Museu controverso, que apresenta a criação bíblica como fato, abre em Kentucky, nos EUA

Chris Kenning, em Petersburgo, Kentucky

Em meio a protestos e câmeras de televisão, milhares de visitantes fizeram fila nesta segunda-feira (28/5) para a inauguração do "Museu da Criação", uma atração de US$ 27 milhões (em torno de R$ 54 milhões) mostrando que a história bíblica da criação é fato literal embasado pela ciência.Os visitantes viram dinossauros animados de alta tecnologia abanarem o rabo ao lado de crianças brincando em um diorama natural. Eles examinaram fósseis e crânios, andaram por um Jardim do Éden exuberante e viram homens robóticos martelarem a Arca de Noé antes da retribuição de Deus.
Diferentes mostras e exibições defendiam que o Grand Canyon foi criado pelo dilúvio bíblico; os animais de Noé ocuparam continentes flutuando pelos oceanos em árvores caídas; que a Terra tem 6.000 anos, e não bilhões; e que os sapos venenosos eram inofensivos antes do pecado original de Adão.
Alguns visitantes disseram que o museu de 5.500 metros quadrados - um cruzamento de museu de história natural com parque temático bíblico - reforçou suas noções que as teorias da evolução e do Big Bang - que o universo foi criado em uma explosão gigante - estão erradas, apesar do consenso científico contrário."Se você quiser acreditar que veio de animais, isso cabe a você. Mas é mentira", disse Paul Aduba, de Toledo, Ohio.
Fora dos portões do museu, mais de 100 manifestantes, inclusive cientistas e grupos humanistas, brandiam cartazes que diziam: "Ciência, não superstição" e "Não faça lavagem cerebral em nossos filhos". Um grupo alugou um avião que atravessava o estacionamento com uma faixa que dizia: "Não mentirás".
"Esse é um museu de desinformação", disse Lawrence M. Krauss, crítico aberto que chefia o Centro de Educação e Pesquisa em Cosmologia e Astrofísica na Universidade da Reserva de Case Western, em Cleveland.
"Tudo bem as pessoas acreditarem no que quiserem - certo ou errado", disse ele. "Mas é inapropriado mentir e dizer que a ciência sustenta essas noções. Não sustenta.
"Gene Kritsky, professor de biologia do Colégio de Mount St. Joseph, em Cincinnati, disse que o "museu entre aspas" - que atraiu a atenção da mídia internacional - era "uma vergonha" para a região.
O museu, que inclui um planetário digital, é o trabalho de um grupo religioso conservador, Answers in Genesis, parte do movimento criacionista "Terra jovem".
Diferentemente do "design inteligente", que sugere que o universo foi criado por um "projetista", mas não especifica quem e aceita que tenha bilhões de anos de idade, os criacionistas da Terra jovem acreditam que o livro do gênese da Bíblia explica exatamente como o mundo foi formado - ou seja, em seis dias de 24 horas.
Como acreditam que o mundo tem apenas 6.000 anos de idade, dizem que os dinossauros devem ter coexistido com humanos. Acreditam que as histórias do dilúvio e da arca são literalmente verdade.
"Usamos a mesma ciência... apenas a interpretamos de forma diferente", disse o criador Ken Ham, que começou o ministério em seu país natal, Austrália, e levantou fundos durante anos para montar o museu.Ham disse que vê o museu como uma nova arma em uma "guerra cultural" mais ampla para os cristãos que "sentem que foram derrotados" em batalhas em torno do aborto, casamento gay e na afixação dos Dez Mandamentos em locais públicos. Ele também espera que o museu mude as opiniões de turistas descrentes.
As pesquisas mostram que muitos americanos concordam com a opinião de Ham. Uma pesquisa da CBS revelou que 51% dos americanos acham que Deus criou os humanos em sua forma atual. Outros acreditam que os humanos evoluíram, e Deus guiou o processo. Apenas 15% dizem que os humanos evoluíram e que Deus não estava envolvido.
Há meia dúzia de museus criacionistas em todo o país. No entanto, críticos e defensores dizem que o museu de Kentucky leva a noção a um novo nível por sua amplitude e alta tecnologia. Os organizadores esperam 250.000 visitantes por ano.
"Há duas teorias diferentes", disse Sean Riccardelli da Pensilvânia às suas filhas, Elina, 7, e Liza, 9, enquanto liam passagens bíblicas em uma das mostras. "Você acredita no que está em seu coração... no que sua fé diz.
"As exibições questionam as evidências da evolução, como Lucy, o hominídeo etíope cujos restos são considerados um elo entre macacos e humanos. "Faz sentido", diz uma mostra, que alguns sistemas de organismos foram desenhados para funcionar juntos.
Judy Vinson, que fez uma viagem e sete horas do Alabama para ver a inauguração, disse que não encontrou nada com o que discordasse. "A evolução não faz sentido", disse ela, nem o big bang, que os cientistas acham que criou o universo. "Explosões não constroem", disse ela.

