia, na época abandonado, e contaminaram parentes e vizinhos. Quatro pessoas morreram nas semanas seguintes e milhares foram expostas à radiação.
Moradores da região onde a peça foi manuseada e policiais que trabalharam na operação dizem que não falam sobre o assunto para evitar olhares assustados e perguntas sobre riscos de contágio. Um policial militar que atuou no resgate diz que "quem fala que é vítima não arruma namorada".
O ex-motorista de ônibus Odesson Alves Ferreira, 52, que passou dois meses em um hospital na época do acidente, afirma que costuma ouvir perguntas como: "Se eu tocar em você, vou me contaminar? Você ainda emite radiação?". Ele é irmão do dono do ferro-velho que comprou a cápsula para vender como sucata.O contato com vítimas do acidente não oferece risco, segundo médicos. Mas moradores do bairro onde ocorreu a tragédia, o Setor Aeroporto, dizem que a região passou anos sendo evitada. Parte do comércio fechou as portas. Vizinhos tentaram vender os terrenos.
O ferro-velho da rua 26-A, considerado o epicentro da tragédia, foi destruído logo após o acidente. A área, que até há dois anos funcionava como um estacionamento, agora está vazia.
A Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) ainda monitora os focos de contaminação. Segundo o órgão, os terrenos atingidos pelo material emitem até 10% do máximo de radioatividade tolerável. Apesar disso, uma goiabeira que cresceu na área atingida foi derrubada há sete anos por dar frutos contaminados.Famílias que moram na vizinhança da rua 26-A vivem realidades distintas. Parte é reconhecida pelos governos federal e estadual como vítimas do acidente e recebe pensão e assistência médica, mas a maioria não obteve os benefícios.
A estudante Merielli Chapadense, 26, tem 19 parentes entre os pensionistas reconhecidos como vítimas vitalícias. Na época com seis anos, diz que seus brinquedos foram tomados por técnicos que consideraram contaminados os objetos da casa. Ela diz sofrer seqüelas como problemas de ansiedade.
Já a família da prima e vizinha de Merielli, Lorena da Silva, 23, não foi considerada vítima e não conta com acompanhamento médico. Moradora na rua onde a cápsula começou a ser desmontada, ela diz que familiares têm problemas de saúde. "Tentamos a Justiça, mas não conseguimos nada".
Cerca de 230 pessoas são beneficiadas com pensões, de acordo com o governo estadual.
No órgão criado pelo governo do Estado para atender as vítimas, a Superintendência Leide das Neves, há pelo menos 1.500 processos de pessoas pedindo o reconhecimento como vítimas. A entidade diz que tem dificuldade para analisar com agilidade os pedidos. Quem recebe pensões federal e estadual ganha R$ 880 por mês.A maioria dos bombeiros e policiais militares que participaram dos trabalhos de isolamento da área, onde ocorreu a tragédia em 1987, e de ajuda às vítimas possui seqüelas físicas, segundo a Associação de Militares Vítimas do Césio.
Uma sindicância que tramita na PM mostra que, de um grupo de 208 pessoas que trabalharam no local, 205 apresentam seqüelas - como alergias e problemas ósseos e estomacais. Oito policiais já morreram.
O secretário da associação, Santos Manoel de Almeida, diz que os policiais atuaram no local com a farda comum -sem equipamentos de proteção. Dos cerca de 600 PMs e bombeiros da operação, 120 foram reconhecidos como vítimas e recebem pensão do Estado.

