Morre aos 94 anos o diretor de cinema Michelangelo Antonioni

O diretor de cinema italiano Michelangelo Antonioni, 94, morreu na noite desta segunda-feira [30/07/2007], em Roma. De acordo com a agência italiana Ansa, Antonioni morreu às 20h (15h de Brasília), em sua casa, ao lado de sua mulher, Enrica Fico.
"Com Antonioni desaparece não só um dos nossos maiores diretores, mas também um mestre do cinema moderno. Graças a ele chegaram à grande tela as problemáticas mais duras do mundo contemporâneo, como a falta de comunicação e a angústia", disse o prefeito de Roma, Walter Veltroni.
Antonioni despontou na cinematografia italiana com uma forma original de fazer filmes com "Crimes da Alma" ("Cronaca di un Amore", 1950). Em 1960, rodou "A Aventura", que receberia o Prêmio da Crítica do Festival de Cannes.
Entre suas musas, destacou-se Monica Vitti, estrela de "A Aventura", "A Noite" (1960) e "O Eclipse" (1962).
Em seguida vieram "O Dilema de Uma Vida" ("'Deserto Rosso", 1964) e seu período americano, com "Depois Daquele Beijo" ("Blow-up", 1966), "Zabriskie Point" (1970) e "Profissão: Repórter" (1974).
Outra de suas obras foi realizada com o alemão Wim Wenders, "Além das Nuvens" ("Al di là Delle Nuvole", 1995). O filme se baseia num livro do cineasta italiano.
Com "Blow Up", seu primeiro filme em inglês, recebeu a indicação para o Oscar de melhor diretor. Mas só recebeu a estatueta dourada em 1995, num prêmio por toda a sua carreira.


Veja o trailler da obra-prima (e um de meus filmes favoritos) "Blow Up".





[Folha On-line, 31/07/2007]

Cineasta sueco Ingmar Bergman morre aos 89 anos

O diretor sueco Ingmar Bergman morreu nesta segunda-feira [30/07/2007] aos 89 anos.
Ingmar Bergman morreu hoje na Suécia; confira galeria de imagens A causa da morte não foi divulgada oficialmente pela família, segundo a agência de notícias sueca TT, que confirmou a notícia com a filha do cineasta, Eva Bergman.
Bergman morreu em casa, na localidade de Faro, onde morava.
Em sua longa cinematografia (que ultrapassa os 50 filmes), Bergman foi mestre em levar às telas temas existencialistas. Ao todo, ganhou sete prêmios no Festival de Cannes e dois no de Berlim.
Entre seus longas estão os célebres "Morangos Silvestres" (1957), "O Sétimo Selo" (1957), "Gritos e Sussurros" (1972), "A Flauta Mágica" (1975), "O Ovo da Serpente" (1978) e "Fanny e Alexander" (1982).
Seu último filme como diretor foi "Saraband", rodado inicialmente para a TV. O longa, estrelado por Erland Josephson e Liv Ullman, retoma os personagens de "Cenas de um Casamento" (1973).
Bergman era também dramaturgo. Sobre as duas artes, afirmou: "O teatro é o começo, o fim, é tudo, enquanto o cinema pertence ao âmbito da prostituição".


Trajetória
O diretor nasceu no dia 14 de julho de 1918 em Uppsala, ao norte de Estocolmo, filho de um pastor protestante. Foi educado de maneira severa e austera. Essa formação religiosa marcou seu caráter.
Estudou na Universidade de Estocolmo e aprendeu a arte da direção com um grupo de teatro estudantil, levando para a tela grande obras de Strindberg e Shakespeare.
A partir de 1944, dividiu o teatro com o cinema. Bergman fez seu primeiro filme, "Crise", em 1945.
Em 1976 foi viver na Alemanha devido a problemas com o fisco sueco e em seguida estreou "O Ovo da Serpente", sobre a ascensão do Nazismo.
De volta à Suécia, filmou "Fanny e Alexander", uma obra sobre sua infância e sobre sua paixão pelo espetáculo que recebeu quatro Oscars.
Comandante da Legião de Honra, membro da Academia de Letras da Suécia e reputado dramaturgo, Bergman revelou sua vida privada e profissional nos livros "Lanterna Mágica" (1987), "Imagens" (1993) e "Crianças de Domingo" (1994), adaptado para as telas por seu filho Daniel.
Casado cinco vezes, Bergman teve nove filhos.


Veja um trecho de "O Sétimo Selo"





[Folha On-line, 30/07/2007]

"Para os grupos salafistas, o Iraque é uma terra impura que precisa ser purgada"

Em entrevista, Mohammad Ali Amir-Moezzi, diretor de estudos na Escola Prática de Altos-Estudos (Sorbonne), passa em revista as divergências culturais e religiosas fundamentais das quais são oriundos os grandes conflitos que dilaceram atualmente países do Oriente Médio tais como o Irã e o Iraque.
O xiismo nasceu num contexto de guerras fratricidas. O "batismo do sangue" dos xiitas aconteceu em outubro de 680, na batalha de Kerbala (Iraque), 48 anos após a morte de Maomé. Nesta, que seria relembrada por poetas e sacerdotes ao longo dos séculos, Hussein, neto do Profeta, foi morto e o seu exército massacrado pelos Omíadas, a dinastia que reinava então em Damas, naquilo que seria uma etapa da sua conquista do Oriente Médio.