USA Today, 29/05/2007. Tradução: Deborah Weinberg

Canal de TV é cortado no mais novo drama de Chávez

Richard Lapper, em Caracas

Enquanto a voz da cantora argentina Mercedes Sosa flutua em seu pequeno estúdio, Fernando Salas prepara-se para encerrar seu turno diário na Rádio Horizonte FM.
Salas, um ex-inspetor de obras, é um dos três apresentadores da estação, que oferece uma mistura de programas de entrevistas e música de esquerda, com artistas semelhantes a Sosa, para os poucos milhares de moradores de Santa Juana, uma área pobre da cidade venezuelana de Merida.
A estação é uma das cerca de 200 emissoras comunitárias que receberam licenças do governo do presidente Hugo Chávez, na linha de seu objetivo de "democratizar" a mídia de massa e estabelecer o que um ex-ministro chamou recentemente de "hegemonia do Estado na comunicação e na informação".
Essa política enfrentará seu teste mais duro neste fim de semana, quando o governo efetivar seu plano de terminar a concessão de televisão de 20 anos da Radio Caracas Televisión (RCTV), o canal privado mais antigo e mais popular do país.
As reportagens marcadamente partidárias da estação, como as de outras mídias de direita, contribuíram para a polarização política da Venezuela, e Chávez várias vezes alegou que ela apoiou o golpe que levou à sua breve saída do cargo, cinco anos atrás. No fim do ano passado Chávez anunciou que a licença da TV, que expira amanhã à noite, não seria renovada.
A abordagem dura do governo provoca aplausos em Santa Juana, segundo Salas. "Nós discutimos a questão em um de nossos fóruns noturnos e a maioria dos nossos ouvintes concorda que ela não deve continuar no ar por causa do que aconteceu", disse ele.
A política gera mais polêmica em outras partes do país. As novelas da Rádio Caracas como "The Ex" e "My Cousin Ciela" são populares, atraindo regularmente mais de 50% dos espectadores venezuelanos.
Duas pesquisas de opinião mostraram que mais de 70% dos venezuelanos, incluindo muitos seguidores de Chávez, se opõem à decisão de não renovar a licença. Arturo Sarmiento, um empresário de Caracas que dirige a Telecaribe, uma estação de televisão regional independente e apóia a política do governo, admite que a medida terá "um enorme custo político".
Um canal de serviço público, a Televisora Venezolana Social (TVes), deverá substituir a RCTV. Mas poderá ter dificuldades, em parte por razões técnicas. Inicialmente, pelo menos, ela só vai transmitir em duas cidades venezuelanas, porque as autoridades não estão assumindo os 53 transmissores operados pela RCTV.
Em outros lugares do mundo, com poucas exceções, as estações públicas não conquistaram reputação pela programação popular. Lil Rodríguez, a nova presidente do canal, não gerou otimismo quando anunciou na semana passada que "não desejamos fazer a Teves muito aborrecida".
A Teves pretende desenvolver sua própria novela baseada nas vidas de Simón Bolívar, o herói nacional do país, e Manuela Sáenz, uma de suas amantes, mas até que ela fique pronta os espectadores terão de se contentar com uma série de programas de culinária, viagens, música e documentários, assim como um programa de opinião.
Há preocupações mais sérias de que a decisão sobre a RCTV possa desencorajar o jornalismo independente. Sarmiento e outros seguidores de Chávez insistem que o governo não pretende impor a censura e dizem que a RCTV terá liberdade para transmitir seus programas via cabo.
No entanto, a Venezuela foi criticada por diversas organizações internacionais de direitos humanos. A Human Rights Watch, baseada nos EUA, afirmou na semana passada que a não-renovação da licença da RCTV é "um grave revés para a liberdade de expressão".
Os críticos apontam uma série de leis como as que tornam ofensa criminal o "desrespeito" pelas instituições e autoridades do governo, que já encorajaram um certo nível de autocensura na mídia. Por exemplo, os canais de televisão que antes eram hostis tiraram do ar seus programas de opinião.
Nada disso importa muito em Santa Juana, onde Salas se prepara para três noites consecutivas de discussões sobre os prós e os contras de entrar para o Partido Socialista Unido da Venezuela, a nova organização política que está sendo promovida por Chávez. "Os microfones estão sempre abertos para qualquer um falar, mas poucas pessoas tendem a discordar das mudanças que estamos vivendo", diz.

Financial Times, 26/05/ 2005. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Eureca! É Aristóteles: os tesouros de um manuscrito

Encontrado um comentário às 'Categorias' do filósofo grego no 'Palimpsesto de Arquimedes'

De Lola Galán , em Madri, Espanha

A história ainda não se pronunciou sobre Ioannes Myronas. Foi um destrutor da cultura clássica, ou contribuiu para preservá-la, inadvertidamente? Myronas, conhecido só pelos eruditos, foi um monge bizantino autor de um livro de orações -que concluiu em 14 de abril de 1229- confeccionado a partir de vários códices, entre eles o que continha sete tratados de Arquimedes. Mas esse palimpsesto [pergaminho reutilizado], batizado com o nome do cientista grego, guardava outras duas jóias: discursos desconhecidos de Hipérides, um dos grandes oradores gregos, que viveu no século 4º a.C., e um comentário às 'Categorias' de Aristóteles, o pai da filosofia, descoberto graças às últimas técnicas de fotografia digital.

Primeiro foi a ciência, depois a política, finalmente a filosofia. Não é a ordem de criação disposta por alguma deidade caprichosa, mas a seqüência de descobertas que fizeram do chamado Palimpsesto de Arquimedes, submetido a exaustiva análise nos EUA, mais que um manuscrito, uma minibiblioteca clássica ambulante.

No século 13, o presbítero bizantino Ioannes Myronas reciclou, para criar seu breviário, nada menos que quatro códices, tirados de uma biblioteca bem abastecida. Pouco se sabe desse monge, exceto que se aplicou com rigor à tarefa de desmontar de seus bastidores de madeira os fólios do pergaminho e a apagar com ácido as letras minúsculas, do grego clássico. Menos ainda se sabe sobre o escriba cujo trabalho destruía.

A totalidade do saber acumulado na Grécia clássica foi transmitida para o mundo graças a copistas desconhecidos. Mas sua tarefa foi minada pelas vicissitudes da história. O homem que copiou os argumentos de Arquimedes (287-212 a.C.), as sentenças dos discursos de Hipérides (389-322 a.C.) e as reflexões de Alexandre de Afrodísias (cerca de 200 a.C.) a propósito de uma obra essencial de Aristóteles teve um êxito desigual. Nem mesmo sabemos se foi uma única pessoa. Mas sua tarefa exigiu longas horas e numerosas folhas de pergaminho, elaborado a partir da pele de pelo menos 24 ovelhas.

Cada fólio original media 30 cm de comprimento por 19,5 de largura. Cada um desses fólios seria dobrado pela metade três séculos depois para criar o breviário de Myronas. Os especialistas têm certeza de que o escriba desconhecido realizou sua tarefa no último quarto do século 10º, período no qual se impõe o uso de minúsculas e se intercalam espaços de separação entre as palavras.

Tanto Arquimedes quanto Aristóteles escreviam em maiúsculas, em longas séries de palavras coladas entre si. O caminho para se chegar a esta última descoberta foi extenso.

Tudo começou em outubro de 1998, quando o palimpsesto, comprado em um leilão da Christie's por um desconhecido milionário americano que pagou US$ 2 milhões por ele, foi depositado no Museu Walters de Baltimore. Desde janeiro do ano seguinte a conservadora do museu, Abigail Quandt, pôs mãos à obra. O primeiro que fez foi desencadernar o manuscrito, tarefa que levou quatro anos.