[Folha de São Paulo, 09/09/2007]

A cura para Jeca Tatu

Historiadora traça panorama da eugenia em todo o mundo e descreve a tentativa de criação de uma nova raça brasileira, no começo do século 20
Giovana Girardi

Em 2228, os Estados Unidos se depararão com o problema racial mais forte de toda sua história -a eleição do seu primeiro presidente negro. Os brancos vão se rebelar e, ao final, esterilizar inteiramente a raça negra. O que parece o plano mirabolante de algum grupo neonazista é na verdade o roteiro surreal de um livro publicado nos idos da década de 1920 por Monteiro Lobato.
O pai do bonzinho sertanejo Jeca Tatu, que orientou crianças de todo o Brasil a evitar a contaminação por vermes, tinha propensões bem menos nobres - ou pelo menos assim podem ser consideradas quando vistas por olhos escaldados pelas crueldades da Alemanha nazista. Na época, o pensamento da elite intelectual era outro.
Lobato considerava seu livro "Choque" um "grito de guerra pró-eugenia" que serviria para espalhar noções de limpeza. "Precisamos vulgarizar essas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha", escreveu.
Essa é uma das histórias contadas pela historiadora Pietra Diwan em seu livro "Raça Pura", que será lançado nesta semana. Especialista no assunto, Diwan estréia com a proposta de contar a história da eugenia e as relações entre os conceitos científicos e o poder.
Ela traça um panorama sobre como o assunto nasceu na Inglaterra do final do século 19, se fortaleceu nos Estados Unidos e se espalhou por toda a América no começo do século 20, até cair em descrédito com os abusos dos campos de concentração na 2ª Guerra.Quem pensa que a idéia de limpeza étnica saiu da cabeça perturbada de Hitler tem uma bela chance, nesse livro, de aprender que a história é bem mais complexa. Entender os princípios eugenistas ajuda a compreender inclusive os ideias de beleza e perfeição que temos até hoje, como sugere Diwan em seu prefácio.
Quando o médico inglês Francis Galton inicialmente propôs a idéia de eugenia, em meados do século 19, ele se inspirava nas teorias de seu primo Charles Darwin, que recém havia lançado a "Origem das Espécies". Ao propor a melhora da raça humana, ele o fez sob o ponto de vista biológico.
Desculpa naturalOs eugenistas sempre se valeram da teoria da seleção natural para embasar suas idéias: se na natureza, os mais fortes e mais aptos prevalecem, por que, entre os seres humanos, nos esforçamos para melhorar as condições de vida dos mais fracos e menos aptos? Muito mais natural -literalmente- seria não brigar contra seu destino inevitável.
Essa "aceitação", escreve Diwan, foi interpretada de pelo menos duas maneiras: eugenia positiva e negativa. Na primeira ocorria, digamos assim, uma atitude mais "light.Seus defensores estimulavam o casamento entre os "bem-dotados biologicamente", desenvolviam programas educacionais para a reprodução consciente de casais saudáveis e desencorajavam a união de casais com traços "inferiores". Nos Estados Unidos, por exemplo, era concorridíssimo o concurso "Fitter Families", no qual famílias eram julgadas de acordo com seu estado mental, emocional, físico e intelectual. As vencedoras recebiam a "medalha da boa herança", que trazia a inscrição: "Sim, eu tenho uma boa herança".
O problema foi o lado B dessa onda. A eugenia negativa postulava que a inferioridade é hereditária e a única maneira de livrar a espécie da degeneração seria pela da esterilização em massa (consentida ou não) e da segregação em guetos e sanatórios, conta a historiadora. Daí para os abusos foi um pulo.

Doutor Arnaldo
A metade final do livro conta como esse processo se desenvolveu no Brasil. A autora mostra, por exemplo, que nos quadros da Sociedade Eugênica de São Paulo estavam nomes importantes da medicina paulista da época, como Arnaldo Vieira de Carvalho (o dr. Arnaldo, que fundou a Faculdade de Medicina, hoje da USP) e Franco da Rocha (que fundou o Hospital Psiquiátrico do Juqueri).
Monteiro Lobato foi um dos ícones do movimento. Seu Jeca Tatu foi pensando originalmente como uma crítica ao sertanejo, descrito como "este funesto parasita da terra, seminômade, inadaptável à civilização". Jeca só passou de "culpado a vítima", como escreve Diwan, quando virou garoto-propaganda do biotônico, que curaria todos os pobres e desnutridos do país.