Le Monde - Será que os atuais enfrentamentos entre xiitas e sunitas no Iraque podem ser considerados como um efeito longínquo de dissensões fundamentais ocorridas em tempos remotos?
Mohammad Ali Amir-Moezzi - Todos os xiitas possuem uma memória coletiva dos massacres em massa que se seguiram à vitória dos Omíadas (meados do século 7 - meados do século 8), àquela dos Abássidas (séculos 8 a 13) e, numa proporção menor, dos Otomanos (séculos 15 a 20). Os xiitas também vão massacrar sunitas no século 16, durante o império safávida do Irã, só que dentro de proporções mais modestas. A tragédia atual no Iraque é considerada pelos xiitas como uma repetição longínqua deste passado de violência.
Esta tragédia deve-se amplamente à influência do salafismo mortífero que se reclama do wahhabismo, este sunismo puro e duro, que é uma religião de Estado na Arábia Saudita, e para o qual os xiitas não passam de heréticos. Os movimentos salafistas e as redes da Al Qaeda estimam que o Iraque, um país onde os xiitas são amplamente majoritários, é uma terra impura que é preciso purgar sem concessões nem clemência.
Le Monde - Será que o seu fascínio pelo martírio faz do xiismo uma religião da resignação?
Amir-Moezzi - Não. As primeiras manifestações de luto em homenagem ao imame (líder espiritual) Hussein ocorreram menos de um século após a batalha de Kerbala. Estas se deram como um sinal de redenção: Hussein foi massacrado porque os seus partidários de Koufa não o socorreram. Portanto, os xiitas devem expiar este pecado original. Mas essas primeiras manifestações não têm a amplidão das procissões de hoje, verdadeiros cultos da dor que ocorrem nas cidades santas xiitas e que, mais recentes, remontam aos séculos 17-18, sob os safavides do Irã.
Dito isso, o xiismo em caso algum pode ser considerado como uma religião suicida. Ele não cultiva nenhum gosto em particular pela morte, mesmo se a memória dos sofrimentos passados nele ocupa um espaço considerável. O xiismo nasceu dentro de um contexto de guerras fratricidas. Ele foi pulverizado em múltiplas seitas (uma centena durante os primeiros séculos do Islã) das quais algumas, principalmente os zaiditas, se revoltaram contra os poderes omíada e abássida. Essas rebeliões foram pretextos para massacres em grande escala. Sem demora, os xiitas passaram a considerar a si mesmos como uma minoria de eleitos perseguidos. Para ilustrar esta tendência, podemos citar o seguinte exemplo: todos os seus imames são considerados como mártires, embora nem todos tenham sido assassinados.
Le Monde - Como explicar a passagem do apolitismo xiita dos primeiros séculos para a revolução khomeinista no Irã (1979)?
Amir-Moezzi - No século 10 - que Louis Massignon chamou de "o século xiita do Islã" -, todas as grandes regiões do império encontram-se sob o domínio dos xiitas: a dinastia buáiida (do nome do califa Ahmad Al-buye), em Bagdá, então o centro do califado. Na região que vai da África do Norte até a Síria, dominam os Fatimidas que fundam Cairo. Os Quarmates reinam sobre a Arábia do Norte, a região do golfe Pérsico e o sul do Irã. O século 10 assiste também ao fim dos imames históricos, à afirmação do imame escondido e ao surgimento da Razão no contexto do Islã.
O corpus doutrinário era dominado pela busca da perfeição individual em Deus e por uma espécie de desprezo pelas obras temporais. Mas, dentro do contexto racional do século 10, os teólogos xiitas da corte dos Buaíidas reinterpretam os hadith (as palavras do profeta Maomé consideradas como ordens a serem seguidas pelos muçulmanos), eliminam aqueles que lhes parecem absurdos e declaram que as tradições que proíbem a atividade política deixam de ser válidas. Um xiita pode apoiar governantes justos. As tendências revolucionárias xiitas no século 20 no Irã situam-se no prolongamento desta tradição racionalista do século 10 que consolidou o papel do doutor da lei.
Le Monde - Será o caso de ver nesta transformação a origem da clericalização do Islã xiita?
Amir-Moezzi - Sim, mas é de uma outra ruptura que se trata. Ela ocorre no século 16 no Irã, depois da ascensão ao poder da dinastia dos Safávidas, campeões da idéia nacional iraniana. Antes dela, o Irã é majoritariamente sunita, mas sempre nutriu simpatia pelo xiismo.O império safávida vai se constituir como uma reação contra o império otomano, sunita, que se considera como o sucessor do califado abássida e faz do árabe e do turco a língua oficial. Frente aos otomanos, o Irã declara, em 1501, o xiismo religião de Estado, faz do persa a língua oficial e cria um clérigo de Estado composto por juristas e teólogos. Um clérigo que se tornará cada vez mais poderoso.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 31/07/2007]

Os segredos do último ajudante vivo de Hitler

Rochus Misch, guarda-costas e operador de telefone de Hitler, é o último membro sobrevivente de seu séquito. Ele acaba de completar 90 anos e está publicando um livro sobre seu tempo com o Führer

Ralf Simon

A coisa mais estranha foi a visão dos dois violonistas na estação de metrô Kaiserhof em Berlim. "Eu saí daquele bunker da morte, de todo aquele drama, e vejo alguém tocando música", lembra Rochus Misch. "Tocavam música havaiana!" Foi em 2 de maio de 1945, às 6 horas da manhã.

Perto do bunker de Hitler, tropas da SS francesa e unidades do exército alemão prolongavam o final da Segunda Guerra Mundial. Misch estava desesperado para sair vivo daquele inferno.

Uma hora antes, Misch, que tinha 27 anos na época, havia terminado seus deveres no bunker de Hitler embaixo da Chancelaria. Ele perguntou a Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda recém-nomeado chanceler do Reich, se havia mais alguma coisa a fazer. "'Herr Reich Chancellor', eu gostaria de sair com o resto dos camaradas", ele disse.

Naquela altura o Exército Vermelho estava a 200 metros de distância do que fora o local de trabalho de Misch nos últimos seis anos. Misch era guarda-costas e telefonista de Adolf Hitler - uma das últimas pessoas a deixar o bunker. Ele sobreviveu a todos. É a última testemunha.

Hoje vive em um apartamento em Berlim. Essa área da cidade parece uma aldeia, os vizinhos se conhecem e se cumprimentam. É uma parte tranqüila do mundo - exceto o apartamento de Misch. Ele se queixa de que seu telefone não pára de tocar e as cartas se acumulam novamente sobre a mesa. Recebe cartas até do Japão, Espanha e EUA. Algumas contêm dinheiro e pedidos de autógrafos. Recentemente ele teve de encomendar mais uma série de fotos, que assina e envia. As fotos mostram Misch de uniforme, na frente de dois bunkers, 65 anos atrás. A guerra não deixa Misch em paz.

Nascido em 1917 no que hoje é a cidade polonesa de Opole, Rochus Misch perdeu os dois pais quando tinha 2 anos. Cresceu com seus avós e trabalhou pintando cartazes de publicidade. Em 1937 entrou para uma unidade que mais tarde se tornou a unidade SS de proteção a Hitler. Ele foi seriamente ferido na Polônia enquanto negociava a rendição de uma posição polonesa. Depois disso começou seu "destino de soldado", como ele diz.