Ao mesmo tempo, houve o trabalho de especialistas em ciência antiga, em interpretação de signos e sobretudo no uso das últimas técnicas digitais para pesquisar as profundezas de uma imagem, até destrinchá-la.

"Os fólios correspondentes ao livro sobre Aristóteles foram os mais difíceis de decifrar", admite Roger Easton, professor de ciências da imagem no Instituto de Tecnologia de Rochester (EUA), que desenvolveu os programas especiais para aplicar as técnicas de imagem multiespectral.

Trata-se basicamente de utilizar fotografias tiradas com diferentes comprimentos de onda para ampliar determinadas áreas da imagem. Apesar de Easton não saber grego, não pôde conter a emoção quando viu aparecer no computador as letras de um texto novo, um comentário sobre as 'Categorias' de Aristóteles. Fragmentos não tão importantes quanto os tratados de Arquimedes ou o discurso do orador Hipérides descoberto anteriormente, mas não menos fascinantes.

"É uma contribuição importantíssima para nosso conhecimento sobre a recepção que teve essa obra de Aristóteles", disse Reviel Netz, professor de Ciência Antiga na Universidade de Stanford (Califórnia) e membro da equipe que trabalha no palimpsesto desde 1999. Netz já considerava praticamente esgotado o caudal de erudição procedente desse manuscrito.

"Sabemos tudo, exceto o conteúdo de duas páginas de 'O método dos teoremas mecânicos' de Arquimedes, que se perderam e devem estar em algum canto da Europa." Material irrecuperável, porque esse tratado não figura em nenhum outro lugar. Mas com esse códice muito antigo não se esgota um filão importante.

"Tenho certeza de que deve haver outros manuscritos que podem conter tratados de importância similar no Oriente Médio. Nosso palimpsesto pertenceu aos monges de um mosteiro próximo a Jerusalém. E é surpreendente que outro famoso palimpsesto, o de Eurípedes, mais ou menos da mesma época que o de Arquimedes, tenha sido localizado lá. Tudo indica que na Jerusalém dos cruzados uma grande biblioteca foi reutilizada com o objetivo de fazer palimpsestos. Serão encontrados mais materiais na Palestina e no deserto do Sinai", acrescenta Netz em uma mensagem eletrônica.

As bibliotecas recicladas por monges para elaborar livros de oração condenaram ao esquecimento ninguém sabe quantos tesouros. Pelo menos até que o trabalho isolado de estudiosos e especialistas projete luz sobre eles.

Quando o palimpsesto de Arquimedes chegou ao museu de Baltimore já se sabia, na verdade, o fundamental que as orações de Myronas ocultavam. Um filólogo dinamarquês, Johan Ludwig Heiberg, conhecedor da existência de um manuscrito com diagramas no Metochion, uma dependência do Santo Sepulcro em Constantinopla, apresentou-se ali em 1906.

Com uma câmera fotográfica da época e seus prodigiosos conhecimentos de grego, estudou o manuscrito, do qual haviam desaparecido, nas transmutações dos últimos séculos, 60 fólios, e foi capaz de compreender que tinha diante de si uma jóia de valor incalculável. Nada menos que vários tratados de Arquimedes no grego original, entre eles um totalmente desconhecido pela comunidade científica, 'O Método', junto com um livro curioso, o 'Stomachion'.

Heiberg publicou sua descoberta em uma revista e editou as obras completas de Arquimedes alguns anos depois. Mesmo assim, o especialista não deu atenção especial nem aos diagramas do livro nem aos outros textos que nele figuravam.

O material permaneceu oculto por quase um século, até que a equipe dirigida por Will Noel - responsável por manuscritos no Museu Walters de Baltimore - conseguiu desentranhar os mistérios restantes do palimpsesto: praticamente a totalidade dos sete tratados de Arquimedes e os discursos de Hipérides. Dez fólios que projetam uma nova luz sobre a batalha de Salamina, no ano 480 a.C., na qual os gregos derrotaram os persas. E o punhado de fólios com o comentário às 'Categorias' de Aristóteles, obra de um estudioso grego que viveu entre os séculos 2º e 3º de nossa era, Alexandre de Afrodísias. Pensando bem, a história deveria indultar o presbítero Ioannes Myronas.

As cotações de Afrodisias
No último códice do palimpsesto descoberto, Alexandre de Afrodísias comenta as 'Categorias' de Aristóteles. O texto está sendo transcrito. Nele incluem-se parágrafos como este fragmento, já traduzido: "Da mesma maneira que pé é ambíguo, ao poder referir-se igualmente a um animal ou a uma cama, são ambíguas as expressões 'com pés' ou 'sem pés', e portanto com 'em espécie' Aristóteles quer dizer 'em sua fórmula'. Porque se acontece alguma vez que o mesmo nome indique distinções de gênero que são diferentes entre si e não subordinadas, por força não podem ser as mesmas na fórmula."

Mil anos para chegar à Christie's
As peripécias vividas pelo palimpsesto de Arquimedes são dignas de uma novela de aventura. Os tratados do matemático nascido em Siracusa (Sicília) e morto em 212 a.C. foram guardados na biblioteca do Templo das Musas de Alexandria. Essa é, pelo menos, a tese defendida por Reviel Netz e William Noel em seu livro 'El Codigo de Arquimedes' (em espanhol, pela Editorial Temas de Hoy).

Em Alexandria eles foram copiados, passando do rolo para o códice. Quando as coisas ficaram feias, em plena eclosão do cristianismo, os códices saíram para Constantinopla não se sabe como.

No século 6º, Isidoro de Mileto, um dos arquitetos de Santa Sofia, utilizou os conhecimentos de Arquimedes para edificar a fabulosa cúpula do templo de Istambul. E acredita-se que, por ordem dele, as obras do matemático grego foram novamente copiadas.

Séculos mais tarde, Constantinopla e com ela o Império Bizantino experimentam um novo apogeu. Constroem-se palácios e lêem-se os clássicos. E, o que é mais importante, copiam-se novamente seus tratados. Desta vez, incorporando algumas novidades. Afinal, estamos no último quarto do século 10º. O escriba introduz espaços entre as palavras, usa abreviaturas e minúsculas.

Mas Constantinopla foi arrasada pelos cruzados no ano 1209. Muitos dos antigos códices se perderam. Outros conseguiram se salvar e parar em alguma biblioteca importante no Oriente Médio.