LIVRO - "Raça Pura" Pietra Diwan; ed. Contexto; 160 págs; R$ 29.

[Folha de São Paulo, 09/09/2007]

Ginzburg atualiza o antiquário

Historiador reúne em um só volume, O Fio e os Rastros, 15 ensaios cheios de surpresas e revelações
Elias Thomé Saliba

Depois do dramático ataque de setembro de 2001, entrou em decadência aquele modismo pós-moderno de propalar que a realidade não existe e que tudo é criado pela linguagem. Hoje, os ventos da moda parecem soprar noutra direção e “pós-moderno” transformou-se numa espécie de etiqueta identificando uma caixa dentro da qual jogamos todas as coisas, boas ou más, que não mais conseguimos encaixar ou classificar. “Não devemos partir das boas velhas coisas, e sim das más coisas novas.” Esse famoso conselho, dado por Brecht ao seu amigo Walter Benjamin, serve de oblíqua inspiração para o historiador Carlo Ginzburg em O Fio e os Rastros, coletânea dos seus mais importantes ensaios dos últimos 15 anos. Ginzburg concorda com Hobsbawm quando, num diagnóstico de 2002, o historiador marxista dizia que o maior perigo político imediato para a historiografia era o antiuniversalismo, ou seja, a convicção de que, independentemente das provas apresentadas, a minha verdade vale tanto quanto a sua. Mas Ginzburg também observa que a liquidação do pós-modernismo (como moda que aflorou marginalmente à historiografia) foi rápida e apressada: é necessário que o historiador aborde as relações entre a ficção e a realidade, desbravando aquele terreno fronteiriço que tanto incomoda os céticos pós-modernos, pois ele implica a realidade: o terreno do falso, do não autêntico, do fictício que se faz passar por verdadeiro.
Sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas, imagens, narrativas, fábulas e até pistas falsas - não importa, contra a afirmação de que “tudo é texto”, Ginzburg vasculha e lê tudo a partir de sua própria ótica, que é a de um antiquário atualizado, arguto e sensível, investigando os rastros de realidade que todos os testemunhos da história deixam atrás de si. Mas são muitos os rastros, poucos os fios, e não é nada fácil para o leitor acompanhar Ginzburg nas estreitas veredas que ele abre: da conversão dos judeus de Minorca no século 5º à redescoberta dos xamanismo pela cultura européia, são 15 ensaios cheios de revelações e surpresas, que percorrem os mais variados e surpreendentes temas.
Um dos fios talvez seja o de verificar como um procedimento narrativo, o estranhamento, foi utilizado conforme a teia de significados culturais tecidos em diferentes épocas. Como na fábula de Voltaire, o Diálogo entre Um Capão e Uma Franga, em que um costume trivial (comer aves) que a maioria de nós acha natural é de repente desfamiliarizado: o distanciamento intelectual cria no leitor uma repentina identificação emotiva e a fábula abre a possibilidade de se ampliarem os limites da tolerância até incluir os animais. E a franga diz ao capão: “Por que o desejo de comer petiscos refinados pode justificar uma mutilação tão feroz?” No rastro dos formalistas russos, sendo o primeiro de todos Chklóvski, aprendemos a procurar o estranhamento no olhar do selvagem, da criança, ou até mesmo do animal: seres estranhos às convenções do viver civilizado, que registram com olhar perplexo ou indiferente, denunciando, assim, indiretamente, a insensatez das coisas. Para Ginzburg, Voltaire serviu-se desse procedimento literário para exprimir a irrelevância das diferenças religiosas. Mas, perseguindo o rastros dessa fonte, o historiador italiano retroage a Swift, a Montaigne, ou a uma narrativa escrita por Chapelain no século 17 - a qual acaba remontando ao romano Marco Aurélio! Um exagero que não chega a comprometer o todo, mas exemplifica a idéia de que qualquer inovação, em qualquer área, sempre constrói de trás para a frente a sua genealogia.