Durante sua convalescença, o comandante da companhia o recomendou para a equipe pessoal de Hitler. Não teve de voltar à frente porque era o único sobrevivente de uma família alemã. Foi colocado em um carro e levado ao "apartamento do Führer" na chancelaria do Reich em Berlim, ele lembra. "Eu tinha medo. Não me façam conhecer o Führer", ele lembra que pensou na época. "O Führer era o Führer para mim, como era para todos os alemães."

"Um cavalheiro perfeitamente normal"
Na primeira vez em que foi apresentado a Hitler, um calafrio percorreu sua espinha. Hitler lhe entregou uma carta para sua irmã em Viena. "Esse foi o primeiro encontro. Ele não era um monstro, não era um 'Übermensch'. Estava ali na minha frente como um cavalheiro perfeitamente normal e disse palavras gentis", diz Misch.

Misch teve muitos desses momentos e fala sobre eles há anos. Muitas vezes cita as mesmas frases, como fica evidente ao se comparar as entrevistas que deu. Fala sobre eles para turistas japoneses que aparecem em sua casa sem avisar e para jornalistas locais e internacionais. O ex-chanceler Willy Brandt certa vez o visitou, ele lembra, além de muitos cineastas. Mas Misch nunca fala sobre o último segredo que cerca os dias finais no bunker.

Cada minuto daqueles últimos dias está registrado - tudo exceto quem atirou em Hermann Fegelein, o general da SS casado com a irmã de Eva Braun. Fegelein era o oficial de ligação de Heinrich Himmler com Hitler e deixou o bunker sem permissão em 27 de abril. Preso em seu apartamento em Berlim, o general da SS foi executado em 29 de abril. Misch diz que sabe quem puxou o gatilho, mas não revela sua identidade, apesar de ele já estar morto. Diz que Hitler não mandou matar Fegelein, ao contrário da afirmação do falecido historiador Joachim Fest. Apenas o rebaixou.

Eva sentada morta no sofá
Misch prefere falar sobre Hanna Reitsch, a piloto que queria voar para fora de Berlim com os seis filhos de Goebbels. Ele diz que Goebbels queria salvar as crianças, mas sua mulher, Magda, exigiu que elas morressem em lealdade a Hitler. Depois que todas foram mortas ela jogou baralho.

Ele lembra de ver Eva Braun sentada morta no canto do sofá, com a cabeça inclinada para Hitler, "os joelhos encolhidos junto ao peito. Ela usava um vestido azul-marinho com uma renda branca na gola".

Nas primeiras horas de 2 de maio de 1945, o trabalho de Misch terminou. Goebbels o dispensou com as palavras: "Nós soubemos viver, também saberemos morrer". Misch destruiu o sistema de telefone e deixou o bunker por uma janela do porão.

Antes disso, despediu-se do técnico Johannes Hentschel, que ficou porque queria manter o fornecimento de água e eletricidade para o hospital do bunker.

Misch foi capturado no que é hoje a estação de trens Nordbahnhof em Berlim. Entre os outros prisioneiros estava o piloto pessoal de Hitler, Hans Baur, que foi seriamente ferido. Misch cuidou de Baur, mas este contou a seus interrogadores russos onde Misch havia trabalhado. Por isso Misch foi levado para Moscou, onde foi interrogado e torturado. Ficou tão ferido que mandou uma carta para Lavrentiy Beria, o chefe do serviço de segurança NKVD, pedindo para ser executado. Depois de oito anos de prisão em campos no Cazaquistão e nos Urais, ele conseguiu voltar a Berlim em 1953. Instalou-se em Berlim ocidental e assumiu a empresa de pinturas de um amigo. Trabalhou lá até se aposentar.

Misch escreveu um livro sobre suas experiências durante a era nazista, que já foi publicado na América do Sul, Japão, Espanha, Polônia e Turquia, e deverá sair na Alemanha neste outono. Intitula-se "Eu Fui o Guarda-Costas de Hitler".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[Der Spiegel, 31/07/2007]