Duas décadas depois, talvez em algum lugar próximo a Jerusalém, o monge Myronas pega quatro códices e escreve, sobre o pergaminho previamente tratado com ácido para apagar as antigas letras, um livro de orações.

Durante séculos esse livro permanece, sem maiores contratempos, no mosteiro de San Sabas, perto de Belém. Até que no século 19 a biblioteca inteira fica sob a autoridade do patriarca grego de Constantinopla, e os livros são arquivados no Metochion, uma dependência do Santo Sepulcro nessa cidade.

Pelo menos duas pessoas têm acesso ao palimpsesto nessa época: o estudioso Papadopoulos-Kerameus, que realizou um catálogo desses arquivos, em 1899, e algumas décadas antes o acadêmico alemão Constantin Tischendorf, que inclusive arranca uma página do manuscrito. Anos depois seria vendida à Universidade de Cambridge.

Conhecendo as qualidades desse livro, o estudioso dinamarquês J. L. Heiberg viaja a Constantinopla e o analisa a fundo em 1906. Não se volta a saber do livro até quase um século depois. O material guardado no Metochion é enviado para Atenas nos primeiros anos da década de 1920, mas nem tudo chega a seu destino.

O Palimpsesto de Arquimedes fica em poder de um cidadão francês, um tal Sirieix. Seus herdeiros o leiloam, em 1998, através da Christie's de Nova York. Ali foi adquirido por um milionário americano e depois depositado no Museu Walters de Baltimore, onde permanecerá até 2008, data em que está previsto que o projeto do Palimpsesto de Arquimedes conclua com uma exposição e um filme.

Os avatares do manuscrito não merecem menos.

[El País, 20/05/2007. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves]

Frutos podres

Suborno, tráfico de influência e manipulação de informações tornaram a United Fruit decisiva para a política da América Central até os anos 1960, defende Peter Chapman

PETER CHAPMAN

No início da manhã de 3 de fevereiro de 1975, um homem se atirou pela janela de seu escritório, 44 andares acima da Park Avenue, em Nova York. Ele usou sua pasta para quebrar a janela e depois a atirou antes de saltar, espalhando papéis por vários quarteirões.
O vidro caiu sobre o tráfego na hora do rush, mas surpreendentemente ninguém ficou ferido. O corpo pousou longe da via, perto de uma agência do correio.
Os funcionários ajudaram o pessoal da emergência a limpar a bagunça para que os negócios do dia pudessem prosseguir.
Um policial que esteve no local falou sobre o egoísmo dos "saltadores", que não pensam nas pessoas "lá embaixo". Aquele saltador foi rapidamente identificado como Eli Black, executivo-chefe da United Fruit Company, que fez enormes lucros com bananas desde o final do século 19.
A United Fruit dominou os negócios e a política na América Central. Foi a primeira corporação moderna realmente multinacional, disseminando o espírito do capitalismo liberal.
Mas, além de colher as frutas da região, a empresa exerceu uma influência formidável sobre os pequenos países, que eram muitas vezes governados por ditaduras corruptas.
A United Fruit deu ao mundo não apenas bananas, mas também "repúblicas de bananas".

Suborno
Soube-se que Black, um pai de família dedicado, havia subornado o presidente de Honduras, Oswaldo Lopez Arellano, com US$ 1,25 milhão [R$ 2,49 milhões] para animá-lo a derrubar um cartel das bananas que se opunha à United Fruit.
A notícia estava prestes a sair na imprensa americana. As plantações da United Fruit na América Central também enfrentavam prejuízos com furacões e uma nova doença. Diante da desgraça e do fracasso, Black tirou a própria vida. Sua morte foi chocante, sobretudo porque ele tinha a reputação de ser um homem de moral elevada.
Wall Street ficou escandalizada, as ações da companhia despencaram e foram confiscados seus livros contábeis para evitar "novas violações da lei".
Depois a empresa desapareceu da vista do público e parece ter sido apagada da mente coletiva.
A United Fruit não existe mais, mas seu legado para os negócios mundiais persiste.
Suas atividades em Cuba, onde ela era considerada um símbolo do imperialismo americano, foram importantes para a ascensão de Fidel Castro e a revolução cubana no final dos anos 1950.
Sua participação na invasão da Baía dos Porcos, em 1961, numa tentativa inútil de derrubar Castro, levou à crise dos mísseis cubanos.
Enquanto o mundo se encontrava à beira do holocausto nuclear, poucos poderiam imaginar que ele tivesse algo a ver com bananas.
A United Fruit teve início na década de 1870, quando Minor Cooper Keith, um jovem e rico nova-iorquino, decidiu cultivar bananas como negócio secundário junto de uma ferrovia que estava construindo na Costa Rica.
Os dois empreendimentos progrediram, e em 1890 ele estava casado com a filha de um ex-presidente do país e possuía vastas plantações de bananas em terras doadas pelo Estado.
As bananas eram enviadas a Nova Orleans e Boston, onde a demanda logo superou a oferta.
Keith associou-se a Andrew Preston, um importador de Boston, e em 1899 eles fundaram a United Fruit. As bananas vendiam bem por causa de seu charme tropical: eram exóticas, um luxo que só os ricos podiam se permitir.
Mas o rápido crescimento da produção da United Fruit fez os preços caírem. A companhia criou um mercado de massa nas cidades industriais do nordeste e centro-oeste dos EUA.
A banana burguesa tornou-se definitivamente proletária.
Na década de 1920, o império da United Fruit havia-se espalhado por toda a América Central, incluindo Jamaica, Cuba e República Dominicana.
Na América do Sul a empresa possuía pedaços da Colômbia e do Equador. Ela veio a dominar os mercados da banana na Europa e nos EUA, com a ajuda de sua "grande frota branca" de cem navios refrigerados, a maior marinha privada do mundo.