De qualquer forma, quando insere um testemunho ou texto num contexto documental mais vasto, ou quando demonstra como um autor despista os seus leitores através de pistas falsas ou confissões autoconsoladoras, Ginzburg é inigualável. Em Stendhal, a técnica narrativa do discurso direto livre fornece voz ao isolamento e à ingênua vitalidade de personagens derrotados por um processo histórico que os leva de roldão e humilha todas as suas ilusões. Mas é um procedimento vedado aos historiadores, porque o discurso direto livre, por definição, não deixa rastros documentários. Ginzburg trabalha nessa zona desconhecida, situada aquém do conhecimento histórico e inacessível a ele. Ainda assim, mostra como os procedimentos narrativos funcionam como campos magnéticos: provocam novas indagações e atraem documentos potenciais.
Ginzburg investiga ainda as relações entre os famigerados Protocolos dos sábios de Sião e o livro obscuro no qual teriam se inspirado - o Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, escrito pelo francês Maurice Joly em 1864. E nos fornece uma demonstração rigorosa, de como uma refinada parábola política se transforma em tosca falsificação. Demonstração tão rigorosa que faz lembrar o ríspido veredicto de Adorno sobre as “falsidades que são necessárias”, pois, afinal, o que o mundo mais deseja “é ser enganado”.
Já no ensaio mais engajado, dedicado a Primo Levi, Ginzburg analisa o papel das testemunhas narrativas da memória do Holocausto. Aí os rastros conduzem a uma polêmica direta com Hayden White e, indireta, com o próprio Jean-François Lyotard. White havia sustentado que o ceticismo e o relativismo históricos podem proporcionar as bases cognitivas e morais da tolerância. Ginzburg mostra como tal pretensão é insustentável: na história, a tolerância sempre foi teorizada por indivíduos que tinham fortes convicções intelectuais e morais; e o ceticismo absoluto entraria em contradição consigo mesmo se não fosse estendido também à tolerância como princípio regulador. Mas Ginzburg termina num rastro ainda mais provocador, quase incendiário: o argumento que liga a verdade à eficácia atrai inevitavelmente não a tolerância, mas o seu oposto - o juízo fascista de Giovanni Gentile sobre o porrete como força moral.
Estimulado e deflagrado pelo seu livro mais famoso, O Queijo e os Vermes, Ginzburg também retorna, num dos ensaios mais brilhantes do livro, ao debate sobre a micro-história, no qual ele analisa os rastros deixados pelo último e inacabado livro de Siegfried Kracauer, História: As Últimas Coisas antes das Últimas. Até Kracauer falou em micro-história, assinalando que a discrepância entre micro e macro não era apenas uma questão de gosto ou escolha pessoal, mas um dilema cognitivo real dos historiadores. Inspirado em Marc Bloch, Kracauer só enxergava a solução num vaivém contínuo entre micro e macro - ou, para usar a linguagem do cinema que ele tanto prezava, entre close-ups e long shots. Única solução capaz de colocar em debate a visão conjunta da história por meio de exceções aparentes e elementos singulares.
Mas os rastros ainda conduzem Ginzburg ao Tolstoi de Guerra e Paz, que já dizia que um fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da atividade de todas as pessoas que dele participaram. E quando o leitor pensa que os rastros terminaram aí, Ginzburg descobre novas pegadas no quadro Batalha entre Alexandre e Daria à beira do Isso, pintado por Albrecht Altdorfer, em 1529. O pintor escolheu um ponto de vista altíssimo e distante, comparável ao de uma águia voando, sugerindo que nenhum olho humano conseguiu focalizar ao mesmo tempo a especificidade histórica de uma batalha e a sua irrelevância cósmica. Porque uma batalha é, a rigor, invisível, como nos recordam (e não só por efeito da censura militar) as reportagens da TV durante a Guerra do Golfo. Só um diagrama abstrato ou uma imaginação visionária como a de Altdorfer podem comunicar uma imagem inteira. Ginzburg considera lícito estender essa conclusão a qualquer acontecimento histórico: é só o olhar aproximado que nos permite captar algo que escapa à visão de conjunto e vice-versa.
Ginzburg poderia ser definido como um historiador que rejeita o rótulo de pós-moderno, mas não se exime de penetrar na floresta cética e subjetivista dos pós-modernos para melhor conhecer seus desafios. Em O Fio e os Rastros ele vai à caça apanhando o que há de melhor nas duas tendências. E mostra, afinal, que a melhor historiografia - para não falar da cultura em geral - está situada muito além de todas as etiquetas e rótulos.