A arma de guerra chamada Barbie

Por Paula Sibila

A boneca criada em 1958 é pioneira na configuração de um modelo corporal que talvez seja o mais tirânico da história ocidental
Uma temporada após a outra, desfiles de moda acendem seus holofotes nas mais diversas cidades do mundo. Olhos fascinados (ou entediados) assistem aos vaivéns das passarelas, onde as modelos que servem de “cabide para as roupas” costumam despertar mais curiosidade que as extravagantes vestes em exibição.O corpo das modelos exerce um magnetismo não isento de polêmicas, tais como os escândalos e burburinhos ligados à anorexia, mas seu brilho nunca diminui. Elas continuam atraindo os olhares, surpreendentemente idênticas umas às outras, e todas muito diferentes das comuns mortais que as admiram em silêncio -e que gostariam de se parecer com elas. Exércitos de mulheres de todas as procedências querem copiar esses corpos-modelos que tanto se assemelham entre si, como numa clonagem universal de um protótipo que há décadas permanece incólume: a Barbie.
Embora já esteja ficando quase velha, essa boneca esguia e eternamente jovem continua sendo o ícone de um padrão de beleza dos mais insistentes. Tendo habitado a infância das meninas do mundo inteiro há quase meio século, a Barbie tornou-se um verdadeiro clássico na imposição das leis do “corpo bom” em nossa sociedade. Todo um baluarte pedagógico, a famosa boneca é uma pioneira na configuração de um modelo corporal que provavelmente seja o mais tirânico da história ocidental.
Pois as medidas da Barbie são humanamente impossíveis: se os 29 cm de plástico oco que a conformam fossem transformados em carne feminina, para conservar as proporções de sua silhueta curvilínea demandariam uma altura de 2m13 e as seguintes medidas de busto, cintura e quadris: 96-45-83 cm.
Os cálculos indicam que uma mulher com essa contextura pesaria menos de 50 kg, portanto não possuiria a quantidade de gordura corporal suficiente para ter ciclos menstruais regulares e não conseguiria nem sequer andar. Isto significa que até mesmo as modelos que mais aproximam seus corpos dessa imagem ideal ainda permanecem longe da “boneca perfeita”. As medidas habituais das profissionais da passarela são 1m75 de altura e os clássicos 90-60-90.
Quanto às mulheres “reais”, a meta está bem mais longe dessa harmonia numérica: para ter as formas da Barbie, uma mulher ocidental de porte médio deveria esticar sua altura corporal em 40 cm, extrair uns 25 cm da sua cintura e uns 20 cm dos quadris e, além disso, acrescentar mais alguns centímetros nos seios.Há, ainda, um dado bombástico: em 1958, quando a esposa do dono da empresa Mattel teve a idéia genial de fabricar esse novo brinquedo, o design da Barbie foi encomendado a um especialista com um currículo expressivo. Trata-se de Jack Ryan, um engenheiro, que antes de chefiar o departamento de pesquisa e desenvolvimento da Mattel, também trabalhou para o Pentágono e para a empresa Raytheon, fabricante de equipamento bélico.
Nesse emprego anterior, o engenheiro foi responsável pelo design dos mísseis Sparrow e Hawk. Sabe-se que os brinquedos nunca são artefatos neutros ou “inocentes”; ao contrário, eles propõem “estilos de vida” capazes de influenciar uma geração inteira -ou várias, como é o caso da bem-sucedida boneca norte-americana. Nesse sentido, a Barbie não é uma trivial mercadoria, e tampouco é apenas uma boneca. Ela é, sobretudo, um tipo de corpo: um poderoso modelo corporal que com ela nasceu e com ela ainda se desenvolve. Ela é, aliás, uma verdadeira arma de guerra, cujo efeito consiste na radiação do “corpo perfeito” por todos os cantos do planeta.
A história da Barbie é muito eloqüente. Ela foi a primeira boneca cujo corpo ousou imitar as formas de uma mulher adulta, enquanto os brinquedos mais tradicionais destinados às meninas sempre reproduziram a figura do bebê ou de uma criança. “Be anything”, promete o slogan da Barbie: seja o que desejar, você é livre para inventar seu próprio destino, pode escolher o tipo de trabalho que irá desempenhar quando for adulta. Faça o que você quiser, desde que a sua aparência seja como deve ser; isto é, o mais parecida possível com a boneca impossível.
Pois a Barbie encarna duas tendências aparentemente contraditórias: por um lado, ilustra a ampliação da autonomia e das liberdades de escolha para as mulheres; por outro lado, também representa a ardilosa transformação do corpo em uma mercadoria que deve ser constantemente aperfeiçoada. Duas tendências que se aprofundaram nas últimas décadas, e não há dúvidas que a própria Barbie contribuiu para sua expansão. Por isso, quando as meninas crescem e não conseguem atingir nem o sucesso e nem o talhe prometidos na infância, costumam recorrer a consolos mais acessíveis para aliviar suas frustrações: as modelagens do bisturi, por exemplo, ou então os antidepressivos -que um jargão mais antiquado chamaria de barbitúricos.
Não deixa de ser significativo, portanto, que esta altíssima loira de silicone tenha sido lançada em 1959, prenunciando não apenas a “liberação feminina” que logo viria, mas também a popularização das modelos hipermagras que seguiram o exemplo da manequin Twiggy. Com suas inéditas medidas enxutas e sua aparência “desnutrida”, essa modelo britânica escandalizou o mundo quando apareceu pela primeira vez nas páginas da revista “Vogue”, em 1965.
No entanto, apesar das convulsões iniciais, suas formas descarnadas logo conquistaram tanto o público como os mercados, e hoje nem suas medidas nem seu aspecto causam espanto algum. Ao contrário, parecem perfeitamente “normais”. Tanto, que seria difícil identificar a magricela Twiggy se ela desfilasse em qualquer “fashion week” do planeta.
Na época do seu lançamento, porém, há mais de quatro décadas, até a revista que a descobrira admitiu o choque da novidade que tais formas corporais apresentavam. A “Vogue” viu-se obrigada a publicar a seguinte advertência junto às fotografias: “Suas pernas fazem pensar que ela não tomou suficiente leite quando era bebê, e seu rosto mostra a expressão que deviam ter os habitantes de Londres durante a guerra”.
Paralelamente a estes dois fenômenos emblemáticos -a aparição da Barbie em 1959 e de Twiggy em 1965-, que marcaram os primeiros passos no advento deste novo ideal do corpo feminino, o mundo ingressava em uma nova era. Nesse ambiente transtornado pelas revoltas da juventude e pelas reivindicações feministas, vivenciava-se uma flexibilização da rigidez moral que até então tinha constrangido os relacionamentos e costumes.