A "Big Mike"
Existem mais de 300 variedades de banana, mas a United Fruit só cultivava uma: a Gros Michel, ou "Big Mike".
Essa variedade agradava à maioria dos paladares; não era grande nem pequena demais, amarela ou doce demais -era até um pouco insossa. Ela foi a precursora dos produtos transnacionais que temos hoje.
No lugar de Big Mike leia-se Big Mac.
Mas a produção em massa cobrou seu preço. Em 1903, a doença atingiu as plantações da United Fruit no Panamá. Uma série de patógenos atacou intensamente as plantações e descobriu-se que a banana tinha uma fragilidade genética.
Suas sementes não são bem dotadas para a reprodução, então os plantadores tiravam mudas de uma planta para criar outra.
A banana é um clone, com cada geração menos resistente que a anterior. (Em 2003, a "New Scientist" relatou que a banana estava morrendo e poderia ter apenas uma década de vida. Cientistas de engenharia genética foram chamados para salvá-la, até agora sem sucesso.)
Embora a banana estivesse doente, a United Fruit a comercializava como um produto exemplar da boa saúde. As doenças da banana não afetam os seres humanos, e dizia-se que a fruta curava muitos problemas: obesidade, pressão sanguínea, prisão de ventre e até depressão.
Em 1929, a United Fruit criou seu próprio "departamento educacional", que fornecia às escolas americanas kits de aprendizado enaltecendo os benefícios da banana e as boas obras da empresa.
Enquanto isso, o departamento de "economia doméstica" da United Fruit inundava as donas-de-casa com receitas de banana.
Uma das campanhas publicitárias de maior sucesso da empresa começou em 1944, para a reforçar o perfil da fruta após sua escassez na Segunda Guerra.
Ela apresentava a Señorita Chiquita Banana, uma banana de desenho animado que cantava e dançava em exuberante estilo latino. A Señorita Chiquita se parecia muito com Carmen Miranda, a "Brazilian bombshell" que, com seu chapéu "tutti-frutti", encantava Hollywood na época.
As vendas logo recuperaram os níveis de antes da guerra.
Nos anos 1960, a banana se tornara um acompanhamento inseparável do cereal matinal para a maioria das crianças americanas. E hoje, em países como os EUA e Reino Unido, ela superou a maçã como fruta mais popular.
No Reino Unido os números indicam que mais de 95% das famílias compram bananas semanalmente, e gasta-se mais dinheiro com elas do que com qualquer outro artigo de supermercado, fora petróleo e bilhetes de loteria.
Ao longo dos anos, a United Fruit lutou firmemente por menos impostos e regulamentação branda.
No início do século 20, leis antitruste incômodas foram aprovadas nos EUA para combater comportamentos empresariais como fixação de preços e outras práticas monopolistas.
Os impostos sobre as grandes corporações foram elevados para financiar benefícios assistenciais nos EUA e nos Estados de Bem-Estar Social europeus.
Mas, com seu centro de operações distante dos legisladores de Washington, a United Fruit basicamente escapou de tudo isso.

Empresa impiedosa
A empresa também adquiriu a reputação de ser impiedosa quando contrariada e agiu para remover governos que não acatavam seus desejos.
A United Fruit havia mostrado primeiramente sua natureza violenta na invasão de Honduras, em 1911, planejada por Sam Zemurray, o "Homem Banana", um sócio da United Fruit que mais tarde dirigiria a companhia.
Os esforços de Zemurray e da United Fruit para iniciar a produção em Honduras tinham sido bloqueados pelo governo local, temeroso do poder que ela poderia exercer.
A United Fruit não foi dissuadida com facilidade. Zemurray financiou uma invasão, liderada por sujeitos empreendedores como o "General" (auto-nomeado) Lee Christmas e o solucionador de problemas independente Guy Molony, o "Metralhadora".
Graças à United Fruit, muitos outros exercícios de "mudança de regime" foram efetuados em nome da banana.
Em 1941, a empresa contratou um novo consultor, Edward Bernays, um sobrinho de Sigmund Freud que havia adaptado as primeiras disciplinas da psicanálise ao mundo do mercado.
Bernays é conhecido como o "pai das relações-públicas", autor do livro seminal "Propaganda" (1928), em que afirma que a "minoria inteligente" da sociedade tem o dever de manipular a "mente grupal" que não pensa.
Sempre, para Bernays, em prol da liberdade e da democracia.
A United Fruit estava preocupada com sua imagem. Na América Central, era conhecida como "el pulpo" (o polvo) -com tentáculos por toda parte.
Nos EUA, os territórios da United Fruit eram considerados problemáticos e proibidos.
Sob a orientação de Bernays, a empresa começou a gerar um fluxo constante de informação para a mídia a respeito de seu trabalho, rebatizando a região de "América do Meio".

Terror comunista
Em 1954, Bernays exerceu seus poderes de manipulação para se livrar do governo da Guatemala. Eleito democraticamente, ele desapropriara grandes áreas de terras improdutivas da United Fruit para dá-las a agricultores.
A reação de Bernays foi chamar jornalistas simpáticos às opiniões da companhia. Foram enviados em missões de "levantamento de fatos" na América Central, sobretudo na Guatemala, onde seguiram falsas histórias sobre tiros e bombas.
Em suas reportagens, a Guatemala tornou-se um lugar dominado pelo "terror comunista".
A empresa também procurou amigos em altas posições, tanto nos corredores do poder como nos escritórios onde se tomavam as grandes decisões.
Durante a crise da Guatemala, John Foster Dulles, um dos estadistas mais estimados do mundo, era secretário de Estado. Seu irmão, Allen Dulles, era o chefe da CIA [agência de inteligência americana]. Ambos foram assessores jurídicos da United Fruit. Juntos, orquestraram o golpe que derrubou o governo guatemalteco em 1954.
Apesar de sua triste reputação, a United Fruit costumava fazer gestos filantrópicos. O infeliz Eli Black ajudou a cunhar a expressão "responsabilidade social corporativa", quando, referindo-se à ajuda enviada às vítimas do terremoto de 1972 na Nicarágua, descreveu as ações da companhia como "nossa responsabilidade social".
E, nos anos 1930, Sam Zemurray doou parte de sua fortuna para uma clínica infantil em Nova Orleans. Mais tarde ele deu US$ 1 milhão [R$ 1,99 milhão] para a Universidade Tulane, na mesma cidade, para financiar pesquisas sobre a "América do Meio"; ele também financiou uma cadeira de professor em Harvard apenas para mulheres.
A filantropia, porém, não impediu os abusos da United Fruit, e nos anos 1950 o governo americano decidiu que era necessário agir. As atividades da companhia tinham gerado um tal sentimento antiamericano na América Latina que revolucionários de esquerda como Fidel Castro e Che Guevara prosperaram.
E, assim, Washington começou a tirar parte das terras da United Fruit.
Ironicamente, Castro se beneficiou da presença da United Fruit em Cuba. Seu pai, um plantador de cana-de-açúcar, arrendava terra da companhia e ganhou dinheiro bastante para dar uma boa educação a seus filhos.
Guevara tinha lutado contra a United Fruit e a CIA durante o golpe na Guatemala; a partir daí ele afirmou que a América Latina não tinha alternativa senão a "luta armada".
Em 1959, Castro e Guevara tomaram o poder em Cuba e expulsaram o regime de Fulgencio Batista, apoiado pelos EUA.
Como um ditador agonizante, a United Fruit reagiu -e quase levou o mundo consigo. Em 1961, emprestou parte de sua "grande frota branca" para a CIA e os exilados cubanos nos EUA que planejavam derrubar Castro.
Quando a invasão da Baía dos Porcos falhou, Castro, temendo outro ataque, trouxe armamentos da União Soviética, provocando a crise dos mísseis de 1962.
A United Fruit continuou batalhando na década de 1960, com seu produto cada vez mais afetado por doenças. A Big Mike minguou, morreu e deu lugar à banana de sobremesa que a maior parte do mundo desenvolvido come atualmente, a Cavendish.
Black assumiu a empresa em 1970, imaginando que poderia resgatar o colosso que havia sido.
O início dessa década, porém, foi um período terrível para a imagem das corporações multinacionais.
Principalmente as companhias de petróleo, que fizeram enormes lucros com a crise depois da guerra de 1973 no Oriente Médio, causando a ruína inflacionária de países ricos e pobres igualmente.