[O Estado de São Paulo, 09/09/2007]

Download do livro "Direito à Memória e à Verdade"

O livro "Direito à Memória e à Verdade" lançado quarta feira (29/08), pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos está disponível para donwload em formato PDF.

Livro "Direito à Memória e à Verdade" provoca polêmica no Brasil

A condenação oficial da repressão durante a ditadura revolta o exército

Bernardo Gutiérrez, no Rio de Janeiro
Mal-estar, indignação e até raiva. O livro "Direito à Memória e à Verdade", uma contundente condenação oficial do governo brasileiro à ditadura, provocou irritação no exército. O livro, que foi apresentado pelo próprio presidente Lula em Salvador, foi recebido pelos militares como uma provocação. As forças armadas chegaram a acusar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ser partidarista e de ter financiado um documento elaborado por "criminosos políticos".
O governo Lula argumenta que o livro é fruto de 11 anos de trabalho da Secretaria de Direitos Humanos e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, constituída em 1995 para elucidar as mortes e desaparecimentos ocorridos entre 1961 e 1988. "Direito à Memória e à Verdade", aplaudido por partidos de esquerda, pela sociedade civil e por diversas instituições e ONGs, inclui um minucioso estudo sobre 339 mortos e desaparecidos registrados pela comissão. Além disso, lembra os 136 nomes de vítimas que o governo Fernando Henrique Cardoso já reconheceu na lei 9.140 de 1995. O livro, segundo o próprio governo Lula, é o maior esforço desde a instauração da democracia para se restaurar a memória histórica.
O atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, acompanhou Lula na apresentação do livro. No entanto, nenhum comandante do exército estava presente. O desencontro foi tal que o comandante-em-chefe do exército, general Enzo Martins, afirmou que não enviaria representante ao ato de lançamento do livro. Os militares afirmam que o texto é partidarista e que não se ajusta à realidade, entre outras coisas porque Paulo Vannuchi, secretário de Direitos Humanos da Presidência, foi militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), a principal organização da luta armada contra o regime militar no final da década de 70.
Vannuchi defende que as famílias das pessoas torturadas que mais tarde se suicidaram também recebam indenizações. Os militares, por sua vez, acusam os autores do documento de ter um objetivo: "Aumentar ainda mais a indústria da indenização de criminosos políticos".
Delfim Netto, que ocupou vários ministérios durante a ditadura, afirmou que "há certas dúvidas de que seja verdade o que é publicado nele". Em troca, Frei Betto, conhecido opositor à ditadura e ex-aliado de Lula, afirmou no jornal "Folha de S.Paulo" que "a memória histórica brasileira sofreu tentativas de apagamento" e que o livro não é "um ato de vingança, mas de justiça".
Para Cecília Coimbra, presidente do grupo Tortura Nunca Mais, o texto "é apenas um pequeno passo para o esclarecimento do que ocorreu durante o regime militar". Sua organização luta há anos sem sucesso pela abertura total dos arquivos militares. Essa abertura provocou uma das grandes polêmicas do país e, apesar do clamor popular e internacional, as iniciativas nesse sentido se chocaram com os militares. O governo do Rio Grande do Sul foi o único que abriu seus arquivos e inclusive realizou uma exposição sobre a repressão política em Porto Alegre.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[La Vanguardia, 31/08/2007]