Nesse quadro, começava a agonizar a velha “cultura da intimidade”, que teve seu auge no século 19 e na primeira metade do 20, e deu à luz às subjetividades interiorizadas da modernidade. Um mundo, enfim, no qual os sofrimentos eram vivenciados como conflitos interiores (pessoais e privados), muitas vezes provocados pela necessidade de “reprimir” os desejos individuais em face à severa moral vigente.Diante da agonia desse universo, na segunda metade do século passado, começou a despontar um novo regime de constituição das imagens corporais e dos “modos de ser”, um movimento histórico extremamente complexo que ainda está em andamento, e que deslancharia uma crescente exteriorização do eu. Desse processo participaram ativamente aquelas duas personagens femininas: tanto a boneca Barbie como o corpo-modelo cuja linhagem Twiggy inaugurara.
Constantemente se renovam as roupas, os estilos e os incontáveis acessórios que a empresa Mattel comercializa há 48 anos sob a lucrativa marca Barbie, mas a silhueta da boneca permaneceu praticamente idêntica ao longo de todo esse tempo. Em 1965, suas pernas se tornaram flexíveis; em 1968, o rosto ganhou um aspecto ainda mais jovem, com longos cílios contornando seus enormes olhos azuis. Depois, os cabelos lisos cresceram ainda mais e o corpo ganhou maior mobilidade.Em 1997, quando a moça já era bem mais que uma balzaquiana, os fabricantes resolveram responder às crescentes críticas acerca da influência negativa que estaria exercendo sobre as meninas do mundo inteiro, alastrando um padrão corporal inatingível e contribuindo, dessa maneira, para a “epidemia” de distúrbios alimentares e transtornos da imagem corporal. Assim, nos exemplares mais recentes, tanto a cintura como os quadris da boneca engrossaram levemente, na tentativa de tornar seu corpo um pouco mais “realista”, enquanto os seios foram diminuídos. De todo modo, as mudanças são bastante sutis, e a Barbie continua sendo a Barbie.
A verdade é que o mercado desaconselha alterações mais profundas nessa esbelta figura, que é líder de vendas entre todas as bonecas jamais criadas: somente no ano em que virou quarentona, faturou US$ 2 bilhões. Vendem-se anualmente mais de 100 milhões de exemplares em 140 países: a cada segundo, três meninas deste planeta ganham um novo clone. Mas tais números se referem apenas à marca oficial; esquecendo as incontáveis imitações que, a rigor, cumprem idêntica função. Existe até um dado tão inútil como ilustrativo: se colocássemos todas as Barbies vendidas nos primeiros 30 anos -isto é, apenas até 1989- enfileiradas da ponta das madeixas aos curvos pés, seria possível dar quatro vezes a volta ao mundo. Ninguém pode dizer que seja pouca coisa.
É claro que não se trata apenas de uma mercadoria a mais, porém de um produto intensamente fetichizado. Não por acaso, esta boneca já foi tema de sérios estudos acadêmicos e protagonizou exposições em museus e centros culturais. Sob o nome de “complexo de Barbie”, ainda, conhece-se a síndrome que leva algumas mulheres a recorrer à cirurgia plástica e outras técnicas afins para provocar drásticas mudanças em seus corpos, tendentes a se parecerem com a loiríssima boneca.
Algumas o fazem explicitamente, e chegam a ficar famosas por causa disso: escrevem livros sobre sua cruzada, contam suas experiências na televisão e mostram orgulhosas os resultados. Um exemplo é Cindy Jackson, cujo site na internet dispensa comentários: http://www.cindyjackson.com. Mas não é preciso evocar esses extremos: são inúmeras as mulheres que perseguem essa meta sem explicitá-lo, por isso é tão comum encontrar êmulas anônimas da Barbie andando pelas ruas de qualquer cidade.Como uma prova da vigorosa influência cultural desse modelo, não surpreende que os padrões de beleza vigentes em nossa sociedade tenham mudado radicalmente nos últimos 50a anos. Junto com esses protótipos ideais, também foi se metamorfoseando a silhueta das mulheres reais de todo o planeta. Basta citar apenas um exemplo bastante elucidativo: em 1951, a moça que ganhou o concurso de Miss Suécia media 1m71 de altura e pesava 68,5 kg; pouco mais de três décadas depois, sua colega de 1983 media 1m75 e pesava 49 kg.
Entre uma e outra rainha de beleza escandinava, houve uma verdadeira barbierização dos padrões. Em termos médicos, o índice de massa corporal (IMC) da primeira era de 23,4, um valor que ainda é tido como normal, enquanto o da segunda é de 16, e já está bem aquém do mínimo considerado saudável.As manequins sempre foram magras: algumas décadas atrás, quando ainda não eram celebridades e nem constituíam o sonho que toda menina quer encarnar quando crescer, pesavam 8% menos que a média da população, mas atualmente essa diferença é de 23%. No ano passado, ecoando uma série de notícias trágicas sobre mortes de modelos que sofriam de anorexia (entre elas, a brasileira Ana Carolina Reston), os organizadores da “fashion week” de Madri impediram a participação de todas aquelas profissionais cujo índice de massa corporal fosse inferior a 18. Para uma jovem de 1m75 de altura, esse valor implica um peso de 56 kg.
Proibições semelhantes foram adotadas em desfiles realizados em outros países, mas a decisão foi polêmica e muito criticada, inclusive por alguns médicos, que sublinharam a ineficácia de utilizar apenas um indicador isolado e arbitrário. De todo modo, sabe-se que a grande maioria das modelos atuais ficaria desempregada se a nova regra se generalizasse, pois estima-se que seu IMC oscile entre 17 e 17,5, podendo chegar até 15,6 -quando os parâmetros médicos continuam a indicar que o valor “normal” repousa entre 18,5 e 25.
Confirmando esse brusco emagrecimento e alongamento ocorrido nas últimas décadas, tanto dos padrões corporais considerados ideais como das medidas reais dos corpos-modelo, uma revista afirmou que as medidas de Gisele Bündchen “são perfeitas: 1m79 metro de altura e 54 kg”. Isso implica um índice de massa corporal de 16,85 -portanto, ela também seria banida dos desfiles, caso a nova regra vingasse. Cabe frisar, porém, que o perfil dessa modelo gaúcha se aproxima, bem mais que a maioria de nós, dos padrões propostos pela Barbie; contudo, ela tampouco chega a atingi-los.