Estorvo
A United Fruit tornou-se um estorvo. Estava frágil, e, quando seu valor acionário despencou, os contabilistas entraram em cena -o que pareceu uma seleção natural.
Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, em um espírito renovado de globalização, as principais companhias bananeiras do mundo empunharam a bandeira do livre mercado antes carregada pela United Fruit.
Mas Chiquita, Del Monte, Dole (EUA) e Noboa (Equador) não tinham nada parecido com a força individual da United Fruit, embora ainda fossem uma presença formidável. Juntas, eram chamadas de "Wild Bunch", a "Penca Selvagem".
Nos anos 1990, os EUA levaram seu caso à Organização Mundial do Comércio, o novo tribunal superior da globalização.
As empresas alegavam que os países da Europa Ocidental protegiam injustamente os produtores das chamadas bananas "fairtrade" [comércio justo] nas antigas colônias européias, por meio de um complexo sistema de cotas e licenças.
A Penca Selvagem caracterizou isso como um colonialismo repaginado e assistencialismo estatal fora de moda e, em seu lugar, promoveu suas próprias bananas "free trade" [comércio livre].
No novo milênio, depois do que havia se transformado numa guerra comercial generalizada, os europeus recuaram e aceitaram fazer concessões. Mas o fizeram com certo rancor, protestando que Washington havia mais uma vez aceitado a manipulação de interesses limitados.
Alguns falaram num retorno das "forças antigas e obscuras". Pensavam na United Fruit.
Quanto à banana, as doenças que afetam as variedades atuais podem torná-las incapazes de sobreviver em sua forma de produção em massa.
Talvez as bananas devam ser cultivadas em mais variedades e em áreas menores. Mais de um século após a United Fruit transformar a banana em alimento para as massas, talvez ela volte a ser artigo de luxo.

PETER CHAPMAN é autor de "Jungle Capitalists - A Story of Globalisation, Greed and Revolution (ed. Canongate). Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
[Folha de São Paulo, 20/05/2007]

Garotas de Picasso completam 100 anos

As cinco prostitutas retratadas pelo pintor em 1907 na tela mais célebre do século 20 já não provocam escândalo, mas ainda desafiam críticos e historiadores

Antonio Gonçalves Filho

Há um século o pintor Pablo Picasso, então com 25 anos, abriu seu ateliê parisiense e mostrou para os amigos uma enorme tela com mais de dois metros de altura por outro tanto de largura.
Nela, cinco mulheres liberadas desafiavam não só a moral como a tradição artística ocidental. Essas moças, além de uma sensualidade bizarra, incorporavam algo das culturas arcaicas, especialmente a carga hierática das máscaras africanas e a força assimétrica da escultura ibérica anterior à ocupação romana, anunciando a mais explosiva revolução formal do século 20: o cubismo. Em homenagem ao centenário de Les Demoiselles d'Avignon, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) promove uma exposição que promete render ainda alguns ensaios críticos sobre a pintura mais célebre do século que passou, marco zero da modernidade.

A exposição traz também esboços e estudos preliminares de Picasso para sua criação mais conhecida (ao lado de Guernica). Mas, afinal, por que alguém precisou preencher 16 cadernos de croquis, pintar dezenas de esboços e criar sete centenas de desenhos para colocar numa tela prostitutas de um bordel de Barcelona (da Rua d'Avinyo, cujo nome evoca o da cidade de Avignon, na Provença)? Teria Picasso consciência da importância de sua pesquisa e da revolução que iriam provocar suas 'demoiselles' no mundo da pintura? O poeta André Salmon (1881-1969), que batizou o quadro (em 1920) e referia-se a ele como o 'bordel filosófico' de Picasso, jura que sim. Não há, segundo ele, nada de alegórico nessas figuras. Elas simplesmente desafiam a lógica como uma 'pintura-equação' que propõe um problema sobre sua validade. Enfim, provocam abalos na estrutura da arte européia, que balança com a ruptura formal de Picasso.

Les Demoiselles d'Avignon talvez seja o exemplo mais remoto de genuína vocação multiculturalista no mundo da arte. Ao adotar uma máscara ritual Babuka como modelo do rosto da prostituta da extrema direita (canto superior do quadro), Picasso não se apropriou apenas da cultura do antípoda. Aproximou (muito antes de Freud) pulsão sexual e instinto tanatológico, vida e morte. Claro, Picasso não foi o primeiro a usar uma máscara africana como modelo (que descobriu, aliás, durante um jantar na casa de Matisse), mas foi corajoso ao imprimir nesse mesmo quadro uma crítica ao falso orientalismo europeu (odaliscas e banhos turcos de Ingres) e tecer um comentário ácido da 'joie de vivre' e do mundo harmônico matissiano (ao contrário das mulheres de Matisse, as prostitutas de Picasso mantêm uma expressão grave, de morte, nos rostos). Finalmente, no lugar da composição clássica do nu europeu, os corpos deformados das 'demoiselles' deixam de ser ícones eróticos e regridem à condição primitiva das mulheres nuas da Oceania (lições de Gauguin e Durrio, sem dúvida). Tanta transgressão teve um preço: o da incompreensão de seus pares.