Trópico

Plano dos EUA antecipou ação dos militares

Documento, escrito por ex-embaixador em 63, seria seguido por outro, que pede envio clandestino de armas por meio de submarino
"Um Plano de Contingência para o Brasil" foi enviado discretamente aos EUA; hoje, apesar de liberado, não possui cópia eletrônica
SÉRGIO DÁVILA, DE WASHINGTON

Na série de documentos sobre o envolvimento dos EUA no golpe militar de 1964 no Brasil, que o governo norte-americano vem liberando nos últimos tempos e transformando em arquivo eletrônico em respeito a uma lei de liberdade de informação, há um plano que mereceu apenas citação e só pode ser consultado fisicamente, depois de um processo trabalhoso.
Chama-se "A Contingency Plan for Brazil" (um plano de contingência para o Brasil). É de 11 de dezembro de 1963 e foi escrito por Lincoln Gordon, então embaixador dos EUA no país, e Benjamin H. Head (1905-1993), então secretário-executivo do Departamento de Estado. Nele, diplomatas elencam desfechos possíveis para a crise institucional e política do Brasil e sugerem possíveis ações do governo americano.
Uma delas chama a atenção por ser quase uma proposta de ação para os militares revoltosos. Está no item C da página seis, "Afastamento de Goulart por Forças Construtivas", que prevê a "persuasão" para que o então presidente do Brasil, João Goulart (1918-1976), deixe o governo, que o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli (1910-75), o suceda, e que haja uma "tomada militar interina".
Nesse caso, dizia o documento, os EUA deveriam tomar "atitude construtiva e amistosa" em relação ao novo governo. Pois seria o que aconteceria após quatro meses, a partir de 31 de março. As páginas foram enviadas em 6 de janeiro ao conselheiro de Segurança Nacional McGeorge Bundy (1919-1996) e outros funcionários graduados do presidente Lindon Johnson (1908-1973).
Pé de páginaDiferentemente da papelada sobre o período que foi liberada entre 1996 e 2004, esse não foi transformado em arquivo eletrônico. Os originais descansam numa pasta de uma das milhares de caixas da seção de College Park dos Arquivos Nacionais, no Estado de Maryland, vizinho a Washington. São citados pelo título em apenas um documento preparado pelo Departamento de Estado, numa nota de pé de página.
Depois de procurar o documento em três remessas diferentes de mais de quatro dezenas de caixas, a pedido da Folha, um funcionário do arquivo disse "não entender" a confusão. Por fim, na quinta passada, as páginas datilografadas foram achadas e copiadas pelo jornal.
O plano é importante por influenciar o centro de decisões, na Casa Branca, e abrir caminho ao envio de telegrama posterior, de 28 de março, também de Gordon, em que o ex-embaixador pede "entrega clandestina de armas de origem não-americana" a "apoiadores de Castello Branco em São Paulo", por um "submarino não-marcado, à noite", e o deslocamento de "força-tarefa naval".
É a operação "Brother Sam", que será aceita e posta em marcha pelo governo dos EUA, com acréscimos: munição, gás lacrimogêneo, aviões-caças e navios com mísseis teleguiados.
No Brasil, há relato de apenas um historiador, Carlos Fico, da UFRJ, que também achou as sete páginas do "Plano de Contingência", as copiou recentemente e pretende utilizá-las num livro sobre o período. A Folha encontrou o autor do plano, Lincoln Gordon, 93, morando numa casa de repouso perto de Washington. Ele o justificou dizendo que o Brasil "poderia virar uma segunda Cuba".
Segundo os documentos tornados públicos, Lincoln vinha pintando o pior quadro possível a seus superiores em Washington fazia tempo. No telegrama de 28 de março, chega a sugerir que Lindon Johnson faça pronunciamento sobre "relatos de deterioração econômica e inquietação política" no Brasil, mas é rechaçado.
Depois de praticamente ridicularizar o ex-embaixador em reunião na Casa Branca no dia 28 de março (o pedido de submarino foi considerado "intrigante"), o grupo presidencial volta atrás dois dias depois, segundo telegrama do Departamento de Estado a Gordon do dia 30, em que reforça o envio de armas e sugere intervenção.
Não seria preciso. Em telegrama enviado às 9h de 31 de março, Gordon resume o início do golpe: "o balão subiu".

Plano anterior foi feito durante o governo JFK
Apesar de ser o mais recente a ser liberado, "Um Plano de Contingência para o Brasil" não é o único preparado pelo governo norte-americano para lidar com o Brasil no período imediatamente anterior ao golpe militar. Um deles é citado pelo ex-embaixador dos EUA no Brasil Lincoln Gordon nos parágrafos finais do texto, em que ele se refere ao "documento de 30 de setembro de 1963 do LAPC".
Trata-se da "Proposta de Política de Curto Prazo -Brasil", elaborada ainda sob o governo de John Fitzgerald Kennedy (197-1963), que seria assassinado menos de dois meses depois.LAPC é a sigla para Latin America Policy Committee (comitê de política latino-americana), criado pelo presidente democrata no ano de 1962, cujo objetivo era lidar com "assuntos de contra-insurgência" no continente.
Nele, são listados doze objetivos. Entre eles estão "promover a divisão e o conflito dentro da e entre a extrema esquerda e grupos ultranacionalistas" (item 9) e "fortalecer a a orientação basicamente democrática e pró-EUA dos militares" (item 11).
[Folha de São Paulo, 15/07/2007]

Milionários brasileiros têm meio PIB

Consultoria diz que eles são 130 mil e que possuem pelo menos US$ 1 milhão cada em investimentos no Brasil e no exterior
Estudo mostra que fortunas brasileiras cresceram com a alta das commodities e do mercado financeiro; dólar barato também ajudou

Levantamentos inéditos obtidos pela Folha com a Receita Federal e com o The Boston Consulting Group (BCG), uma das consultorias mais importantes do mundo, mostram que o Brasil tem 130 mil milionários. Segundo o BCG, os brasileiros são os mais ricos da América Latina com fortuna conjunta estimada em US$ 573 bilhões -mais da metade do PIB nacional. É o que mostrará o novo relatório do grupo americano que sairá em setembro.Os dados ainda não foram tabulados e as estimativas têm base no crescimento anual médio das fortunas brasileiras nos últimos dois anos. Em 2005, os milionários nacionais detinham US$ 540,5 bilhões.Para fazer os cálculos, os especialistas entrevistaram 150 gestores de fortunas em 62 países. Na conta só entram os bens disponíveis em aplicações e depósitos bancários no país e no exterior. "Tudo o que circula pelo sistema financeiro é medido", afirma Eric Gregorie, relações-públicas da consultoria.
Para ter idéia do poderio financeiro dos brasileiros, entre 2000 e 2005, período mais recente da pesquisa, o país saltou da 18ª posição para a 14ª no ranking dos países com mais milionários. Na comparação com as nações em desenvolvimento, o Brasil deixou para trás a Índia e a Rússia, perdendo apenas para a China.Vários fatores explicam a velocidade de expansão das fortunas brasileiras. Nos últimos anos, a economia estabilizou-se. A inflação continua sob controle, as dívidas nacionais estão equacionadas e isso deixou os brasileiros confiantes para aplicar suas reservas. Resultado: o mercado financeiro nunca esteve tão aquecido. Como a venda de ações levou mais recursos para as empresas, elas aceleraram a produção, fazendo a economia crescer.
Também contaram o enfraquecimento do dólar e a alta dos preços das commodities -principalmente grãos e minérios. O setor do agronegócio foi um dos que mais geraram milionários, principalmente no Centro-Oeste.Segundo a Receita Federal, nessa região o número dos que ganham mais de R$ 1 milhão por ano mais que dobrou entre 2000 e 2003, chegando a 685. A Receita alega que para fornecer dados mais recentes teria de pagar R$ 15 mil ao Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados). Apesar disso, a análise dos números disponíveis já permite avaliar a nova geografia da riqueza no Brasil.
Regionalização da fortunaAlém do fortalecimento do Centro-Oeste, o Norte e o Nordeste ganharam destaque, com 187 e 1.031 milionários, respectivamente. Agora eles são disputados por empresas de luxo que antes só buscavam clientes entre Rio e São Paulo.Manaus já desponta como o paraíso das construtoras. Lá, a Gafisa lançou o Riviera, onde o apartamento mais barato custa R$ 800 mil. "Fizemos uma pesquisa de mercado e ficamos surpresos ao descobrir que o poder aquisitivo da classe mais rica era bem maior do que imaginávamos", diz Antonio Ferreira, diretor de novos negócios da Gafisa.Segundo ele, seis meses após o lançamento dos dois primeiros prédios, cerca de 70% das unidades do edifício Cannes -
em que o preço por unidade começa em R$ 2 milhões - estavam vendidas. De cada dez compradores, sete são do Estado. A publicitária Renata Sabbá e seu marido adquiriram um desses imóveis. "Era o que procurávamos", diz Renata.Embora detectem essas mudanças, tanto o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) quanto o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) têm dificuldades para traçar um perfil dos milionários. "A amostragem é muito pequena", diz Antonio Luiz Carvalho Leme, coordenador dos censos em São Paulo.Além disso, os poucos que participam da pesquisa costumam diminuir em 25% o valor de seus ganhos e bens. É o que afirma Gabriel Ulyssea, do Ipea. "Eles temem por sua segurança." Há outra preocupação: ao depreciar os bens, querem pagar menos impostos.Estudos do Ipea indicam que, apesar dessa depreciação, os dados da desigualdade de renda não sofrem alteração. "Apenas 10% da população continua se apropriando de 80% da renda nacional", diz Gabriel Ulyssea.
[Folha de São Paulo, 15/07/2007]

Gana, retrato da África recolonizada

Primeiro país africano independente, Gana vive sem festas os cinqüenta anos da libertação. Adotadas a partir da década de 1980, políticas neoliberais devastaram a indústria nascente, arruinaram os camponeses e tornaram as cidades caóticas e violentasYao Graham
"Estar à altura da excelência africana”. Destinado a criar um consenso, o slogan foi escolhido para acompanhar as comemorações oficiais do 50º aniversário da independência de Gana, no dia 6 de março. Provocou uma controvérsia: quem e o que, na história do país, pode simbolizar a excelência africana? Desde então, um grande debate sacode a imprensa. Discussão fomentada desde a herança de Kwame Nkrumah, primeiro presidente desse pequeno Estado da África Ocidental e personagem do panafricanismo, até a política do atual presidente John Kufuor.
Cinqüenta anos após libertar-se da dominação colonial, o país continua diante dos mesmos problemas de 1957. Em suma, os de toda a África pós-colonial: como reestruturar uma economia subdesenvolvida, dependente de algumas matérias-primas (minerais e agrícolas) cujos preços são instáveis? Como transformar e aumentar os rendimentos de uma agricultura de produtividade baixa, baseada na pequena produção? Como industrializar um país com um mercado local atrofiado, no qual as relações com o mercado mundial foram estruturadas pelas economias ocidentais? Como gerar recursos para melhorar, de maneira duradoura, a situação das populações cujas esperanças cresceram no momento da independência? [1]

Do anti-imperialismo ao neo-liberalismo, em três mandatos
Na economia e na política, Gana viveu, desde a década de 1960, todas as experiências africanas. Sob a presidência de Kwame Nkrumah, a economia foi administrada com investimentos na infra-estrutura e no setor social. O governo conduziu uma política de industrialização destinada a reduzir as importações. Nkrumah tornou-se portador da mensagem antiimperialismo, o que incomodou os países ocidentais. Após sua derrubada, em 1966, por um golpe de Estado apoiado pela CIA, o país entrou em um período de instabilidade política, no qual permaneceu até 1982. Em seguida, viveu a imprevisibilidade dos preços das matérias-primas. Como o resto do continente, teve de enfrentar corrupção e má gestão. Sob a presidência de Jerry Rawlings, converteu-se à economia de mercado, com o apoio de instituições financeiras internacionais e dos países do Norte. Modelo de experiências pós-coloniais até os anos 1960, Gana tornou-se paradigma das políticas neoliberais.
Kufuor, sucessor de Rawlings, em 2000, completará seu próprio mandato em 2008. Dos oito presidentes ganenses, somente dois ficaram mais tempo que ele no poder: Rawlings (18 anos) e Nkrumah (nove anos). Nkrumah foi, segundo Amilcar Cabral [2], “um estrategista talentoso na luta contra o colonialismo clássico”. Rawlings é o arquiteto da Gana atual. Depois de tomar o poder por meio de um golpe de Estado em 1981, foi reeleito duas vezes chefe do Estado. Aparece como o Janus da vida política local, a ponte entre Nkrumah e Kufuor. Durante os primeiros anos de sua presidência, ressaltou a necessidade de reformas econômicas estruturais, de justiça social e, em matéria de política externa, do antiimperialismo. Atacou vigorosamente a corrupção e dirigiu o país de maneira autoritária.
Inicialmente, esse posicionamento geral incitou a desconfiança de Washington. Autocrata e demagogo, Rawlings soube canalizar as esperanças da população e obter sua confiança propondo o objetivo de promover socialmente de uma elite. Mas, embora lembrasse Nkrumah na aparência, quando deixou o poder, em 2000, havia transformado seu país em modelo do liberalismo econômico que conhecemos hoje. Sua política de abertura para os mercados externos era fundamentalmente baseada na busca de investimentos estrangeiros. Reativou o crescimento econômico e restabeleceu a estabilidade política. Porém, abandonou o objetivo de transformar as estruturas da economia de Gana (historicamente dependentes do exterior).