Matisse torceu o nariz para as garotas de Picasso. Só um entre seus amigos (Apollinaire, Derain e Gertrud Stein, entre outros), o marchand e colecionador alemão Daniel-Henry Kahnweiler, parece ter entendido (e gostado) de imediato das pobres prostitutas de Picasso, que pareciam colocar seu criador no patamar renovador de um Manet com a nudez cadavérica de sua Olympia. Picasso, porém, não parecia nada à vontade como Messias da pintura. Talvez não se imaginasse um profeta, mas tinha consciência da sua transgressão, a de contestar os cânones estéticos da representação do corpo feminino. Essas figuras monstruosas, de olhar selvagem, primal, trazem em seus corpos a negação da natureza e a celebração da cultura - ou, pelo menos, da multifacetada perspectiva advinda da fragmentação cubista do espaço.

A esse respeito, o crítico italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992) lembra que Picasso, com Les Demoiselles d'Avignon, coloca em crise a ingenuidade dos fauves e recusa os prazeres hedonistas dos impressionistas. A arte, dizia Argan, não era efusão lírica para Picasso, mas problema. 'A visão de Matisse fundava-se no princípio da harmonia universal, entendido como princípio fundamental da natureza; a visão de Picasso funda-se no princípio da contradição, entendido como princípio fundamental da história', defendia o crítico italiano. É exatamente esse o ponto de divergência entre os dois pintores, segundo Argan: 'Para Matisse, a arte ainda é contemplação da natureza; para Picasso, é intervenção resoluta na realidade histórica.'

Os corpos desproporcionais e assimétricos da prostitutas, herdados da escultura ibérica, cumprem uma destinação histórica. Elas se expõem ao espectador como figuras fragmentadas pelas múltiplas perspectivas e diferentes planos, que parecem se sobrepor nesse ritual de 'passage' (no sentido francês da técnica em que esses planos passam uns sobre os outros). Ao mesmo tempo que jogam o olho do espectador para o fundo da tela, criando uma ilusão de profundidade, obrigam-no a permanecer na superfície, antecipando em muitos anos uma questão que seria apenas desenvolvida à época do expressionismo abstrato americano (anos 1940/50), quando o crítico Clement Grenberg propõe a abolição da dicotomia figura e fundo. Picasso obriga o espectador a permanecer na superfície e projeta-se em seu espaço, estabelecendo a primeira relação cubista da história da pintura.

Lembrando um dos muitos biógrafos de Picasso, Gilles Plazy, Picasso transgride a lei do realismo humanista que domina a arte desde o Renascimento. Projeta - e cria - uma mulher distante do sentimentalismo burguês e mais próxima de um mundo não dominado pelas aparências, reinventando a pintura para reinventar a sociedade. É sintomático o fato de ter optado por expulsar da composição original dois homens que faziam parte da cena, um marinheiro e um estudante de Medicina, não por solidariedade feminista, mas por perceber que essas mulheres estão sozinhas em sua nudez para lá de metafórica. Vale lembrar, a esse respeito, outro biógrafo de Picasso, John Berger. Sobre o bordel do pintor, Berger observa que ele não é chocante por oferecer corpos sensuais, mas por exibir mulheres pintadas 'sem charme nem tristeza, sem ironia nem crítica social, mas como estacas de uma paliçada atarvés da qual os olhos miram como se fixassem a morte'.

A paleta econômica de Les Demoiselles d'Avignon combina com o rigor da composição, que remete em muitos pontos à escola de Cézanne, uma referência fundamental na construção da pintura de Picasso (e não só como homenagem às Baigneuses, mas como proposta de ultrapassar a fronteira histórica da cultura figurativa de Cézanne). Se as cores quentes (rosa, ocre) são reservadas aos corpos, as frias (branco, azul, cinza) são destinadas ao ambiente (cortinas e adereços). É desse confronto que nasce uma sociedade de mulheres que não se comunicam entre si e dirigem-se diretamente ao espectador, obrigando-o a dividir o espaço comum desse bordel protocubista. Braque, ao ver o quadro, teve a impressão de estar comendo estopa, bebendo petróleo e cuspindo fogo. Pode ser que os visitantes do MoMA não sintam o mesmo, mas, por precaução, o museu tem sempre um extintor à mão.

[O Estado de São Paulo, 20/05/2007]

Das catacumbas para as massas

Sem o imperador Constantino, que adotou e financiou o cristianismo no século 4º, religião não teria passado de "seita de vanguarda", diz Paul Veyne

MARCOS STRECKER, da Redação

Para o historiador Paul Veyne, o "inventor" do cristianismo viveu 300 anos depois de Cristo.
Um dos principais especialistas em Roma Antiga, ele defende em seu novo livro ("Quand Notre Monde Est Devenu Chrétien", Quando Nosso Mundo Se Tornou Cristão, 322 págs., 18 euros, R$ 50) que o imperador romano Constantino é o verdadeiro responsável pela cristianização do mundo, no século 4º.
Sem ele, o cristianismo "não poderia ser nada além de uma seita de vanguarda".
Esse papel do imperador romano, que teria marcado o destino da Europa quase como um capricho pessoal, amplia as já polêmicas discussões sobre o estabelecimento do cristianismo como religião dominante no mundo europeu.
Veyne, 76, que é professor emérito do Collège de France, defende que o cristianismo se estabeleceu apenas por razões históricas e que não é possível falar na existência de "raízes cristãs" européias. "O cristianismo só se impôs quando incorporou um pouco do paganismo", disse em entrevista exclusiva à Folha.
O autor usa analogias polêmicas com o mundo contemporâneo, ao comparar a ambição histórica de Constantino com as de Lênin e Trótski.
No conturbado mundo pós-11 de Setembro, o historiador relativiza o papel dos EUA: "[George W.] Bush é um bufão momentâneo, e a era Bush é apenas um incidente momentâneo, um episódio como o macarthismo".