No fim do século, queda das matérias-primas desfaz as ilusões
As duas vitórias eleitorais de Rawlings, em 1992 e 1996 — na última, vencendo o futuro presidente Kufuor —, fizeram-no pensar que estava em harmonia com o país. Entretanto, setores do Congresso Democrático Nacional (NDC), o partido no poder, e uma parte significativa da população continuaram reticentes à economia de mercado. Além disso, importantes frações das elites de Gana recusaram-se a reconhecer o que deviam a Rawlings, principalmente reformas econômicas draconianas e a restauração da autoridade do Estado, condições necessárias à sua prosperidade.
Os que haviam financiado a restauração econômica adotaram uma atitude mais pragmática: o presidente norte-americano William Clinton e a rainha Elizabeth II foram a Acra exprimir sua gratidão a Rawlings por ter reconduzido Gana à órbita ocidental. O antiimperialismo herdado de Nkrumah havia dado lugar ao ambiente da Commonwealth. No entanto, as grandes potências continuavam a desconfiar de um homem de caráter imprevisível, cuja base social parecia frágil.
Produto de vários fatores, a vitória de John Kufuor, em 2000, resolveu essas contradições. Na época, o NDC estava atormentado por tensões internas suscitadas pela sucessão de Rawlings. Esse havia se fragilizado devido ao aumento da corrupção e aos reflexos autoritários que o distanciaram da população. Entretanto, foi a crise econômica de 1999, provocada pela queda dos preços das matérias-primas, que acabou com o governo. As cotações do ouro, do cacau e da madeira — principais recursos do país — caíram, entre 1998 e 2000 (a do cacau caiu 1/3). Na mesma época, o custo das importações de petróleo duplicou, em virtude da alta do barril nos mercados mundiais.
A crise, produzida após anos de frustrações sociais relacionadas ao crescimento das desigualdades, revelou as fragilidades estruturais da economia de Gana: dependência da ajuda externa e peso da dívida, que passou de um bilhão de dólares, em 1983, para seis bilhões, em 2000. Duas décadas de liberalismo econômico e de "livre" comércio fragilizaram a produção local (agricultura, manufatura) e agravaram a dependência externa do país, problema com o qual Gana continua se confrontando. O golpe de misericórdia no governo Rawlings foi dado quando um conflito com os doadores atrasou a chegada da ajuda, no final dos anos 1990. Alguns membros do NDC avaliam que as instituições internacionais procuraram favorecer a vitória de Kufuor, personagem muito mais controlável (Sob a tutela da Casa Branca).

Instabilidade social. Enfraquecimento da nação. Dependência
Em 2001, o novo presidente aceitou a iniciativa países pobres muito endividados (HIPC, na sigla inglesa). Essa decisão voltou a reconhecer que as reformas liberais, tão vangloriadas, haviam, na realidade, levado o país à falência e o tinham tornado mais vulnerável às condicionalidades das instituições doadoras. Ainda assim, Kufuor mostrou-se disposto a estender e aprofundar as políticas em questão. Em troca, as instituições financeiras aceitaram liberar o país de uma parte de sua dívida. A ajuda voltou e o governo pôde estimular a educação primária e a infra-estrutura. Entre 2001 e 2006, o crescimento passou de 3% para 6%. No entanto, o aumento das desigualdades e as fragilidades estruturais da economia constituem uma bomba de efeito retardado para um regime aparentemente estável.
Os 20% mais pobres recebem, hoje, 8,4% da renda nacional, enquanto os 20% mais ricos abocanham 41,7%. Em 2002, um estudo do Centro para o Desenvolvimento Democrático – um think tank ganense – revelou a dimensão do desemprego e do subemprego, além de denunciar o “abismo crescente entre os ricos e os pobres [3].” Dois terços das pessoas entrevistadas qualificam sua situação econômica como ruim. A maioria dos participantes aponta, entre as prioridades, a criação de empregos, a redução da pobreza e da exclusão.
Nos últimos anos, multiplicaram-se as greves relacionadas aos salários e às condições de vida. Mas elas terminaram sem que os trabalhadores tivessem êxito. As medidas pontuais adotadas para lutar contra o êxodo de intelectuais e pesquisadores (prêmios de repatriamento, campanhas de recrutamento dos residentes no exterior etc.), produziram incoerências e desigualdades extremas na grade dos salários do setor público.
Foi prometendo “a idade do ouro dos negócios” que o presidente Kufuor elegeu-se em 2000. Sete anos depois, os empresários locais, principalmente os da pequena manufatura, reclamam que o governo só pensa em satisfazer o capital estrangeiro. A prioridade dada ao "livre" comércio traria um prejuízo ao desenvolvimento da capacidade produtiva da antiga Costa do Ouro. Na capital, Acra, as fábricas abandonadas foram convertidas em entrepostos para as importações ou em igrejas para acolher o número crescente de fiéis dos movimentos evangélicos.

Êxodo rural e desemprego tornam cidades inchadas e violentas
Baseada no estímulo às exportações de cacau, gás, petróleo e, também, de minerais (ora prata, ora manganês), a economia não criou um número de empregos suficiente. Os poucos que há são mal-pagos. Isso provocou migrações internas e externas, das quais a mais conhecida é a de profissionais do setor de saúde [4]. O êxodo mais importante diz respeito a milhares de jovens, pouco formados mas instruídos, cujas rendas permitem – quando bem-sucedidos no exterior – que um grande número de famílias se mantenha acima do limiar de pobreza.
Entre os muitos funcionários demitidos na época das reformas liberais adotadas nos anos 1980-1990, poucos encontraram trabalho. As fileiras desses desempregados durante muito tempo foram ampliadas pelo êxodo rural provocado pela pauperização dos campos. Na verdade, a agricultura local, de produtos alimentícios principalmente, foi arruinada pela política de abertura aos mercados mundiais, pela falta de terras disponíveis e de perspectivas econômicas. Nesse mundo rural, onde vive a maioria dos ganenses, a insegurança econômica tem um aspecto particular, o dos sem-terra. A maioria das pessoas não é proprietária e depende de um terceiro: assalariados agrícolas, meeiros, jovens, mulheres perdem facilmente seus direitos. Como o governo não soube responder a essa insegurança jurídica, a instabilidade fundiária desestabiliza o país. É o mesmo que ocorre em outras regiões da África Ocidental, onde as terras estão na origem das explosões de violência [5].
Em 2000, 80% da população ativa exerce alguma atividade no setor informal: por exemplo, camelôs não regulares. Na maior parte das grandes cidades, esse fenômeno derrota as autoridades, que respondem com medidas de segurança. Na verdade, as dificuldades da vida cotidiana e a corrupção cada vez maior corroeram a confiança que a população tinha no partido do poder — o Novo Partido Patriótico (NPP). País-símbolo, Gana não conseguiu traçar a via de um desenvolvimento autônomo, nem colocar em ação as transformações socioeconômicas necessárias.

Tradução: Wanda Caldeira Brant

[Le Monde Diplomatique, junho 2007]