FOLHA - Em seu último livro, o sr. defende a importância de Constantino como o real introdutor do cristianismo. O desenvolvimento da religião era inevitável ou Constantino teve papel fundamental? Ele é o "inventor" do cristianismo?
PAUL VEYNE - Sim, Constantino é o inventor ou, acima de tudo, o "estopim" desse processo. Ele colocou em movimento essa organização, essa formidável máquina de enquadramento, esse "partido único" hierarquizado que é a igreja. Nunca devemos esquecer que o cristianismo é a única religião do mundo que é, ao mesmo tempo, uma igreja e uma organização. Não havia papas nem bispos no paganismo. Constantino se converteu por fé sincera mas também porque o cristianismo era espiritualmente e filosoficamente bem superior ao conto de fadas ingênuo que era o paganismo. O cristianismo, pela sua superioridade, era aos seus olhos a única religião digna do trono assim como o fato de qoe o imperador devia habitar o palácio mais belo.
Constantino, homem de fé sincero, viu sobretudo um papel imenso a desempenhar na história universal.
Ele faria a felicidade eterna da humanidade ao favorecer a verdadeira religião, enviar seus povos ao paraíso.
Ele teria um papel gigantesco na história da humanidade. Um pouco como Lênin ou Trótski, que em 1917 disseram que fariam a felicidade material da humanidade estabelecendo o comunismo, o "paraíso soviético".
Mas o papel de Constantino nunca foi o de converter pela força os pagãos, que compunham 90% da população do império. Isso seria irrealizável. Ele não forçou ninguém; não há mártires pagãos.
Fez apenas duas coisas. Primeiro, decidiu que o cristianismo era a religião "pessoal" do imperador, "sua" religião pessoal. O império e suas instituições continuavam pagãos, ainda que os ambiciosos tenham se convertido para agradar o imperador.
Segundo, ele favoreceu, sustentou e financiou a igreja. Então essa organização formidável, essa máquina que era a igreja, se pôs em marcha e se impôs como novo hábito, como novo conformismo. O bispo se tornou o grande personagem em todos os lugares, a grande autoridade moral. Isso impressionava as pessoas comuns. Outro exemplo: enquanto um proprietário de terras rico se convertia por ambição, todos os camponeses e subordinados se convertiam também, por docilidade em relação ao mestre. Constantino teve um papel fundamental, desencadeando e sustentando essa formidável organização que é a igreja.

FOLHA - A Europa tem "raízes cristãs" ou o cristianismo se desenvolveu no continente por razões históricas?
VEYNE - O cristianismo se desenvolveu apenas por razões históricas, porque Constantino colocou a igreja no poder. Sem sua ajuda, o cristianismo não poderia ter se imposto, não poderia ter se enraizado. Era uma religião muito erudita e exigente, que não poderia ser nada além de uma seita de vanguarda, só para os particularmente crentes. De fato, o paganismo não era exigente, não obrigava as pessoas a respeitarem a moral, a ir à missa, a acreditar em dogmas. O paganismo não exigia nada e prometia bastante: boas colheitas, cura de doenças, viagens sem naufrágios.
Enquanto o cristianismo primitivo não prometia nada (as pessoas se limitavam a obedecer a Deus) e exigia muito de seus fiéis. Era pesado demais. O cristianismo pôde se tornar a religião corrente de toda a população romana apenas quando deixou de ser muito exigente, quando tolerou que existissem pecadores e, sobretudo, quando passou a prometer a felicidade, como prometia o paganismo. Foi a partir do ano 400 que os cristãos passaram a pedir a Deus (e aos santos) a cura, viagens a salvo etc. E que eles passaram a oferecer ex-votos, como ofereciam os pagãos. E as pessoas passaram a pedir a Deus e aos santos boas colheitas, como faziam os pagãos. O cristianismo só se impôs quando incorporou um pouco do paganismo.

FOLHA - O Brasil é o maior país católico do mundo, em número absoluto de fiéis. A partir do seu estudo, o que é possível inferir em relação ao desenvolvimento do cristianismo no Novo Mundo?
VEYNE - Suponho que as coisas tenham se passado da mesma maneira como ocorreram no Império Romano.
Os conquistadores espanhóis e portugueses e seus reis ajudaram na construção da igreja, cuja autoridade teve papel importante para as populações. A igreja se impôs, por sua autoridade e seu orgulho, como o novo conformismo, como a grande coisa a ser respeitada.

FOLHA - Religiões são ideologias?
VEYNE - Podem servir de ideologia ou pode não ser utilizada para isso. Uma religião pode servir para tudo: de pretexto para festas, para solenização dos grandes momentos da vida (batismo, enterro, casamento), hábitos étnicos (proibições alimentares), prever o futuro ou curar doenças. A religião serve para determinações morais, para explicar fenômenos naturais, para as utopias sociais ou políticas, para legitimar um poder político e uma sociedade. Também pode servir como ideologia de classe, para expressão de uma identidade nacional etc. E para o erotismo, quase me esqueci de mencionar! Ela pode servir de ideologia étnica... O cristianismo tornou-se uma ideologia e uma bandeira para uma comunidade apenas por volta do ano 500, quando quase todos os habitantes do império se tornaram cristãos. O cristianismo passou a servir então de símbolo de identidade.

FOLHA - O mundo greco-romano representou a primeira "globalização"? Qual é a relação que pode ser estabelecida com o presente?
VEYNE - Houve uma primeira globalização na Antigüidade, mas foi anterior ao Império Romano e ao cristianismo. Foi na época de Alexandre, o Grande, a partir dos anos 300 a.C. A civilização grega dominava a cultura "mundial", do atual Afeganistão (onde os budas são esculpidos como bacos) ao atual Marrocos. A língua grega ocupava o lugar que o inglês ocupa hoje. Os próprios romanos possuíam uma cultura grega, assim como o Japão atual é ocidentalizado...

FOLHA - Após o 11 de Setembro, com a política antiterror do governo George W. Bush, o sr. considera que houve um retorno à idéia de que é necessário cristianizar o mundo para salvá-lo?
VEYNE - Francamente não! A era Bush é só um incidente momentâneo, em via de se extinguir.
É um episódio, como o macarthismo. É uma circunstância menor, não tem a dimensão de um evento histórico. Bush é um bufão momentâneo, um anão ridículo e sanguinário. Não é do tipo que muda o destino do mundo.

[Folha de São Paulo, 13/05/2007]